Após ter substituído Stieg Larsson em três volumes da saga Millennium, a continuação da trilogia com Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander, que vendeu cerca de cem milhões de exemplares em todo o mundo e chamou a atenção para o policial nórdico, David Lagercrantz surge com Obscuritas. Uma estreia na narrativa policial em que a primeira tentação é fazer uma comparação com o seu trabalho anterior, mas Obscuritas confirma que foi capaz de ultrapassar esse legado e ser lido sem a presença do fantasma Larsson. Tanto assim que ao ler este policial o leitor nem se lembra do trio de livros anterior e embrenha-se num argumento muito bem delineado e com uma marca própria..Lagercrantz não nega que ter 'feito' de Stieg Larsson foi uma grande lição ou que ficou conhecido em todo o mundo à custa dessas sequelas, mesmo que no seu currículo tenha alguns best-sellers muito bem sucedidos. Em entrevista ao DN confirma que conseguiu a sua própria voz apesar dessa sombra: "Quando terminei o último volume, parti para uma digressão por vários países e ainda não tinha escrito uma única linha de Obscuritas quando já 25 países tinham comprado os direitos deste livro. Se isso me alegrou de início, quando me confrontei com a necessidade de o escrever foi muito assustador. Tinha medo de falhar, mas essa sensação de catástrofe pode ser boa para a inspiração.".Foi buscar aos primeiros livros que leu o paradigma: "Eu perguntava o que poderia fazer após a saga Millennium e a minha mulher aconselhou-me a seguir as minhas paixões. Lembrei-me de que a minha primeira paixão literária fora Sherlock Holmes. Então, pensei que poderia brincar um pouco com uma personagem de que gostava tanto e comecei a pensar em como o fazer. Ele era muito arrogante e ao mesmo tempo genial, daí que apostasse em criar um personagem que não fosse tão convencido e menos confiante em si próprio, até deprimido." A depressão do professor Rekke - o alter-ego de Sherlock - também tem para Lagercrantz algo de familiar: "Venho de uma família em que todos têm um dom, mas em que também há muitas depressões e, por mais triste que seja, vários suicídios. Portanto, como tenho experiência própria do que é a depressão, essa realidade ajudou-me a escrever sobre essa situação que afeta o protagonista." Mas faltava um Watson para fazer companhia à personagem, que queria que tivesse um perfil mais contemporâneo: "Alguém que mostrasse a imigração para a Suécia, que viesse dos subúrbios e pertencesse a outra classe social. Acho que o consegui com Micaela, portanto este policial é um flerte com Sherlock Holmes que terminou de forma diferente.".Citaçãocitacao"Os autores policiais quando estão a acabar já estão tão cansados que só querem terminar o livro. Eu gosto de ler policiais, mas tenho sempre mais prazer no princípio e no meio, porque os finais quase sempre desapontam." .Até que ponto Stieg Larsson mudou a sua vida?.De muitas formas, devo dizer. Primeiro, porque os livros foram vendidos em todo o mundo e tiveram um grande impacto junto dos leitores. Segundo, porque me ensinaram muito sobre como escrever policiais. Os personagens dele eram extraordinários e fizeram-me ver o que eu próprio poderia criar. É o caso de Lisbeth Salander, fabulosa mesmo que seja uma personagem muito dura para o meu modo de escrever..Foi uma boa experiência ou preferia ter ficado livre dessa sombra e ter escrito o que desejava?.Depois da experiência com os três livros da saga, estou a escrever exatamente o que desejo. Mas escrevê-los foi um desafio de que eu não fui responsável, foi a editora que me convidou, e vi nessa situação uma grande oportunidade. Primeiro fiquei assustado e sem saber se era capaz, mas sobrevivi, os livros venderam bem e saí desta experiência muito mais forte..Há uma história sobre um quarto livro que Larsson teria escrito. O que sabe?.Nunca o vi e creio que não terá avançado assim tanto num quarto livro, aliás já era muito difícil ter escrito mais do que três livros completos como os que deixou..A saga Millennium permitiu descobrir o policial nórdico. Os autores destes países mereciam o sucesso de que beneficiaram devido a Larsson?.Acho que alguns podem ser comparados, mas Stieg Larsson criou grandes personagens e isso muitos destes autores não foram capazes..Os leitores exigem de si agora uma espécie de escrita à Millennium ou dão-lhe liberdade para ter uma voz própria?.Na verdade, acho que agora posso escrever o que quero após o sucesso dos três livros da saga e no registo que pretendo..Não é habitual que um policial use as classes sociais e os bairros mais pobres como cenário de fundo. Estas diferenças são importantes para dar credibilidade às suas personagens?.É verdade que não é habitual, mas era muito importante para mim pois vivemos numa sociedade desigual e ao colocar no mesmo patamar pessoas de classes diferentes pode ser positivo. Quanto mais não seja, mostro que elas existem, tal como o poder das classes altas em abusar do privilégio de pisar os outros, como é o caso desta mulher dos subúrbios que tem de lutar para subir na vida. Achei que seria importante mostrar como uma latina se sente nesse confronto social..Começa com um jogador de futebol. É um piscar de olhos à sua biografia muito bem sucedida de Zlatan Ibrahimovic?.Aprendi muito sobre futebol com esse livro e não o esqueci, mas queria escrever algo diferente. O que é bom num policial é poder-se falar de futebol também mas resultar numa situação completamente diferente do que acontece numa biografia..Pode-se dizer que o professor Rekke tem algo de Alan Touring, o cientista sobre quem também escreveu?.Sim, pode-se dizer isso. Touring era um outsider e, apesar de ser muito diferente do meu Rekke, este tem muito do brilhantismo do cientista..Rekke é uma mente problemática. É o personagem perfeito para mostrar os bastidores da política sueca?.Com certeza, aliás mais do que os políticos suecos também pode revelar os de outros países, como é o caso dos norte-americanos. Tinha por objetivo colocar o livro em 2003 porque foi um período de rutura da confiança nesse país após o 11 de Setembro, quando todos queríamos estar juntos no combate ao mal. Só que em vez de terem feito algo construtivo, a América começou a desestabilizar todo o Médio Oriente e a torturar esses povos. Não se pode combater com o horror que viemos a conhecer com as atitudes da CIA ao ignorar cegamente os direitos humanos..Muitos países esconderam a violência da tortura praticada pelos norte-americanos em campos de prisioneiros como Abu Ghraib. A sociedade sueca concorda com essa forma de erradicar o terrorismo?.Não sei se atualmente alguém concorda com esta forma de combater o terrorismo através da tortura, até porque multiplica o número de terroristas. Se existiam terroristas antes do 11 de Setembro, com essas práticas eles aumentaram em muito. Foi uma atitude contraproducente..Durante a investigação ficou surpreendido com os artigos que revelavam o que se passava?.Fiquei muito surpreendido e nunca achei que pudesse ser tão mau. Até porque depois seguiu-se uma confusão em países como o Afeganistão, o Iraque e outros da região, aconteceu o caso da Síria e criou-se uma crise como é a dos refugiados que fogem para a Europa. Hoje, vivemos as consequências do que aconteceu nessa época..Micaela é de origem chilena. Como é que a Suécia olha para os imigrantes?.A sociedade foi muito mudada por eles e em muitas boas formas; temos uma cultura mais aberta, que ao mesmo tempo deixou os suecos mais divididos e multiplicou os populistas como aqueles contra quem Stieg Larsson lutava. Se temos uma sociedade diferente, também existe agora uma segregação muito grande em certas partes da Suécia e esse é um grande problema..A música e os músicos têm um papel importante no livro. Porque o impressionou a música afegã?.Eu sempre gostei de música clássica e tenho conhecimentos de violino e de piano, mas durante a investigação para o livro estive num evento cultural em que percebi o quanto era difícil a vida dos músicos em certos países muçulmanos. Que os matavam e destruíam os seus instrumentos. Isso fez-me perguntar o que assusta os muçulmanos na música, e vi que era um receio tão grande como o de as mulheres mostrarem o rosto. Então investiguei as razões psicológicas porque isso interessava para a minha história..Quando começou já sabia o fim do livro?.Eu tinha uma espécie de fim, mas o problema de quem escreve livros é ir descobrindo novas situações que complicam a ideia inicial. Acreditamos que temos a história toda na cabeça e depois descobrimos que há mais a acrescentar e fica muito complexo..Se a maioria dos policiais têm um fim medíocre, Obscuritas é o oposto. O que acontece com os autores que teimam em fazer um final inferior? .Isso é verdade. Creio que se deve ao facto de estarem tão envolvidos no que estão a escrever que o enigma se torna mais importante do que a resposta que lhe vão dar. Na estrutura de um policial o fim é por norma um anticlímax, porque o autor após construir todo o livro nem sempre consegue o grande final que deseja. No caso dos autores policiais, quando estão a acabar já estão tão cansados que só querem terminar o livro. Eu gosto de ler policiais, mas tenho sempre mais prazer no princípio e no meio, porque os finais quase sempre desapontam..Quanta da sua experiência como jornalista de crime está neste livro?.Posso dizer que em todo o livro se encontra essa minha experiência, mas acho que acabei por ser mais repórter de investigação criminal enquanto escrevia sobre Mikael Blomkvist e a série Millennium. Sem dúvida..A Netflix está a passar uma minissérie sobre a o assassínio de Olof Palme. A investigação foi um desastre e o autor da morte pode nem ser o verdadeiro. A polícia sueca é medíocre ou houve razões políticas para um encobrimento com várias décadas?.Ainda não vi porque é muito recente, mas sei que a investigação foi um desastre completo e não se pode ter a certeza de que se encontrou o verdadeiro culpado. A força policial era uma tragédia e tinha uma agenda própria. O investigador principal queria mais poder e desejava apresentar uma tese mais espetacular do que aquela que poderia ser a verdade. Poderiam existir razões políticas também, mas não acredito que fosse intenção do Estado ocultar a verdade..David Lagercrntz.Porto Editora.398 páginas.Um thriller com suspense presidencial.Com poucos dias de diferença da publicação de Obscuritas, a Porto Editora lançou um outro livro capaz de impedir o leitor de fazer outra coisa que não ler de seguida as suas quinhentas páginas. Trata-se de Estado de Terror, um thriller escrito a meias por Hillary Clinton e Louise Penny, talvez muito mais pela segunda do que pela primeira, mas essa divisão não interessa, afinal o marido, Bill Clinton, já fez anteriormente o mesmo com o autor best-seller James Patterson. A história é simples e pisca o olho à carreira política de Hillary Clinton pois a protagonista é uma secretária de Estado da administração norte-americana. Louise Penny já não é uma estreante nestas andanças e tem um longo percurso literário, daí que pegue(m) num argumento muito autobiográfico, um bom truque porque faz com que o leitor esteja sempre à procura de comparações com a verdadeira 67ª secretária de Estado..Para quem aprecia o thriller clássico norte-americano, este é dos melhores exercícios do género. Tudo começa com uma visita oficial à Coreia do Sul que a protagonista acaba de realizar e pouco depois de aterrar nos Estados Unidos apercebe-se de uma complicada situação política que pretende derrubar o governo que integra. A partir daí, é um nunca parar de viagens e encontros com autoridades de outros países para evitar um golpe palaciano que entregará a governação a populistas que são contra a fraqueza dos Estados Unidos como potência mundial. A secretária de Estado mais parece uma espia tal é a sucessão de situações em que se coloca de modo a salvar a democracia americana, situações em que o leitor facilmente identifica o desnorte de Trump, o desejo de vingança da supremacia branca face às mudanças sociais, as disputas entre militares, assessores e entidades políticas americanas, europeias, árabes e israelitas, a máfia russa e os negociantes de armas nucleares que podem repetir e ampliar o efeito dos atentados do 11 de Setembro..Hillary Rodham Clinton e Louise Penny.Porto Editora.510 páginas