Da caixa de supermercado para a faculdade de medicina com 19,4 valores
A portuense de 19 anos, estudante no Colégio Júlio Dinis, trabalha desde os 15. Sai com os amigos à noite sempre que não está "de serviço", tem namorado e, em vez de ter explicações para melhorar os resultados, foi ela quem fez o papel de explicadora para aumentar o orçamento familiar. A somar a esta "normalidade", a jovem tem um percurso de vida atribulado, com uma mudança para outro continente e uma luta para pagar as contas, sem ser "um encargo" para os pais. Beatriz tem noção de que a sua história é "diferente" da de outros alunos com notas elevadas. "Sei que levar a vida que levei e ter essas notas não é comum, nem fácil. É difícil não ter essa noção quando se estuda no contexto de um colégio privado e se percebe a dinâmica das coisas. Não venho de uma família abastada e os meus pais não são médicos ou engenheiros. Na verdade, mal terminaram o ensino secundário. Além disso, tive de aprender a conciliar o trabalho com a vida de estudante, o que não é uma realidade muito frequente", conta ao DN.
Ao longo do ano letivo passado, Beatriz Araújo estudou de segunda a sexta, dando explicações a alunos mais novos, e manteve-se atrás da caixa de um supermercado ao fim-de-semana. "Não vou mentir, entre passar o fim de semana inteiro na caixa do Pingo Doce, dar explicações três horas por semana e passar algumas tardes no escritório da Bluebird, tudo se resume a menos horas de sono do que o aconselhado e muita força de vontade", confessa.
Na contabilidade dos seus afazeres, a jovem não conta os momentos em que ajudava os colegas de turma. "É uma aluna que não viveu apenas para os resultados individuais, mas esteve atenta aos que a rodeavam, demonstrando disponibilidade e paciência para ajudar os colegas com mais dificuldades", relembra o professor de matemática, Vasco Ribeiro. Já Pedro Mourão, docente de Física Química, destaca a versatilidade da aluna como a base do seu sucesso: "a Beatriz é muito curiosa, tendo mostrado interesse por diversas áreas da Ciência como por exemplo a Física, Astronomia, Física das Partículas, Química, Matemática. É, sem dúvida, uma aluna completa".
O empenho da jovem levou-a a conseguir entrar no curso de medicina da Universidade do Porto com média de 19,4. No exame nacional de matemática, a estudante teve 19,5. Nas disciplinas de Física Química e Biologia - provas de acesso a par de matemática - obteve 19 e 18,5, respetivamente. Valores que se somam às notas de frequência antes dos exames: 20 a todas as disciplinas. Após a realização das provas, apenas a nota de português baixou de 20 para 19. "Manchou um pouco a pauta, mas foi culpa minha. Enganei-me numa pergunta de escolha múltipla no exame de português e não consegui manter o meu 20", conta.
A agora estudante de medicina, acalentou o sonho desde a infância, embora tenha tentado "contrariar a escolha". "As pessoas dizem sempre a quem tem notas altas que devem ir para medicina e isso incomodava-me. Houve uma fase em que, para ser do contra, dizia que iria tirar outro curso, mas acabei por decidir com o meu coração", explica. Para poder escolher livremente, Beatriz Araújo quis garantir que teria nota para qualquer curso e foi o que conseguiu, mas diz ter contado com muito apoio. "Não cheguei aqui apenas pelo meu trabalho. Tive a sorte de estudar num colégio que é um lugar como duvido haver outro. Aqui criam-se ligações entre alunos e professores que dificilmente se encontram noutro lugar", sublinha. Foram os docentes, relembra, que lhe deram a mão nos momentos mais difíceis do seu percurso atribulado.
Foi na adolescência que Beatriz Araújo viveu o drama da emigração. O pai teve de se mudar para o Brasil. Seguiu-se-lhe a mãe. A jovem ficou com o irmão a cargo dos avós. Um período "doloroso", que recorda com amargura. "Foi muito duro e sentia muitas saudades. Algum tempo depois da minha mãe ir embora disse que também queria ir. Nessa altura, o meu pai tinha um bom emprego em São Paulo e pude ir para um colégio privado. Adaptei-me bem, mas quando estava a começar a fazer amigos, o meu pai perdeu o emprego e tivemos de nos mudar para o nordeste brasileiro. Fui para o ensino público e sofri. Não pelas condições físicas da escola, mas porque não aprendia nada de novo e sentia que ir ou não à escola era igual", conta.
Diz que os pais não acreditaram nos relatos feitos e pensavam que na origem das críticas estava a vontade de regressar a Portugal. "A dada altura o meu pai foi chamado para uma reunião e percebeu que era verdade. Estava no 9º ano e o meu secundário ia ficar comprometido", recorda. Pouco depois o pai da aluna foi assaltado - encostaram-lhe uma arma à cabeça - e a família regressou: "Voltamos sem nada. A minha mãe tinha deixado o emprego para ir para o Brasil e o meu pai não tinha uma empresa à espera dele. Já não tínhamos casa também".
Beatriz voltou para casa dos avós, vivendo, de novo, separada dos pais. "Foi um dos momentos mais difíceis a nível emocional e académico. Não estava a par da matéria e estava triste. Foram os professores, principalmente as professoras Mariana Fernandes e Sandra Paulo, que me ajudaram a ultrapassar as dificuldades. E o diretor do colégio, Marco Carvalho, a quem devo muito. Costumo dizer que me considero uma pessoa esperta e trabalhadora, mas que percorri o meu caminho pela mão dos melhores profissionais e, sobretudo, dos melhores seres humanos. Não encontro no dicionário palavras para expressar a gratidão que sinto por ter tido o prazer de aprender com pessoas que transcendem a condição de professor. São tutores, são guias, são amigos. Nunca deixaram de me consolar nos fracassos, motivar nas lutas, congratular nas vitórias e isso fez uma parte da aluna que fui e sou", afirma.
Foi nessa fase, ainda com 15 anos, que Beatriz começou a trabalhar como freelancer para não ser um encargo para a família. "Comecei por fazer trabalhos para a Bluebird, empresa para a qual o meu pai foi trabalhar de algum tempo depois de termos regressado. Depois passei a dar também explicações", recorda.
De acordo com o estudo "Estudantes à saída do secundário em 2017-2018" da Direção Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), divulgado em janeiro de 2019, "os percursos (académicos) sem desvios acontecem de forma mais expressiva nos alunos que estudam em exclusivo (86,2%) face aos trabalhadores estudantes (74,7%)". Os referidos desvios são também mais significativos no caso dos alunos que passam por uma mudança de país, com um aumento de 4,5% nos desvios (retenções e mudanças de curso).
Dos cerca de 67 mil alunos que concluíram o ensino secundário em 2017, 63,2% continuaram a estudar em exclusivo, 22% estavam exclusivamente a trabalhar, 6,8% estudavam e trabalhavam ao mesmo tempo e, por último, 6,4% estavam à procura de trabalho e não estavam a estudar. Segundo o mesmo estudo, a percentagem dos alunos que afirmam ter entrado no mercado de trabalho enquanto ainda estudam devido a dificuldades económicas equivale a mais de um quarto do universo total de trabalhadores-estudantes (27,2%).
É esta a realidade da aluna Beatriz Araújo e que a torna, segundo os seus professores, um caso "quase único" por conseguir concluir o ensino secundário com notas de "excelência" tendo em conta a sua realidade e história de vida. Vítor Pinto, professor de ciências da aluna no 3º ciclo, sublinha, por isso, o seu valor. "A Beatriz é acima de tudo a prova de que o jovem comum pode ascender à excelência, a Beatriz é uma aluna que divide o seu tempo entre o trabalho e o estudo. Não alicerça o seu estudo em explicações individuais e reconhece o valor do trabalho, não atribuindo um peso negativo a esse trabalho (que lhe vai retirar tempo para estudar), mas como algo que lhe vai dar latitude na sua visão do mundo e que lhe dá força para lutar pelos seus objetivos", diz.
O facto de ser trabalhadora-estudante é encarado por Beatriz Araújo como uma mais-valia, confessando mesmo que, ainda que pudesse abdicar de trabalhar, não o faria. "Foi difícil por vezes pegar nos livros e focar a mente na matéria, ao invés de sucumbir ao cansaço, mas ser trabalhadora-estudante ajudou-me a valorizar o meu percurso académico de uma forma diferente, e isso sim deu-me motivação para insistir no estudo constante", conclui. A jovem estudante mudou há poucas semanas de emprego. Está a trabalhar numa loja de um shopping, porque lhe permite ter "um horário mais estável" e já planeou o seu futuro a longo prazo. Quer ser cirurgiã, embora receie a dificuldade em conciliar a especialidade com uma vida familiar equilibrada. "Quero muito ser mãe um dia e ser cirurgiã seria difícil de conciliar com a maternidade. Por isso não sei se irei por esse caminho, mas era essa a minha vontade", refere. Seja este ou outro o "caminho", segundo o professor Vítor Pinto, tudo indica que o futuro da jovem será brilhante porque "a Beatriz apresenta uma forma de estar na vida que se diferencia muito de outros alunos com notas de excelência".