São explicações parecidas, as que Pedro Jóia e Cuca Roseta apresentam para os dois álbuns de tributo que ambos editam hoje, respetivamente, Zeca e Amália por Cuca Roseta, cujos títulos revelam de imediato, aliás, a identidade dos homenageados. Em conversa com o DN, ambos confessam estar a cumprir um "sonho antigo", de um dia poderem reinterpretar os temas destes seus "heróis musicais" e também por isso, tanto um como outro, utilizam bastantes vezes a palavra "afeto" e não tanto tributo ou homenagem para classificarem os respetivos trabalhos.."A simplicidade do José Afonso cativou-me desde miúdo. Aquelas melodias atingiram-me em cheio, mesmo sem o perceber na altura. Foi um homem que influenciou muito a minha geração, bebíamos muito dessa cultural popular, celebrada na música dele e, ao longo da vida, nunca quis perder esse azimute", admite Pedro Jóia, 49 anos e há muito considerado um dos melhores guitarristas nacionais. Inicialmente, pensou em doze temas, que acabaram reduzidos a apenas, todos eles "canções emblemáticas do repertório de José Afonso, como A Formiga no Carreiro, A Morte Saiu à Rua, Venham mais Cinco, Vejam Bem ou Traz Outro Amigo. "Como iam ser ser versões instrumentais, sem a parte da palavra, que é tão importante na obra do Zeca, era importante que fossem imediatamente reconhecidas por quem as ouve", justifica Pedro Jóia, reconhecendo, mesmo assim, a omnipresença dessas mesmas palavras, mesmo sem serem cantadas. "As letras estão sempre subjacentes, por continuarem muito presentes na memória de todos e foi por isso que decidi inclui-las no booklet do disco", revela..Outro critério de escolha foi que os temas funcionassem bem na guitarra e por essa razão alguns clássicos acabaram por ficar de fora, como é o caso de Redondo Vocábulo. "Tem uma estrutura musical mais complexa e sem o apoio da palavra não fazia muito sentido para mim inclui-la", assume o músico..Já para Cuca Roseta, o principal critério foi o de contar a sua própria história no fado, a partir de dez temas popularizados por Amália e nunca antes gravados pela fadista lisboeta. "Foi através dela que comecei a cantar e por causa dela continuei", garante Cuca Roseta. A importância dessa influência só foi assimilada mais tarde, quando começou a cantar "mais a sério" e descobriu a sua "principal inspiração" em Amália. "A minha voz não era tão apropriada para o fado tradicional como o era para fado canção, com refrão, como Amália sempre cantou. Foi muito interessante perceber que, nesse percurso, muitos dos meus fados de maior sucesso também foram cantados pela Amália. Devo-lhe muito daquilo que sou." Não é por isso de admirar que o disco inclua diversas fases e momentos da carreira de Amália Rodrigues, num alinhamento desenhado "mais por uma questão de afetos" do que propriamente por qualquer lógica de marketing..Destacam-se, por exemplo, Estranha Forma de Vida e Lágrima, "duas escolhas óbvias, por terem letras escritas pela própria Amália Rodrigues". Ou o menos conhecido Vagamundo, com o qual assume ter "uma ligação emocional muito forte". Já o clássico Ai Mouraria era uma presença obrigatória, por ter sido o primeiro fado que Cuca cantou "ainda muito nova", quando ainda nem se atrevia a pegar em Com Que Voz, "um desejo de sempre", finalmente alcançado neste disco. "É o meu fado favorito e sempre disse que só o cantaria quando sentisse ter a maturidade necessária para o fazer", confessa a fadista de 38 anos, unanimemente considerada uma das grandes vozes do fado da atualidade. Não se julgue, no entanto, tratar-se de um mero álbum de versões, pois Cuca Roseta consegue dar um cunho muito pessoal a cada um dos temas, o que nem sempre é fácil, tratando-se de Amália Rodrigues. E fá-lo tanto ao nível da voz como da música, em especial nos temas em que é apenas acompanhada ao piano, por Ruben Alves. "Poucos músicos me conseguem acompanhar de forma tão profunda a cantar o fado. Temos uma intimidade única quando tocamos juntos, mesmo em estúdio, que normalmente só me é possível com outros músicos quando atuo ao vivo", afirma..Também Pedro Jóia se fez acompanhar de um velho amigo companheiro de estrada, o percussionista José Salgueiro, para o ajudar a recriar as canções de José Afonso sem se deixar dispersar muito pelo virtuosismo. "Apesar de toda complexidade que acrescento às interpretações, as melodias estão sempre em primeiro lugar, porque acima de tudo trata-se de um disco de afetos", sublinha Pedro Jóia, realçando também "o respeito" de José Afonso pelo trabalho dos guitarristas, como Rui Pato ou o Bóris, com quem colaborou nalguns dos seus discos mais emblemáticos. "O Zeca não era guitarrista, mas fez da guitarra o seu instrumento de composição. O Fausto uma vez disse-me que a relação dele com a guitarra até era muito rudimentar. Mas esse lado autodidata de abordar o instrumento é muito bonito, é uma forma muito pura de se compor." Adiada ficará, para já, a apresentação do disco ao vivo, mas fica a promessa de que "acontecerá, qualquer dia destes", porque as saudades do palco já são muitas. "Sinto falta da relação com o público, mão esquecendo, também, que os concertos são o nosso principal ganha-pão.".Quanto a Cuca Roseta, parece ter resolvido, por enquanto, essa questão, apesar da pandemia a ter obrigado a cancelar a digressão de apresentação do disco. Depois de ter andado pelas ruas de Lisboa, com os seus músicos, a cantar para as pessoas em casa, a bordo de um camião transformado em palco, a fadista prepara-se para repetir o feito noutros pontos do país. "Fui contactada por alguns municípios e vamos começar em breve. Ainda não é o espetáculo deste disco, mas temos um bloco dedicado a Amália Rodrigues, ao qual as pessoas reagem sempre muito bem, porque ninguém se esquece da Amália."