Umas das coisas mais reluzentes deste novo projeto de João Botelho a partir de colagens de textos de Alexandre O"Neill é a força positiva do elenco feminino. Atrizes luminosas e felizes com um poder especial. Um super-poder em estado de graça e nas quais se destaca a personagem de Crista Alfaiate, mulher em busca dos muitos Alexandre O"Neill da Lisboa artificiosa. Uma atriz em modo de perfeição, uma presença de um impacto radiante..Antes deste filme parecia que era ponto assente que as palavras do O"Neill eram apenas território da literatura, não podiam pertencer ao cinema ou ao teatro... Concordo. Isso assustava-me mas era o desafio maior. O certo é que há toda esta energia maior do João Botelho e toda uma interpretação que ele mete para cima dos textos, sobretudo na forma de se ler. Aliás, nos ensaios era o João a ler os textos para os atores... E nós vamos percebendo como ele vibra com aquilo. No caso do sonho e do tribunal, há que adaptar a situação à palavra. Um cuidado para não banalizar a palavra que é poema... Ou seja, não fazer naturalista e aceitar o artifício. Só agora filmei com o João mas o artifício aqui era muito marcado e a ideia era mesmo ir à boleia disso, aproveitar o sabor da poesia..Sentiu então a métrica do estilo de João Botelho? Senti bastante, sobretudo na abordagem à luz, até porque aqui são planos de sequência - está tudo muito vincado e marcado. É mesmo do tipo: "Passa o carro, vem o figurante, espera pela câmara e diz isto aqui!". Tem de ser toda essa marcação porque a câmara e os atores estão todos orquestrados..O João tem falado muito do lado onírico mas com a sua personagem não se pode falar também de um lado de pesadelo? Sim, a minha personagem também entra para dentro do pesadelo. Trata-se da confusão de toda esta informação - pode parecer contraditória mas cabe na mesma pessoa. Esta minha figura, a Maria António Oliveira mascarada e disfarçada dentro do guião, está a tentar apanhar todas as facetas do poeta. É tarefa árdua, não só pela vida dele mas pelo teor díspar dos textos... O pesadelo está igualmente nesse universo. Um universo sarcástico e com o impacto da noite..É a tal coisa de o surrealismo poder ser negro... Sim, sim! Quando a personagem do Cláudio fala da noitada estamos a ter o outro lado de Lisboa, o bas-fond, uma Lisboa mais empobrecida....Depois, há também uma certa intemporalidade que aqui passa... Sim, é uma universalidade que está nesta poesia. Isso tem também a ver com a forma como o João Botelho se aproxima da obra, do autor e do homem. Não é por acaso que até vemos uma rave! Ou o próprio plano inicial num armazém que basicamente nos está a dizer que vamos entrar numa ficção e que tudo isto é encenado. Trata-se de desconstruir o artifício. Dessa forma, as possibilidades ficam em cima da mesa para cada um de nós fazer as suas projeções..A precariedade desta profissão já a inquietou mais? Não, continua a ser extremamente inquietante! Não podemos aceitar isso como parte da regra... Isso era baixar os braços. Isto tem mesmo que mudar! Parte das regras e das leis têm de começar a dar a todos os artistas condições de trabalho. E é realmente necessário mais dinheiro para a cultura, seja para o cinema, teatro ou para a música..Os atores têm de ser mais protegidos? Sim, muito mais. É rara a vez que vou trabalhar com contrato de trabalho e muitas vezes não há certezas de nada.... Às vezes, nem o cachet avançam. Isto não pode acontecer, não pode ser! É tão fora de moda, bem como chamar apenas os amigos....Ficou um bocado conotada de "atriz de Miguel Gomes"... Crê que isso poderá ter sido prejudicial em alguns castings? Claro que se tiver essa conotação é incrível, mas senti isso, sim... Fica no ar isso. É uma boa pergunta, eu própria gostava de saber a resposta. Foi com muita alegria que, de repente, recebi este convite do João Botelho, que não teve problemas nenhuns com o facto de ter filmado com o Miguel... Depois de fazer o As Mil e uma Noites confesso que pensei que poderia estar a acontecer essa coisa... Ficou no ar..Em Portugal talvez o cinema português tenha as suas capelinhas. Pois, não percebo... Com certos atores isso não se verifica, transitam livremente de cineasta para cineasta..No geral, o cinema português gosta de atores? Ou acha que os não-atores, os pescadores e taxistas são mais requisitados? Sinto as duas coisas e não são incompatíveis. Claro que percebo a diferença de um rosto de um ator em oposição a um rosto verdadeiro carregado pelo sol, embora também perceba que um ator consiga fazer um pescador ou um taxista com a mesma intensidade..dnot@dn.pt