Este ano o grande convidado do MOTELX é o artesão do giallo Dario Argento [dia 8], que já cá tinha estado na 6.ª edição. Como é que acontece este regresso? João Monteiro: A vinda do Argento não era algo que estivesse planeado. O que calhou foi estarmos interessados no último filme dele, Dark Glasses [Óculos Escuros], que é bastante diferente do que tem feito em tempos recentes, como o Dracula 3D, aqueles "cozinhados" internacionais com atores de todo o lado... Este por sua vez é um filme mais contido, que tem sequências muito interessantes do ponto de vista técnico, produzido pela filha [Asia Argento] - há esse lado familiar -, e ele parece mais entusiasmado com o objeto em si. Basicamente, decidimos arriscar a fazer o convite e ele aceitou logo! Acabou por ser uma espécie de brinde de última hora, que se tornou também o centro do festival, por ser quem é. Note-se que ao longo dos anos temos tido vários convidados deste tipo, as lendas do terror, e é curioso perceber como as receções variam entre aqueles que são famosos e os que são quase dignos de um culto. Nesta segunda categoria, testemunhámos os casos do Zé do Caixão, George Romero, Alejandro Jodorowsky e... Dario Argento. Parecia quase a vinda do Papa..E o que é que se pode dizer mais sobre Dark Glasses? Pedro Souto: O filme tem a particularidade de assumir o género do giallo [terror e suspense italiano] como nós achávamos que já não era possível. E a sua existência acaba por ser uma boa surpresa - até um certo risco para o próprio realizador, dada a idade que tem [faz amanhã 82 anos] - na medida em que nem sempre é fácil para os realizadores mais velhos continuarem a filmar, conseguirem financiamento... Depois temos a aparição da Asia Argento, o que é sempre divertido, e também uma nova atriz italiana, Ilenia Pastorelli, que até está a viver em Lisboa, e que interpreta uma pessoa cega, conduzindo-nos por uma série de peripécias e cenas espetaculares... JM: Dá um bocadinho a impressão de ser um filme-testamento, com uma série de elementos que ele recicla da sua marca autoral. Sendo que o próprio tem sido copiado ad nauseam nos últimos anos (Suspiria...), e parece aqui querer dizer "fui eu que inventei isto e ainda o sei fazer"..Outro destaque nos convidados é a dupla americana Aaron Moorhead e Justin Benson, realizadores já relativamente conhecidos do público português, com O Interminável [2017] e Sincrónico [2019], que traz também novo filme. Uma dupla independente, mas já com um pezinho na indústria [assinaram episódios da série Moon Knight, da Marvel]... PS: São realizadores que acompanhamos desde o primeiro filme - passámos O Interminável, por exemplo, e tentámos que eles viessem cá nessa altura - e com este novo, Something in the Dirt, que é um filme de pandemia meio alternativo, cheio de ideias, é interessante perceber como é que a dupla ainda está empenhada numa abordagem independente e autoral, apesar desse pezinho na indústria. E como diz, já há muitas pessoas que os seguem e que estão curiosas para os conhecer. Sentimos isso no festival..A sessão de abertura faz-se com Bodies Bodies Bodies, da holandesa Halina Reijn. Não me recordo de nenhuma edição que tenha arrancado com assinatura feminina. Se não foi propositado, não deixa de ter algum simbolismo. JM: Inicialmente fomos mais pelo facto de ser da produtora A24. Mas depois reparámos que não só era uma realizadora, como era uma realizadora europeia a fazer um filme americano. E também tentámos que o filme de encerramento fosse realizado por uma mulher; infelizmente não conseguimos. É sem dúvida algo que temos em conta quando fazemos a seleção, e às vezes isso pesa no critério que adotamos. Aliás, este ano a representação do cinema realizado por mulheres é das maiores. E há ainda coisas que se juntam: vamos ter uma apresentação da MUTIM, que é uma associação de mulheres profissionais do cinema, com uma conversa que vai partir do Três Dias Sem Deus [1946], o único filme da Bárbara Virgínia... Às tantas, com o que vai surgindo todos os anos, passou a ser uma coisa normal. Mas sim, quando chegarmos aos 50/50 em cada secção, aí fazemos uma festa! PS: Nós temos sentido, sobretudo nos últimos anos, uma procura mais constante da parte dos festivais (onde nos incluímos) de filmes realizados por mulheres, em particular filmes de género no geral. E isso tem feito a diferença também na aposta e no financiamento desses filmes, com abordagens muito diversas. No fundo, está tudo interligado. Incluindo a ponte com o passado, que não deixa de ser o papel de um festival..Um dos pontos menos óbvios do programa é uma conversa sobre composição para filmes mudos, após o cine-concerto de Os Crimes de Diogo Alves [dia 7, Teatro São Luiz]. Como é que surgiu esta ideia? JM: Soubemos que havia interesse da parte do Teatro São Luiz em exibir este filme por ocasião dos 10 anos do desaparecimento do Bernardo Sassetti - era um filme de que ele gostava muito e para o qual fez uma partitura -, começámos a trabalhar com eles e... a questão que se colocou é que o filme tem 20 e poucos minutos. Faltava ali qualquer coisa. Então surgiu esta ideia, primeiro de ouvir o compositor Desidério Lázaro, que foi a pessoa que esteve a ensaiar a partitura, e depois convidar outras pessoas que têm feito composições para filmes mudos, desde logo o Filipe Raposo, que já deve ter feito isto para todos os filmes mudos portugueses, e o Tó Trips. Lá está, isto traduz-se também num esforço de recuperar a memória. Os Crimes de Diogo Alves [1911] é a primeira obra de ficção do cinema português e é logo um filme sobre um serial killer!.Vai haver o lançamento de um livro sobre a vossa famosa secção Quarto Perdido, e Paulo Branco surge no contexto como "O Produtor do Terror Português". De onde vem este título tão categórico? JM: Toda a programação de cinema português este ano tem um bocado que ver com o livro; exibimos quase tudo o que lá está. E pegando nos filmes que estão no livro, analisando-os no conjunto, chegámos à conclusão que o Paulo Branco tem seis títulos produzidos por ele! Uma curiosidade que depois se liga com o facto de ter trabalhado com o Cronenberg e ter uma relação, que se conhece pouco, com outros nomes do cinema internacional, seja o Roger Corman sejam os produtores israelitas [Menahem Golan e Yoram Globus] da Cannon Group. Ou seja, achámos interessante, para finalizar este primeiro ciclo da secção Quarto Perdido, ter não só o lançamento do livro como um produtor a falar da sua experiência..Só para esclarecer melhor, em que é que consiste esta publicação? JM: O livro é uma lista de cinema de terror português, desde 1911 (ano de Os Crimes de Diogo Alves) até 2006. Portanto, construímos uma lista de filmes que fomos vendo e exibindo no Quarto Perdido e convidámos pessoas para escreverem sobre eles a partir do ângulo do terror. PS: Lá está, o livro é um projeto que começou enquanto secção do festival, um espaço para a pesquisa e aventura que também estão na raiz do MOTELX. Sem esquecer o encontro com o realizador António de Macedo, que partilhou connosco uma listagem de filmes feita pelo historiador José de Matos-Cruz... Em suma, era importante tornar a experiência desta secção um objeto físico, por ser algo pouco conhecido e que pode ser tão útil para estudantes e académicos como para realizadores. Isto permite uma nova leitura do cinema português..Esta edição do MOTELX já apanha o fim das restrições da pandemia. Acham que vai fazer uma grande diferença para o público do festival ou não é um fator que tenha afetado significativamente o espírito das edições anteriores? PS: Bem, nós estivemos estes dois anos a 50%, por isso esperamos que vá ser melhor. Mas também tivemos a sorte de setembro ter calhado sempre num período mais "amigável", no contexto da pandemia. Inclusive, 2021, apesar das restrições, foi melhor que o ano anterior por causa da vacinação. Agora, uma coisa que nos preocupava muito era se se iria perder aquele ambiente de festival, e a verdade é que não se perdeu. Por isso acho que esta edição vai ser um regresso a 2019: mais gente, mais convívio. JM: Poder falar com pessoas sem máscara faz toda a diferença. Quer dizer, com as máscaras, quando estás a falar para o público só vês micro-expressões nos olhos, o que torna a relação mais fria. Mas para além disso, significa que podemos programar mais coisas... Resta saber se vamos voltar ao que era antes ou se estamos num novo normal..João Monteiro.NIGHTSIREN e O CORPO ABERTO - Dois filmes da competição europeia, escritos e realizados por mulheres, que tentam desmontar os papéis de género nas tradições populares, tanto da Eslováquia (Nightsiren) como da Galiza (O Corpo Aberto)..HOLY SPIDER - Confirmação do talento e versatilidade de Ali Abbasi, que filma Teerão como se fosse um Scorsese ou Abel Ferrara. Retrato de uma sociedade patriarcal no seu limite grotesco, que é o de uma hipotética "justiça" das atrocidades..ASHKAL e SALOUM - Dois representantes africanos (Tunísia e Senegal) que cruzam elementos locais com o terror mainstream. Em Ashkal temos uma narrativa fantástica construída com elementos do quotidiano tunisino, já Saloum coloca no centro da ação um grupo de mercenários/guerrilheiros e folclore africano..FALL - O filme mais festivaleiro desta edição. Duas mulheres no topo de uma antena com o tamanho de uma montanha e isolada no deserto. Bom para curar vertigens..PARSLEY - Estreia da República Dominicana na programação do MOTELX. Retrata uma noite de terror que ficou conhecida na História do país como "The Parsley Genocide" entre dominicanos e haitianos..HOTEL DA NOIVA - Talvez o primeiro filme de ficção inteiramente rodado nos Açores (São Miguel). Com fama de "filme maldito", nunca mais foi exibido desde a estreia no Coliseu Micaelense em 2007; antecede aquilo que se apelidou de "Azoresploitation". Sessão de culto..Pedro Souto.CANDY LAND - Uma road trip infernal que destila gore, sexo e fanatismo religioso. Tem como cenário o submundo dos trabalhadores do sexo numa estação de camiões perdida algures na América profunda. Deprimente e perturbador. Digno da exploitation dos anos 70..SATAN"S SLAVES 2: COMMUNION - Joko Anwar, o maior nome do terror contemporâneo indonésio, regressa com um imponente pesadelo sobrenatural num prédio nos arredores de Jakarta. O folk horror visita a cidade..DEADSTREAM - Do casal Joseph e Vanessa Winter, que nos dá o prazer de fechar um idiota num cenário de puro terror. Um vlogger cancelado que se lança num derradeiro desafio para tentar recuperar seguidores. Filme da mítica Sessão Dupla que está de volta ao MOTELX, e que junta o divertido The Seed, sobre adolescentes em perigo, em modo body horror from outer space..POLARIS - Mais uma realizadora, Kirsten Carthew (Canadá), que nos traz a história de uma criança humana criada por uma ursa polar num survival 100% feminino, num mundo pós-apocalíptico com preocupações ambientais. O verdadeiro "Mad Max do Ártico"..THE MEDIUM - Um surpreendente mockumentary que explora a demonologia tailandesa, onde deuses e demónios convivem neste regresso de Banjong Pisanthanakun ao terror, depois de correalizar Alone (2008). Simples mas cativante, sempre em crescendo até ao grande final..dnot@dn.pt