Formalmente não é greve de zelo. Diz-se antes "gestão corrente". Seja como for, o grão-mestre do Grande Oriente Lusitano (GOL), a mais antiga obediência maçónica portuguesa, está furioso porque os "irmãos" nunca mais se decidem a desconfinar a organização, permitindo, por exemplo, a realização das eleições que lhe hão de escolher o sucessor na liderança..Numa diretiva ("prancha") aos membros do GOL datada do passado dia 7 de outubro - e a que o DN teve acesso -, o grão-mestre, Fernando Lima, recorda que o seu mandato já devia ter terminado (em junho passado) e por isso decreta "a auto-limitação de poderes do Conselho da Ordem [o órgão executivo de direção da obediência]", ficando "reduzido à mera gestão corrente". E ,"por imperativo moral e ético", a medida também será "aplicada às para-maçónicas" (que no fundo são IPSS que pertencem ao GOL, assim como há IPSS que pertencem à Igreja). Na decisão da gestão corrente só há explicitamente um dossiê que está excecionado: "As situações urgentes, como é o caso do telhado do nosso Palácio de Lisboa, que reclama intervenção imediata, ou outras similares.".No documento, que resulta de uma auscultação feita às estruturas dirigente da organização e às bases (as "lojas") - para lhes sentir "o pulsar e pensamento" e como forma de ter um "um precioso instrumento de avaliação do estado da arte e da disponibilidade e empenhamento das diferentes instâncias" -, o grão-mestre conclui: "Fica claro que no quadro constitucional e regulamentar atual, e tendo em conta a situação sanitária que o país vive, não é possível, de momento, decretar a retoma da normalidade constitucional como gostaríamos e todos desejamos.".Dito de outra forma: a eleição de uma nova direção para o GOL permanece adiada. Até porque há uma "questão substantiva" por resolver: "A de saber se, havendo condições legais para a realização de eleições, e tendo por base o conhecimento expresso de oficinas e obreiros que se recusam ainda a reunir por razões sanitárias, estas estariam dotadas da legitimidade democrática que é marca dos nossos processos de eleição, tal como a universalidade do processo e a igualdade de acesso a todos.".Fernando Lima não esconde o seu descontentamento com o tal "estado da arte" que encontrou na obediência, depois da tal auscultação. E não se coíbe de passar verdadeiros raspanetes aos "irmãos". Até cita um grande clássico da literatura universal, particularmente atual desde que a pandemia se instalou na vida dos povos: "Assalta-me o espírito de [Albert] Camus em A Peste: 'A primeira coisa que a peste trouxe à nossa cidade foi o exílio.'".A principal acusação do grão-mestre aos membros da sua organização é por estes revelarem "uma preocupante iliteracia organizacional". "Não seria de esperar que em inúmeras dessas respostas encontrássemos incongruências jurídico-funcionais que revelam uma preocupante iliteracia organizacional, nomeadamente através de propostas que não encontram respaldo legal, algumas contrárias às nossas leis", escreveu, acrescentando que isso deve ser "matéria para reflexão e acção futura"..O chefe do GOL ficou, por outro lado, chocado com a baixa taxa de participação dos "irmãos" na auscultação que levou a cabo. "Devo desde já expressar a minha profunda e dolorosa preocupação quanto à participação. Com efeito, 34,6 por cento da Oficinas não responderam e apenas 21 por cento dos membros nomeados pelo Grão-Mestre para o Grande Conselho Maçónico disseram presente, o que é motivo de profunda reflexão", notou..Ou seja, "verificar que um terço das Oficinas não se pronunciou quando chamadas ao trabalho pelo Grão-Mestre é um sinal que não pode ser ignorado", até porque se sabe que "todas elas, no seu momento constitutivo, se comprometeram solenemente com as nossas leis e regulamentos, a que não devem faltar". E "deve ser motivo de reflexão futura" verificar "que a grande maioria, quase 80%, dos membros que o Grão-Mestre escolheu como seus conselheiros e que integram o Grande Conselho Maçónico não responderam à principal chamada que lhes foi dirigida em três anos de mandato"..Seja como for, Fernando Lima tirou conclusões a partir do levantamento que fez. Constatou, por exemplo, uma "grande diversidade do Grande Oriente Lusitano, expressa nas mais diferentes visões, desde a retoma incondicional da normalidade até ao encerramento total dos Templos, aguardando uma vacina ou o fim da pandemia" - e "não seria de esperar coisa diferente de homens que pensam e se expressam de forma livre"..Na generalidade dessas respostas, a "marca mais presente" foi "a necessidade de manter a cadeia de União pujante e promover a coesão, que se expressa, para alguns, na retoma imediata dos trabalhos, para outros, na mera esfera virtual, mas em todos os casos incontornável"..Mas em concreto, "quanto às eleições, quer para os oficiais de lojas, quer para grão-mestre e grão-mestres adjuntos, as opiniões divergem também em linha com o entendimento da gravidade da situação em que o país se encontra, desprezada por uns, hipervalorizada por outros"..É neste ponto que o grão-mestre ensaia uma pergunta: "O que fazer então?" E isto tendo em conta que "as opiniões que os nossos queridos irmãos expressaram, com excepção daquelas minoritárias que reclamam uma abertura incondicional ou um fechamento total, apontam diversos caminhos, e vêm, genérica e gravosamente, carregadas de preocupações e avisos".."A evolução dos números, a gradual implementação de restrições ao exercício da nossa cidadania, as projeções matemáticas e a opinião de especialistas vêm toldar um cenário mais favorável que havíamos construído com vista a uma progressiva retoma da normalidade constitucional e de trabalhos em Loja", lê-se no documento..O qual também refere que nas maçonarias europeias "a norma é a da restrição total ou parcial superiormente determinada e o adiamento sine die da maior parte das mais relevantes actividades e a proibição ou restrição muito apertada dos trabalhos de qualquer natureza". Silêncio nas presidenciais.Daí a decisão de passar a gestão corrente, mantendo adiadas as eleições, em nome de um "direito à vida, que me obriga a proteger todos de igual modo" e a "não tolerar que no tempo/espaço comum que partilhamos o seu exercício ponha em risco a integridade do outro", mesmo tendo em conta "a liberdade individual", a qual leva o grão-mestre a "respeitar todas as opiniões, mesmo as conflituantes". "A tudo isto procuro juntar a serenidade própria do cargo, mas também de quem, estando de saída, não se deixa pressionar por instrumentos ou agendas pessoais ou circunstanciais e que nada têm a ver com os superiores interesses da Obediência", escreveu ainda o chefe do Grande Oriente Lusitano..Que também aproveita para pressionar as lojas a colaborar na procura de uma solução para o impasse: "Neste momento de crise, cabe também às Lojas, com o suporte da Obediência, repensar a Cadeia de União e mantê-la forte, reinventar os trabalhos e mantê-los vivos, ser escol e egrégora, e farol para os seus Obreiros."."Tal como esses Oficiais, também estaremos no nosso posto, perseverantes, para apoiar, estimular e propiciar condições a todas as Oficinas que sejam capazes de se reinventar no quadro das nossas leis e regulamentos. Complementarmente, criaremos um grupo de trabalho constituído por Mestres Maçons mais jovens para acolher a sua visão e contributo quanto a esta matéria", escreveu ainda o grão-mestre do GOL..A obediência mantém assim uma suspensão de facto da sua atividade interna - e tudo aponta que isso se manterá ao longo dos próximos meses, coincidindo isso com a campanha presidencial. "Obscurantismo à vista de todos".O GOL não fará nenhuma recomendação de voto - prática que, aliás, não lhe é tradicional. Contudo, não se tem cansado de alertar para os perigos do populismo - o que serve como uma espécie de recomendação negativa em relação ao candidato presidencial do Chega, André Ventura..No 5 de Outubro - uma data muito cara aos maçons -, o grão-mestre alertou para o risco que correm nos dias de hoje os valores republicanos, com a ascensão de populismos, alimentada pela propagação de fake news e pelos medos causados pela pandemia de covid-19..Na mensagem alusiva à data, Fernando Lima saudou o Dia da Implantação da República e os seus valores, associados à "prevalência do interesse público sobre interesses particulares", lamentando que estes contrastem com "o estado atual do mundo e do país".."Os sinais de alerta são cada vez mais evidentes", sinais estes que a "pandemia veio amplificar, exacerbando medos, fomentando angústias, facilitando as notícias falsas e a desinformação, simplificando perigosamente as mensagens, numa trajetória populista preocupante que, a prazo, justificará uma deriva messiânica que, como Maçons, teremos de combater com todas as nossas forças", considerou..O chefe do GOL afirmou ainda nessa mensagem que "o obscurantismo e as regressões civilizacionais estão à vista de todos" e que "as condições básicas da cidadania, da liberdade, igualdade e da fraternidade, da razão iluminista, estão a ser violentamente questionadas em muitos lados"..Assim, segundo garantiu o grão-mestre, enquanto depositários dos valores republicanos, os maçons irão resistir à tentativa de "eliminar" estes valores, lembrando Fernando Lima que para "dar sentido ao presente, é preciso reler sempre o passado" e desta forma projetar o futuro com "determinação e progresso esclarecido"..Na opinião do Grande Oriente Lusitano, estão em causa valores como a soberania do povo, a representatividade, a igualdade como instrumento da justiça social, a fraternidade, a laicidade como pilar da liberdade de consciência, a cidadania e a ética individual que coloca o "bem coletivo acima de privilégios ofensivos".