Covid-19 é risco acrescido para a saúde mental
A população infetada com covid-19 tem um risco acrescido de desenvolver doença ou perturbação mental nas semanas que se seguem à recuperação. A conclusão é de um estudo realizado pela Universidade de Oxford, publicado na semana passada em The Lancet Psychatry Journal, intitulado "Associações bidirecionais entre covid-19 e a desordem psiquiátrica".
Num universo de 62.354 recuperados da doença, residentes nos Estados Unidos, 20% manifestaram, nos 90 dias subsequentes à infeção, vários géneros de distúrbios, que vão desde a ansiedade à depressão. Do mesmo modo, os investigadores constataram que 65% destes doentes já tinham um quadro de perturbação mental prévia à covid-19, o que os leva a pôr a hipótese de existir nestas pessoas também uma maior vulnerabilidade imunitária à infeção. No entanto, também foi encontrado um número considerável de pacientes a quem, após a doença, foi diagnosticado, pela primeira vez nas suas vidas, um distúrbio psicológico, o que leva muitos cientistas a perguntar-se se o vírus afetará o cérebro ou o sistema nervoso central.
Para Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, "é ainda prematuro concluir se existe ou não uma relação de causa e efeito entre esta doença e o aparecimento de perturbações de carácter mental". Para já, no atual estado das investigações, prefere falar da possibilidade de correlações entre os dois problemas. "Não tenho dúvidas em considerar que enfrentaremos muitos casos de stress pós-traumático, tal como acontece em cenário de guerra. Em primeiro lugar nos doentes internados, sujeitos a procedimentos muito invasivos e em condições que nada têm a ver com uma hospitalização convencional. Mas também nos profissionais de saúde, sujeitos a condições de trabalho extremas, com risco da sua própria segurança. É expectável que, a curto ou a médio prazo, venham a sofrer problemas de ansiedade, insónias ou mesmo de depressão."
O risco é, no entanto, extensivo a toda uma sociedade que está sob uma pressão que ninguém antecipara. O distanciamento físico, o isolamento e, nalguns casos, a solidão "causam muito sofrimento e deixam marcas duradouras em muita gente, nomeadamente em populações mais vulneráveis como crianças, adolescentes, idosos, doentes hospitalizados com outras patologias, pessoas com adições ou a viver em casas de acolhimento. Temos de estar atentos ao aparecimento de sintomas, tal como estamos em relação aos de outras doenças".
A este propósito, o já referido The Lancet Psychiatry Journal publicou, já neste mês, um estudo em que compara os efeitos da segunda vaga da covid-19 sobre a população britânica aos provocados pelos bombardeamentos massivos das grandes cidades do Reino Unido pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente os do verão e outono de 1944, com as bombas V1 e V2, que já não eram esperados pela opinião pública.
Para Edgar Jones, investigador do Instituto de Psiquiatria, Psicologia e Neurociência do Weston Education Centre e autor deste estudo, é possível, apesar dos quase 80 anos decorridos entre ambas as situações, estabelecer um paralelismo das reações das populações perante as ameaças, mas também em face das medidas de proteção civil tomadas pelos governos. Como Edgar Jones sublinha, a necessidade de proteger tanto quanto possível as populações de cidades densamente povoadas como Londres, Coventry ou Liverpool levou o executivo dirigido por Churchill a conceber um dos primeiros planos coordenados de segurança civil alguma vez conhecidos. Mas então, como hoje, não faltaram os desobedientes.
Outro ponto a considerar na ligação da covid-19 à saúde mental, segundo o estudo conduzido pelos investigadores da Universidade de Oxford, é a possível relação entre a preexistência de um distúrbio ou doença e uma maior predisposição para se ser infetado. Para Francisco Miranda Rodrigues, "essa vulnerabilidade acrescida do sistema imunitário é perfeitamente plausível uma vez que já tínhamos detetado o impacto deste tipo de patologias, ou até de um grau muito considerável de stress prolongado no tempo, sobre outro tipo de doenças, como as oncológicas, por exemplo". Há, pois, que se estar atento à "formação de círculos viciosos, de que é muito difícil sair". Vendo a médio prazo, o bastonário dos psicólogos chama ainda a atenção para os problemas criados pela crise económica que decorre da pandemia. "O impacto do desemprego sobre a saúde mental é uma dimensão bem estudada. Embora a perceção de uma situação negativa varie muito de indivíduo para indivíduo, hoje sabemos que quem está em situação de fragilidade financeira tende a bloquear e a não ver saída, o que naturalmente aumenta a ansiedade e a possibilidade de aparecer um distúrbio ou um problema de saúde. Ora, se a saúde se debilita, as possibilidades de regressar ao mercado de trabalho diminuem também. E assim sucessivamente, numa espiral tóxica."
Diante deste panorama, Francisco Miranda Rodrigues considera da maior importância o reforço da oferta de cuidados de saúde mental. Faz um balanço muito positivo do serviço de aconselhamento psicológico da linha Saúde 24, disponibilizado já em tempo de pandemia: "Desde 1 de abril já foram atendidas cerca de 45 mil chamadas. É um trabalho importante para agir no imediato, contribuindo para a estabilização de situações ou encaminhando para a urgência sempre que necessário, através do INEM. Mas não basta." Falta o follow up. "É evidente que já muito se fez em várias áreas. Nas escolas, por exemplo, passámos de 700 psicólogos para 1700 em apenas cinco anos. As próprias autarquias têm investido bastante, assumindo elas próprias a contratação destes profissionais para os pôr ao serviço das comunidades. Mas não basta, porque se olharmos para o país como um todo, verificaremos que não chega a haver um psicólogo por concelho, o que é grave."
Onde estão as falhas? "Antes de mais, nas unidades de cuidados de saúde primários, onde há uma grande escassez", refere. Mas também em subsetores, como a ADSE, "onde para ir a uma consulta de psicologia é necessária a recomendação prévia de um médico, até pode ser um ortopedista, mas tem de ser um médico". Ou ainda nos seguros privados de saúde: "Neste caso, a maior parte das seguradoras até pode incluir serviços das chamadas medicinas alternativas, mas exclui a psicologia e a saúde mental dos seus pacotes médios. É um extra geralmente muito dispendioso. Ora, isto não é sequer compreensível porque se o setor privado quer ser complementar ao Serviço Nacional de Saúde, e até já consegue sê-lo noutras áreas, tem de corresponder às necessidades das pessoas."
Como conclui Francisco Miranda Rodrigues, "temos uma classe média pobre, com pouca disponibilidade financeira para pagar consultas particulares. Há que contornar essa dificuldade, abrindo todas as vias para os cuidados de saúde mental". Com a crise pandémica instalada, o combate pela saúde não se esgota na guerra ao coronavírus.