A primeira página de Notas Sobre Um Naufrágio é tão impressiva como chocante, em que se relata como os robalos voltaram a aparecer aquando dos naufrágios dos imigrantes junto à ilha de Lampedusa - devido ao novo alimento que lhes é oferecido -, o que obriga o leitor a ler esta obra. Davide Enia concorda com a violência deste início e confessa que foram mesmo as primeiras linhas que escreveu para o romance e que colocar esta situação logo no início do livro era fundamental e a que não podia escapar: "Queria que o leitor soubesse de imediato sobre que história iria ter em mãos". Na segunda página faz outra confissão, agora pela boca de um dos personagens: "Não sou de esquerda, aliás, diria que sou precisamente contrário". Quem está a falar é o mergulhador que recupera os corpos afundados: "Tive um encontro muito intenso com ele e acabámos por ficar amigos.".«Foi outro choque para mim ouvir tudo o que me contou, porque mostrou-me que não somos a nossa escolha política, muitas vezes nem somos o livro que lemos!", refere Enia, que faz questão de acrescentar: "Perguntamo-nos que espécie de indivíduo seremos no verdadeiro momento de crise. A resposta que ele me deu foi a melhor que já escutei: somos salvadores, salvamos vidas de quem naufragou no mar. Não existem opções religiosas ou questões étnicas nesta situação, é o corpo que se decide tirar da água e deixar viver." O pior estava para vir, quando o mergulhador se reconheceu como "fascista", o que obrigou Enia a pensar o quanto estava cheio de preconceitos. Diz: "Eu não sabia como escrever o livro devido às impressões que me chegavam e o que me aconselharam foi para escrever o que achava que era a verdade. E a posição política dele era, no meu entender, o melhor princípio para o romance.».O que Davide Enia encontrou na ilha de Lampedusa estava além de todo o conhecimento que adquirira nos noticiários e na investigação: "Ao ver o que acontecia em redor da ilha, era-me impossível compreender, até aceitar, a realidade, daí que haja uma frase que repito ao longo da narrativa devido a essa perturbação emocional: os primeiros barcos nunca mais serão esquecidos. Mesmo que todos os dias cheguem outros e surjam novas histórias para conhecer. Os primeiros serão sempre imponentes para a nossa compreensão, porque é com eles que compreendemos que estamos a assistir a um episódio da História, gigantesco e sem disfarces. Nunca esperei confrontar-me com uma situação desta dimensão, nem ver as pessoas a aproximarem-se daquela forma de Terra: eram crianças, algumas bastante novas, adolescentes, adultos... eu não estava pronto para assistir àquilo, mesmo que soubesse de todo o sofrimento por parte daqueles que vão até lá ao atravessarem o Mediterrâneo. Digo mais, não estava preparado então nem hoje posso dizer que o esteja, apesar de tanto tempo depois»..O romance faz um testemunho muitas vezes em direto dos acontecimentos. Pergunta-se porque se continua a observar a repetição de erros do passado, como o de imigrantes que há séculos perdem a vida ao buscarem pela Europa: «A primeira sensação é de uma obrigação em escrever um romance que responda à pergunta: como se pode contar esta crise neste momento? Por isso é que dou como título ao livro Notas Sobre Um Naufrágio. Não é um romance porque nele não cabe um acontecimento desta dimensão. São notas, apontamentos! O que sabemos por agora é uma parte, a que é compreensível através da nossa língua por desconhecermos a de quem chega. Só quando ouvirmos a sua versão é que o livro poderá estar completo. Quanto à repetição destes erros, ela nunca se verifica sob a mesma forma, é sempre tudo diferente. Por isso, questionava-me sobre se haveria uma solução para livrar o planeta disto, porque, se olharmos para o mundo, vemos que todo ele está em colapso - o que se passa na Síria tem reflexos nas nossas sociedades, um vulcão em erupção na Islândia interrompe a circulação aérea de grande parte do globo. Ou seja, a humanidade está a causar uma distorção do mundo. Os imigrantes que chegam são um espelho em que a Europa e os Estados Unidos deveriam rever-se. O nosso modelo de vida está errado!».Citaçãocitacao"Queria descrever a vida destas pessoas sem abusar delas, sem as manipular ou ser paternalista, por isso mesmo muitas vezes duvidava do que escutava. Era obrigatório desconfiar.".A resposta ao que vê a partir de Lampedusa é clara para o escritor: "É preciso alterar o nosso modo de vida. Os muros que construímos impedem a visão e a perspetiva correta, criando uma cegueira geral. Se os erros se repetem, porque não exigir mudanças?" Considera que devemos prestar atenção às mutações antropológicas do Homem, que deixou de ser caçador para viver nas cidades e, mais grave, transformou-se num consumidor. Daí que quando o passaporte sirva quando os de fora chegam à Europa com a intenção de consumir e de se adaptarem a uma sociedade baseada num modelo de supermercado. No entanto, estas pessoas que chegam a Lampedusa não são consumidores nem se encaixam de imediato no modelo em vigor.".O que dizem os imigrantes ao chegarem a Lampedusa: contam a verdade ou trazem uma história preparada? "Ambas as situações, mas aquilo que é a principal verdade não a encontramos nas palavras que dizem, mas nos seus corpos. Da análise médica que é feita nos hospitais de campanha, sabe-se que da Líbia, por exemplo, as pessoas que vêm foram torturadas, que todas as mulheres foram violadas, até as meninas. O que o corpo não revela é quantas violações aconteceram naquele inferno a uma mulher, apenas confirma que a Líbia é isso, um inferno, e que a guerra que lá existe é fomentada por países estrangeiros. São versões ambíguas as que se ouvem, contudo não permitem outra leitura que não a de terem fugido do inferno", diz..Para Davide Enia há um pressuposto que não deve ser esquecido: "Quem vem do Afeganistão ou da Síria escapa de uma guerra. Quem vem da áfrica subsaariana, é devido à falta de água e à pobreza. Essas situações deveriam ser uma plataforma de encontro, porque a identidade forma-se com o encontro do outro e das relações que terão. É muito simples, se se ouvem acusações, começa-se a acreditar no que dizem. Contudo, o outro deveria servir para entender quem somos, coisa que a Europa não quer perceber porque quem não faz parte dela assusta"..Quanto ao registo deste romance, o escritor italiano confirma que lhe foi muito difícil encontrar o modo para fazer o relato que pretendia: "Muito difícil, bastante doloroso e imensamente cansativo. No entanto, foi como uma libertação, quanto mais não fosse por me ser necessário. Mas foi a melhor terapia que pude fazer em toda a vida." O diálogo com os habitantes de Lampedusa não foi fácil, acrescenta: "Principalmente, saber escutá-los pois não estava pronto para ouvir a sua estranheza. Daí que a escrita tenha sido uma grande ajuda para aceitar o confronto com a morte, que é uma parte da vida, e no fim acho que consegui fazer o luto daquilo que vi"..Resta perguntar se com o final de toda esta investigação e da escrita passou a olhar para estes acontecimentos de uma maneira diferente daquela que tinha antes de chegar a Lampedusa: "Sim", é uma resposta rápida. Explica: "Tinha muita informação sobre os políticos, os imigrantes, mas era difícil compreender o que se passava mais longe, nos barcos que chegavam. Era uma ilha muito confusa, onde nem existia um hospital - a população decidiu construir um. Vi muitas coisas que sem a observação iria contar de uma forma distorcida, e essa visão presencial fez que alterasse o relato e questionasse quais eram as opiniões em que deveria confiar. Principalmente, o conhecimento das situações mudou em muito a minha narrativa. Queria descrever a vida destas pessoas sem abusar delas, sem as manipular ou ser paternalista, por isso mesmo muitas vezes duvidava do que escutava. Era obrigatório desconfiar"..Davide Enia.Editora D. Quixote.197 páginas.Um romance biográfico sobre um convidado deste mundo.Após o romance também biográfico sobre o cineasta Ingmar Bergman: O Caminho Contra o Vento, é grande a expectativa sobre o que esperar da escritora Cristina Carvalho ao replicar o género com o dramaturgo August Strindberg em Strindberg - Neste Mundo Fui apenas Um Convidado. A epígrafe mostra bem a convicção da autora sobre o que apresenta: "A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção", palavras de Jacques Lacan, que em mais de duzentas páginas são provadas..De Strindberg, a população mundial atual está um pouco esquecida, portanto mais importante é este exercício literário. Que começa com uma descrição física do protagonista, para depois se dar o que está além de um corpo "nem alto, nem baixo" e de um rosto "que desenha o retrato do verdadeiro incómodo da alma" por nunca sorrir. Nada que impeça o protagonista de viver "primeiro com uma mulher muito ignorante", de se "meter com uma criada", que mais usa como "uma prostituta pouco esclarecida", além de perder a cabeça por uma atriz e "criaturinha desequilibrada", bem como de outras mulheres. No entanto, o que não fica esquecido é a sua pulsão por escrever, para o que necessita de sair do seu espaço e caminhar pelo mundo. Tal como o que escreveu no seu Diário Oculto, vai-se conhecendo nesta obra o dramaturgo e o que se descobre até podia ser representado no palco em sucessivos actos, que jamais caberiam numa única peça..A técnica da narrativa é explicada assim: "Ou sou eu a falar, ou é o próprio". A cronologia não é seguida de um modo fiel, avisa-se, porque a "vida das pessoas não tem uma sequência lógica". Curiosamente, este é mais um retrato romanceado de figuras suecas; primeiro foi Selma Lagerlöf, depois Bergman e agora Strindberg. Quem virá a seguir, após este mergulho intenso num ator que é um bom copista da vida?.Cristina Carvalho.Editora Relógio D"Água.258 páginas.O regresso em conto de um Chico Buarque das letras das canções.Os romances de Chico Buarque têm dado muito que falar, pois espantam alguns leitores e desgostam outros. Portanto, quando o - mais conhecido como - cantor e compositor publica uma coletânea de contos há sempre a esperança no leitor de se confrontar com narrativas onde a dimensão não perturbe o princípio, meio e fim das histórias. E em Anos de Chumbo e outros contos, é isso com que se defronta, como se estivesse perante as canções redondas que se lhe ouviram desde há várias décadas. Se bem que o título remeta para épocas várias de repressão, que tanto podem ser de ditaduras militares e de travões à evolução de um país que é quase do tamanho de um continente, bem como de reações emocionais, mas o modo como Chico Buarque recupera a ambiência do Brasil citadino é muito entusiasmante neste livro..Um dos bons exemplos é o conto Copacabana, onde o protagonista tem um encontro com o poeta chileno Pablo Neruda. Este está cansado de falar sobre poesia, aquele quer abandonar o facto de ser filho de elites e querer misturar-se com os filhos das empregadas e jogar futebol. O protagonista não convive apenas com Neruda, também conhece a atriz Ava Gardner e leva-a a passear a um morro, ou um Walt Disney a regressar de um congelamento para evitar que morra de cancro. As "letras" destes contos fazem lembrar os poemas das suas canções e quando se chega ao fim do volume, é como se o leitor tivesse ouvido o último disco de Chico Buarque. Que, como é habitual, uma imensa maioria de ouvintes aprecia e volta a escutar de início para fixar aqueles momentos literários..Chico Buarque.Editora Companhia das Letras.192 páginas.Temperar a literatura com as receitas de Manguel.Alberto Manguel teima em encontrar formas inesperadas de fazer livros. Já foi assim com Dicionário de Lugares Imaginárioos, sobre partes do mundo que não se devem esquecer; com Embalando a Minha Biblioteca, com histórias que o desnudam; ou Uma História da Curiosidade, de leitura obrigatória. O que une estes volumes é o modo de os construir, como se pode ler nesta coletânea de receitas literárias, intitulado Livro de Receitas dos Lugares Imaginários. As Ostras de Vénus é um bom exemplo, pois evoca Camões e o prémio que a deusa ofereceu aos marinheiros portugueses na Ilha dos Amores após tantas aventuras. A saber: 5 malaguetas grandes e 8 pequenas, 1 dente de alho, 1 colher de chá de grãos de pimenta rosa e de sal da mesma cor, 75 gramas de açúcar mascavado, 2/3 de chávena de vinagre de sidra e 12 ostras fechadas. Pode dizer-se que esta ementa poderia ser concebida por um cozinheiro e não precisaria de alguém dedicado às letras, mas basta ler outras receitas para se compreender que os ingredientes só têm verdadeiro sabor se a alinhados com a descrição de muitos episódios livrescos que, por norma, só este autor os enquadra de modo perfeito para dar gosto à sugestão culinária. E assim vai colecionando a Sopa de Letras de Babel inspirada em Jorge Luis Borges, a Salada de Sol em Jonathan Swift, Os Ovos Mexidos de AEpyornis em H.G. Wells, a Carne Assada À Circe em Homero, as Pernas de Rã de hiperbórea em Plínio, o Velho, ou, fugindo dos clássicos, o Dinobúrguer de Michael Crichton, bem como os Noodles À Shangri-La de James Hilton..Decerto, que poucos leitores irão cozinhar sob os efeitos literários deste livro de receitas, mas que tempera bem a literatura não há dúvida..Alberto Manguel.Editora Tinta da China.176 páginas