O futebol está à beira de uma crise financeira sem precedentes. A pandemia do covid-19 instalou a incerteza em todos os clubes, desde os mais poderosos aos mais pequenos, mas também nas diversas competições a nível nacional ou continental..As declarações desta semana de Greg Clarke, presidente da Federação Inglesa de Futebol, foram suficientemente perturbadoras. "O futebol tem pela frente desafios financeiros que vão além da compreensão de quem comanda. Vamos enfrentar perdas de clubes e de ligas por questões financeiras. Muitas comunidades podem perder as suas equipas devido a esta adversidade sem precedentes. Todos os acionistas precisam de enfrentar o problema e dividir os prejuízos para manter o jogo vivo", disse..Um alerta que não diverge da visão de Daniel Sá, diretor executivo do Instituto Português de Administração de Marketing (IPAM) e especialista em marketing desportivo. "É possível que alguns clubes desapareçam, afinal o futebol está bastante exposto, pois mantêm-se todos os custos que já existiam antes da pandemia e as receitas desceram praticamente a zero. É natural que alguns clubes não consigam resistir a este momento de crise", admitiu ao DN..Sem jogos, a consequência imediata é a ausência de receitas de bilheteira, dos patrocinadores e de televisão, porque afinal "os operadores não pagam os jogos que não transmitem". Além disso, "como as pessoas estão em casa e as lojas estão fechadas, não se vendem produtos de merchandising"..Daniel Sá avisa que, provavelmente, o primeiro "grande impacto" desta retração económica no futebol será visível "nas transferências de jogadores". É que sem receitas não há dinheiro e, como tal, "vão deixar de se fazer negócios por somas astronómicas". Um bom exemplo disso foram as notícias que circularam em Espanha segundo as quais o Real Madrid estaria a ponderar adiar por um ano a contratação do avançado francês Kylian Mbappé, atualmente no PSG, precisamente por causa das consequências financeiras do novo coronavírus..Obrigatório baixar salários.No fundo, a crise que já se avista será "um problema que atingirá todos os clubes, desde os pequenos aos colossos", sublinha o diretor executivo do IPAM. E os primeiros sinais foram dados por alguns dos emblemas mais poderosos, casos do Barcelona, da Juventus e do Atlético de Madrid, que foram dos primeiros a lançar para a mesa o corte de salários dos jogadores. No caso do clube catalão, os cortes foram de 70% e a Juventus de Cristiano Ronaldo anunciou que as reduções nos salários dos jogadores entre março e julho permitem ao clube poupar 90 milhões de euros. De acordo com Daniel Sá, há duas formas de explicar este fenómeno, e a primeiro tem que ver com o facto de "talvez serem os clubes mais profissionais ao nível de gestão e, como tal, conseguiram antecipar mais depressa aquilo que estava em causa"..Contudo, há outra explicação que merece a devida atenção. "Trata-se dos clubes mais ricos, mas sentiram mais depressa a necessidade de baixar os salários, precisamente por causa do modelo de negócio que praticam", explica, lembrando que da estratégia destes clubes poderosos faz parte "o pagamento de salários altos para atrair os melhores jogadores, que são suportados por patrocínios de valor mais alto" do que o normal. "Como a receita baixou, tiveram de avançar para a diminuição do salário das suas estrelas", justifica..Daniel Sá avisa que "ainda não há respostas concretas para aquilo que será o futebol depois da pandemia", pois primeiro "é preciso saber se os campeonatos vão acabar". Se for esse o panorama, o especialista em marketing desportivo defende que há três cenários possíveis. "O mais grave seria os campeonatos não chegarem ao fim, pois a situação tornava-se dramática para os clubes que deixariam de ter qualquer retorno financeiro", começa por dizer. "O cenário ótimo e, ao mesmo tempo, o mais improvável de acontecer seria o regresso das competições com jogos à porta aberta, o que tornaria a crise mais suave e permitiria recuperar parcialmente as receitas", acrescenta. Finalmente, aquele a que chama "o cenário intermédio, com os campeonatos a acabar com jogos à porta fechada, o que permitiria a recuperação das receitas de televisão, embora não as de bilheteira"..Alemanha mais cedo, Inglaterra alerta.Para evitar o cenário mais dramático, os clubes da Bundesliga entraram em contraciclo em relação às restantes ligas europeias. Os jogadores do Bayern Munique, do Borussia Dortmund e companhia já regressaram aos treinos, apesar de as autoridades sanitárias da Alemanha manterem as medidas de restrição à circulação de pessoas, com o objetivo de controlar da disseminação do vírus..No entanto, é preciso que regressem as transmissões televisivas dos jogos para que os clubes voltem a ter dinheiro a entrar nos cofres e, assim, evitar o descalabro que foi prognosticado por um estudo recente de uma entidade alemã, segundo o qual 13 dos 36 emblemas das duas primeiras divisões da Bundesliga correm o risco de entrar em insolvência. E isto apesar de haver um grande movimento solidário no sentido de os grandes ajudarem os mais pequenos, como prova o facto de Bayern, Dortmund, RB Leipzig e Bayer Leverkusen terem disponibilizado 20 milhões de euros para ajudar aqueles que estão em maiores dificuldades financeiras..Em Espanha, a crise também está a ser acompanhada de perto, com a Liga a aconselhar aos clubes a recorrer a processos de redução do tempo de trabalho, com consequente diminuição dos salários dos jogadores. Em Inglaterra, alguns clubes, casos do Tottenham, de Mourinho, e do Liverpool, já diminuíram os ordenados a funcionários (não aos jogadores), enquanto Newcastle, Norwich e Bournemouth reclamam apoios do Estado. O Southampton é para já o primeiro emblema da Premier League cujos jogadores aceitaram reduzir os salários "para ajudar a proteger o futuro do clube, das pessoas que trabalham nele e da comunidade" que a equipa serve..A Premier League tinha proposto aos clubes uma redução de 30% nos ordenados dos jogadores, mas não conseguiu chegar a acordo com o sindicato dos futebolistas. A entidade que rege o futebol em Inglaterra anunciou perdas previstas de 1100 milhões de euros no caso de a época não terminar..Em Espanha, Javier Tebas, presidente da Liga, também estima em cerca de mil milhões de euros o prejuízo dos clubes, caso o campeonato não seja retomado. Num cenário de regresso da prova com jogos à porta fechada, o dirigente espanhol prevê que "as perdas serão de 300 milhões"..Assimetrias podem diminuir.Daniel Sá admite que no imediato "a Premier League poderá deixar de ser o produto fantástico que tem sido nos últimos anos". No entanto, acredita que "vai recuperar", pois "é um exemplo de como os clubes devem entender-se para um bem comum". "Considero que seja a liga mais preparada para lidar com esta situação de crise", assumiu o especialista em marketing desportivo. Mas será que esta crise poderá ter alguns efeitos positivos? Daniel Sá acredita que podem "diminuir as assimetrias" entre os clubes mais poderosos e os restantes. "Na Europa, a correlação entre o dinheiro e o sucesso desportivo é cada vez mais forte, algo que foi combatido pelos americanos com ligas fechadas e com tetos salariais", lembra, mostrando-se por isso otimista e que, no cenário atual, "é bem provável que a FIFA aproveite a crise para suavizar essas diferenças". Assim, na prática, "quem conseguir sobreviver à crise poderá ficar mais equiparado aos clubes que estão no topo da Europa a nível financeiro", argumenta o diretor executivo do IPAM..E aqui os emblemas portugueses, nomeadamente, Benfica, FC Porto e Sporting, podem ter uma palavra a dizer num eventual novo ordenamento futebolístico europeu. "Os nossos clubes podem beneficiar se as assimetrias forem corrigidas, mas para isso é preciso trabalharem em conjunto, porque caso contrário até podem perder o comboio e cair numa terceira divisão europeia." Nesse sentido, Daniel Sá defende que "é preciso acabar com o ruído e com a guerra no futebol em Portugal", considerando que um dos bons sinais da pandemia foi "o fim de todo o ruído" que estava instalado no futebol nacional. E é por isso que espera que seja o ponto de partida para uma nova era: "Acredito que, numa situação de crise como esta, as pessoas se unam e trabalhem juntas, afinal os clubes dependem um dos outros para terem uma liga mais forte."