O Museu da Farmácia, sempre atento à história da medicina e da saúde em Portugal, já está a incorporar material relativo a esta pandemia? Claro. O museu tem como objetivo ilustrar a história através de peças únicas dos fenómenos da saúde. A questão não é apenas pensarmos na medicina, mas a globalidade da saúde e aí, sobretudo com atenção ao caso português, encontrando peças que possam registar museologicamente como é que está a ser possível combater esta pandemia..Pode dar exemplos? Até vou começar pelo lado jornalístico. As pessoas esquecem-se muitas vezes do papel que os jornalistas têm nesta divulgação e a forma como estão expostos à doença. O caso da Rosário Salgueiro, da RTP, e da reportagem numa farmácia francesa onde um farmacêutico português fazia gel desinfetante, importantíssimo para a contenção da doença, ou a máscara solidária da vizinha do Bento Rodrigues, da SIC, que foi referenciada pela presidente da Comissão Europeia como exemplo a seguir. Ainda um fato completo de proteção vindo do Camião Esperança da TVI/Global Sports e a primeira página do DN a noticiar os primeiros casos de infeção em Portugal. Também importante neste projeto de investigação histórica e museológica foram a integração de peças como os primeiros frascos de amostras com a marca do Hospital de São João e a referência do covid-19 , frascos de gel desinfetante produzido pelo Laboratório Militar (quando estava esgotado), a flow cell da primeira sequenciação do vírus SARS-CoV-2 em Portugal usando tecnologia Nanopore feita pelo Instituto Gulbenkian; as fotos da equipa de farmacêuticos e do equipamento que está a ser feito e utilizado pela Faculdade de Farmácia de Lisboa no rastreio da pandemia; o kit de análise rápida de anticorpos feito pela Fundação Champalimaud, o discurso do primeiro-ministro sobre o estado de emergência..Têm uma perspetiva abrangente daquilo que marca a pandemia, desde o kit que faz o teste até ao discurso de políticos, porque são coisas únicas? Claramente, o discurso oficial de implementação do estado de emergência do senhor primeiro-ministro, como o discurso do Bloco Esquerda na cerimónia do 25 de Abril, no qual enuncia todas as categorias profissionais da saúde que estão na linha da frente deste combate. Julgo que foi único caso nos discursos desse dia. Mas a análise política passa também pela oferta do Vasco Gargalo do seu primeiro cartoon sobre o vírus. E não posso deixar de referir mesmo uma aplicação que está a ser usada pela Organização Mundial da Saúde, que é feita pela empresa Glintt, que é portuguesa - estão a usar a app para análise não só da pandemia mas também dos recursos. O Museu da Farmácia não vive a olhar para o passado, somos sempre um museu atento à história presente..Depois de o pior passar e de haver tempo para fazer trabalho museológico, significa que quem visitar o Museu da Farmácia vai já ter referências a esta pandemia. Em poucos meses? Não sei se vai ser de imediato porque, e isto é outro assunto, não sabemos quando é que as pessoas vão voltar aos museus. Mas claramente o Museu da Farmácia vai ter uma vitrina a mostrar como foi possível sobreviver a este momento..Quem já visitou o Museu da Farmácia sabe que têm desde múmias egípcias até ao corno de um narval, tido como sendo de unicórnio e com poderes mágicos, também têm livros de grandes médicos ao longo da história. Em relação a pandemias, por exemplo a gripe espanhola, o que há? Da gripe espanhola só temos algumas páginas da revista Ilustração Portuguesa e temos também copiadores de farmácias que têm algumas fórmulas dos medicamentos usados nessa altura. São livros nos quais se mostra o que é que o farmacêutico fez e para quem é que fez, ou seja, simplesmente salvar vidas..Havia medicamentos feitos propositadamente para combater essa pandemia de há um século? O recurso mais à mão, mais rápido para se ter acesso aos medicamentos, eram as farmácias, quer na pandemia da gripe espanhola, quer na cólera, quer noutras doenças dos séculos XIX e XX. As farmácias tinham laboratórios, onde manipulavam esses medicamentos para a população local. Era muitas vezes a única resposta científica que as pessoas podiam ter com segurança, dado que na formação dos farmacêuticos a microbiologia era uma realidade. Ou seja, sabiam como fazer os medicamentos, tinham microscópios nas farmácias. Esta capacidade científica era essencial para combater estas epidemias a nível local e até a nível do bairro..Recordo-me da manchete que o DN fez há uns dias sobre os riscos que os farmacêuticos estavam a correr nesta pandemia. Ou seja, não só os que trabalham em âmbito hospitalar mas também os que estão nas farmácias, porque é um dos serviços que se mantiveram abertos ao público. Tem ideia de que esta exposição dos farmacêuticos também causa perigo? Sempre foi assim, porque é o lado mais acessível da ciência. É só percebermos que não há hospitais em todos os bairros mas há farmácias, e também em praticamente todos os povoados as há. Numa situação de pandemia isso torna qualquer farmacêutico exposto ao risco de ser infetado, precisamente por essa proximidade. Atenção, isto não é uma competição sobre quem é o primeiro a atuar ou a expor-se. Todos os profissionais de saúde, a começar por médicos, enfermeiros e auxiliares, estão na primeira linha do risco se analisarmos estas doenças desde a peste negra, a cólera, a febre tifoide e especialmente quando falamos de doenças que são transmitidas por via respiratória. Infelizmente, ao longo da história, os profissionais de saúde têm uma taxa de mortalidade muito elevada..Falou da peste negra. O Museu da Farmácia tem objetos alusivos a essa pandemia que tanta gente matou no século XIV? Temos uma máscara de um médico da peste negra, que é a máscara de proteção que tem aquele famoso bico. Isto é interessante porque as pessoas esquecem-se de que toda esta situação de proliferação das doenças era tida como vinda do ar, que era um ar impuro, daí o bico ser cheio por dentro com ervas para tentar filtrar esse ar. Também temos uma moeda alemã que tem a marca da peste negra. Temos microscópios do final do século XVII, que mudaram toda a nossa visão sobre a doença e a teoria do micróbios e acabam por ser interessantes nestes conceitos de proteção e de combate à doença. Só uma nota: é quando passamos a ter bases de dados sobre os micróbios e a sua relação com as doenças que começamos a encontrar a melhor forma de as combater. Tudo aquilo que sabemos hoje, de desinfetar as mãos, etc., só começou no século XIX..Dando um salto à sua condição de historiador, os políticos, os decisores que estudaram e leram a história, que leram como é que foram as outras pandemias e perceberam como é que os poderes públicos reagiram, estão mais preparados para lidar com o que se passa hoje? Não. Há um esquecimento quase natural. Recordamos o final da Primeira Guerra Mundial, mas nos compêndios de História há poucas referências do que foi a influenza, que teve mais mortos do que os combates de 1914-1918. O que se passa é que há pouco destaque sobre como combater as doenças, por isso é que, infelizmente, hoje vemos a incapacidade das pessoas de compreenderem a necessidade destes procedimentos. Desde a Idade Média, quando algumas doenças infecciosas vieram da Ásia, havia isolamento, houve isolamento quando da peste negra. Esteve sempre também presente a questão da economia. Há um discurso comum da cólera e da gripe espanhola a nível político: como salvar vidas e a economia.
O Museu da Farmácia, sempre atento à história da medicina e da saúde em Portugal, já está a incorporar material relativo a esta pandemia? Claro. O museu tem como objetivo ilustrar a história através de peças únicas dos fenómenos da saúde. A questão não é apenas pensarmos na medicina, mas a globalidade da saúde e aí, sobretudo com atenção ao caso português, encontrando peças que possam registar museologicamente como é que está a ser possível combater esta pandemia..Pode dar exemplos? Até vou começar pelo lado jornalístico. As pessoas esquecem-se muitas vezes do papel que os jornalistas têm nesta divulgação e a forma como estão expostos à doença. O caso da Rosário Salgueiro, da RTP, e da reportagem numa farmácia francesa onde um farmacêutico português fazia gel desinfetante, importantíssimo para a contenção da doença, ou a máscara solidária da vizinha do Bento Rodrigues, da SIC, que foi referenciada pela presidente da Comissão Europeia como exemplo a seguir. Ainda um fato completo de proteção vindo do Camião Esperança da TVI/Global Sports e a primeira página do DN a noticiar os primeiros casos de infeção em Portugal. Também importante neste projeto de investigação histórica e museológica foram a integração de peças como os primeiros frascos de amostras com a marca do Hospital de São João e a referência do covid-19 , frascos de gel desinfetante produzido pelo Laboratório Militar (quando estava esgotado), a flow cell da primeira sequenciação do vírus SARS-CoV-2 em Portugal usando tecnologia Nanopore feita pelo Instituto Gulbenkian; as fotos da equipa de farmacêuticos e do equipamento que está a ser feito e utilizado pela Faculdade de Farmácia de Lisboa no rastreio da pandemia; o kit de análise rápida de anticorpos feito pela Fundação Champalimaud, o discurso do primeiro-ministro sobre o estado de emergência..Têm uma perspetiva abrangente daquilo que marca a pandemia, desde o kit que faz o teste até ao discurso de políticos, porque são coisas únicas? Claramente, o discurso oficial de implementação do estado de emergência do senhor primeiro-ministro, como o discurso do Bloco Esquerda na cerimónia do 25 de Abril, no qual enuncia todas as categorias profissionais da saúde que estão na linha da frente deste combate. Julgo que foi único caso nos discursos desse dia. Mas a análise política passa também pela oferta do Vasco Gargalo do seu primeiro cartoon sobre o vírus. E não posso deixar de referir mesmo uma aplicação que está a ser usada pela Organização Mundial da Saúde, que é feita pela empresa Glintt, que é portuguesa - estão a usar a app para análise não só da pandemia mas também dos recursos. O Museu da Farmácia não vive a olhar para o passado, somos sempre um museu atento à história presente..Depois de o pior passar e de haver tempo para fazer trabalho museológico, significa que quem visitar o Museu da Farmácia vai já ter referências a esta pandemia. Em poucos meses? Não sei se vai ser de imediato porque, e isto é outro assunto, não sabemos quando é que as pessoas vão voltar aos museus. Mas claramente o Museu da Farmácia vai ter uma vitrina a mostrar como foi possível sobreviver a este momento..Quem já visitou o Museu da Farmácia sabe que têm desde múmias egípcias até ao corno de um narval, tido como sendo de unicórnio e com poderes mágicos, também têm livros de grandes médicos ao longo da história. Em relação a pandemias, por exemplo a gripe espanhola, o que há? Da gripe espanhola só temos algumas páginas da revista Ilustração Portuguesa e temos também copiadores de farmácias que têm algumas fórmulas dos medicamentos usados nessa altura. São livros nos quais se mostra o que é que o farmacêutico fez e para quem é que fez, ou seja, simplesmente salvar vidas..Havia medicamentos feitos propositadamente para combater essa pandemia de há um século? O recurso mais à mão, mais rápido para se ter acesso aos medicamentos, eram as farmácias, quer na pandemia da gripe espanhola, quer na cólera, quer noutras doenças dos séculos XIX e XX. As farmácias tinham laboratórios, onde manipulavam esses medicamentos para a população local. Era muitas vezes a única resposta científica que as pessoas podiam ter com segurança, dado que na formação dos farmacêuticos a microbiologia era uma realidade. Ou seja, sabiam como fazer os medicamentos, tinham microscópios nas farmácias. Esta capacidade científica era essencial para combater estas epidemias a nível local e até a nível do bairro..Recordo-me da manchete que o DN fez há uns dias sobre os riscos que os farmacêuticos estavam a correr nesta pandemia. Ou seja, não só os que trabalham em âmbito hospitalar mas também os que estão nas farmácias, porque é um dos serviços que se mantiveram abertos ao público. Tem ideia de que esta exposição dos farmacêuticos também causa perigo? Sempre foi assim, porque é o lado mais acessível da ciência. É só percebermos que não há hospitais em todos os bairros mas há farmácias, e também em praticamente todos os povoados as há. Numa situação de pandemia isso torna qualquer farmacêutico exposto ao risco de ser infetado, precisamente por essa proximidade. Atenção, isto não é uma competição sobre quem é o primeiro a atuar ou a expor-se. Todos os profissionais de saúde, a começar por médicos, enfermeiros e auxiliares, estão na primeira linha do risco se analisarmos estas doenças desde a peste negra, a cólera, a febre tifoide e especialmente quando falamos de doenças que são transmitidas por via respiratória. Infelizmente, ao longo da história, os profissionais de saúde têm uma taxa de mortalidade muito elevada..Falou da peste negra. O Museu da Farmácia tem objetos alusivos a essa pandemia que tanta gente matou no século XIV? Temos uma máscara de um médico da peste negra, que é a máscara de proteção que tem aquele famoso bico. Isto é interessante porque as pessoas esquecem-se de que toda esta situação de proliferação das doenças era tida como vinda do ar, que era um ar impuro, daí o bico ser cheio por dentro com ervas para tentar filtrar esse ar. Também temos uma moeda alemã que tem a marca da peste negra. Temos microscópios do final do século XVII, que mudaram toda a nossa visão sobre a doença e a teoria do micróbios e acabam por ser interessantes nestes conceitos de proteção e de combate à doença. Só uma nota: é quando passamos a ter bases de dados sobre os micróbios e a sua relação com as doenças que começamos a encontrar a melhor forma de as combater. Tudo aquilo que sabemos hoje, de desinfetar as mãos, etc., só começou no século XIX..Dando um salto à sua condição de historiador, os políticos, os decisores que estudaram e leram a história, que leram como é que foram as outras pandemias e perceberam como é que os poderes públicos reagiram, estão mais preparados para lidar com o que se passa hoje? Não. Há um esquecimento quase natural. Recordamos o final da Primeira Guerra Mundial, mas nos compêndios de História há poucas referências do que foi a influenza, que teve mais mortos do que os combates de 1914-1918. O que se passa é que há pouco destaque sobre como combater as doenças, por isso é que, infelizmente, hoje vemos a incapacidade das pessoas de compreenderem a necessidade destes procedimentos. Desde a Idade Média, quando algumas doenças infecciosas vieram da Ásia, havia isolamento, houve isolamento quando da peste negra. Esteve sempre também presente a questão da economia. Há um discurso comum da cólera e da gripe espanhola a nível político: como salvar vidas e a economia.