O escritor israelita David Grossman confessa-se não crente mas ao mesmo tempo garante é um estudioso da Bíblia desde há décadas. Não como muitos outros que passam anos a analisar duas linhas do livro, mas com muito empenho e curiosidade. A tradução de O Mel do Leão - O Mito de Sansão que agora é publicada em Portugal recupera uma edição de 2006, encomendada ao autor para uma coleção sobre os grandes mitos da humanidade. .Não será por acaso que Grossman escolheu a história bíblica de Sansão, é uma das que mais poderão entusiasmar um romancista devido ao facto de Dalila ser capaz de quebrar com um simples corte dos seus cabelos todo o poder de uma figura que os próprios israelitas evocam como um herói comparável à história da nação. Para Grossman, o episódio de Sansão "é um grande argumento para um escritor" e não só, "daí que existam tantos livros sobre a história dele, filmes, e até Tom Jones cantou uma canção com o nome Delilah"..Grossman não é apaixonado apenas por este mito: "O de Adão e Eva agrada-me muito devido à história do seu princípio enquanto casal, as diferenças entre ambos e o modo como violaram a vontade de Deus tentados pelo diabo e pela serpente. Deve-se reparar que o diabo foi criado por Deus no próprio paraíso, o que não aconteceu com Adão, tendo sido feito fora do paraíso." O entusiasta da Bíblia considera que este é um manancial de histórias que merecem continuar a ser esmiuçadas e destaca um dos aspetos que mais lhe agradam: "É muito rica em histórias de família e sou fascinado por elas pois é onde acontecem os maiores dramas da humanidade. Ao finalizar a entrevista, ainda se pergunta a opinião de David Grossman sobre a mudança da embaixada dos Estados Unidos de Telavive para Jerusalém. Que tem um espanto como primeira resposta: "O que interessa isso, já lá vai um ano!".Começa o livro assim: "Sansão, o herói, eis o que toda a criança judia aprende a chamar-lhe da primeira vez que ouve contar a história." Discorda da representação histórica?.Ninguém sabe se existiu tal personagem e se não passa de um mito, mas no judaísmo ele permanece como um grande herói e até é visto como um símbolo ou como Israel deve agir para ser forte e vigoroso e ao mesmo tempo cruel quando é necessário. Apesar de Sansão ser uma personagem muito problemática, mesmo assim teve direito a um grande espaço na Bíblia, o que quer dizer que os "editores" da Bíblia acharam que seria importante por servir de exemplo. No entanto, considero Sansão como uma pessoa problemática porque necessita de ser amado e compreendido devido à sua solidão e por ser detestado não só pelos filisteus mas entre o seu próprio povo..Sansão faz parte das histórias da Bíblia, mas analisa-o como se fosse real. É a melhor forma de o explicar?.Creio que Sansão parece real porque difere de muitas personagens da Bíblia. Não é um clichê de uma identidade mas formado por grandes contradições interiores. Tanto é forte como fraco, brutal como poético e cheio de desejos, o que o torna mais compreensível e passível de uma identificação com ele. Sentimos que é um ser humano apanhado num destino muito especial que lhe foi imposto por Deus. É o caso do seu desejo sexual, que lhe terá sido imposto por um Deus que o queria envolvido com os filisteus de uma forma profunda, tanto que lhe escolheu uma mulher filisteia, o que é surpreendente para um nazareno..Sansão nasce com o destino escrito ao pormenor. É fácil para o cidadão atual aceitar uma situação destas ou, pelo contrário, é o que a humanidade anseia?.Essa é uma questão filosófica muito complexa. Talvez se procure saber durante a vida o papel do destino, no caso de Sansão, ele é incapaz de perceber a força do destino enquanto sente a existência presa num enigma diferente dos que o cercam e sem perceber a razão de ser assim. Muitos dos episódios da história de Sansão resultam da situação e do desejo de ser compreendido..Ao referir a construção da personagem da mãe de Sansão destaca o facto de ser raro no texto bíblico mostrar sentimentos como neste caso. Porque terá sido escrito assim?.Esse é o estilo dos textos bíblicos, sempre muito condensado nos textos essenciais, nos quais dificilmente encontraremos emoções e sentimentos. Temos de os adivinhar, sendo muito diferente da literatura atual em que os escritores estão mais obcecados com emoções e não apenas com a dimensão física como acontece na Bíblia. A mãe de Sansão é muito rica em reações físicas mas dificilmente sabemos o que pensa. Ela estava muito feliz, depois triste ou desconfiada. O leitor tem apenas a ação ou a velocidade dos seus movimentos, o que cria um sentido devido a uma quantidade de elementos literários sofisticados..A Bíblia raramente se preocupa com a componente psicológica das "personagens". Porque o faz exaustivamente neste ensaio?.Estou certo de que há vários livros escritos sobre Sansão com mais páginas, o que faço é uma forma muito judaica de estudar: os judeus ao longo da história costumam ler a Bíblia com uns óculos de aumentar e muitas vezes estudam durante um ano pouquíssimas linhas. Quando se tem um texto tão condensado e rico podemos ler-nos a nós próprios através desse texto sem nunca o acabar. Baseada nestas poucas linhas sobre Sansão escreveu-se toda uma literatura, como se fez também sobre o rei David ou Salomão. O que se quer é compreender e investigar e não encontrar uma resposta definitiva ou uma conclusão sobre estas figuras tão intrigantes. É uma questão de tradição e, não sendo eu religioso nem crente, leio a Bíblia como um documento de grande literatura, um texto que me diz bastante sobre o meu povo e a relação com outros povos, a singularidade dos nossos enigmas que criam muitos ódios e antagonismos e todo o tipo de estereótipos e demonizações contra nós próprios..Não ser crente torna mais difícil ficar frente a frente com certos textos bíblicos?.Não dificulta, antes torna mais interessante. Pode ler-se e gostar-se da Bíblia em muitas camadas e ser-se ao mesmo tempo um não crente. A maior parte dos judeus em Israel não são crentes; faz-se muitas vezes esse erro de achar que os hebreus são religiosos e até fanáticos, mas creio que 80% dos israelitas são pessoas tradicionais que têm respeito pela religião dos seus pais..Pode-se dizer que a população de Israel vê em Sansão uma metáfora da própria nação?.Sim, os colonos israelitas na Cisjordânia olham-no como herói e até têm uma canção especial em que exortam Sansão para poderem ter a sua vingança. Creio que pode ser olhado como uma metáfora, porque a relação de Sansão com o próprio poder era muito problemática. Fora-lhe imposto por decisão de Deus, que o condicionava, daí que muitas vezes compare essa situação com o nosso poder militar - acredito que temos de ser fortes e com um grande poder militar pois estamos no Médio Oriente, o lugar mais violento e cruel do mundo. Mas é muito fácil confundir o exército como uma força com um fim em si mesmo em vez de a força militar atual ser um veículo para estabelecer uma nova realidade com os nossos vizinhos e um caminho para uma paz com os palestinianos. Essa é uma parecença entre nós e Sansão..Vê-se Sansão como alguém dominado por forças estranhas e com um comportamento de autodestruição. É a situação de Israel?.Creio que Israel está a comportar-se de forma autodestruidora, infelizmente pertenço a uma minoria que pensa assim. Acredito que as motivações de Sansão e de Israel são diferentes, mas a atitude dos políticos deriva do medo, enquanto nele não..O que pensa da mudança da embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém?.O que interessa isso, já lá vai um ano! Creio que no fim do processo de paz entre israelitas e palestinianos, que acontecerá um dia destes, todas as embaixadas devem mudar-se para Jerusalém, porque é a nossa capital. Mudar agora é infantil e ridículo. Talvez o senhor Trump diga que não há problema em apagar o problema dos refugiados palestinianos, mas este é um problema que reaparecerá repetidamente até ser resolvido de forma justa para ambos os lados. Portanto, considero que foi uma irresponsabilidade.. O Mel do Leão - O Mito de Sansão .É a mais recente tradução das obras do escritor israelita David Grossman. Publicado pela Editora Elsinore, tem 128 páginas.