Doentes crónicos com 60 anos ou mais têm de pedir baixa médica para se protegerem
Em Portugal, quase 30% da população tem 65 ou mais anos. O que faz que quase três milhões sejam um grupo de risco elevado na pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 só pelo fator idade. Mas deste grupo ainda há quem sofra de doenças crónicas, o que faz que ainda sejam mais suscetíveis à doença e tenham maior risco de mortalidade. Mas o decreto do governo, aprovado pelo Parlamento na semana passada, que regulamenta o estado de emergência, não salvaguarda os doentes crónicos na faixa etária entre os 60 e os 70 anos. "Uma lacuna", que deveria ser revista, porque a baixa "tem penalizações".
Os dados revelados pelos centros de controlo e de prevenção de doenças da China, dos EUA, do Japão e de outros países europeus são claros: a mortalidade em doentes infetados com doenças cardiovasculares, diabetes ou doenças respiratórias é mais elevada. O site científico Information Is Beautiful (cujo gráfico aqui reproduzimos) mostra as percentagens. Para os doentes cardiovasculares, é de 10,5%, para a diabetes é de 7,4% e para as doenças respiratórias é de 6,3%. Depois seguem-se os doentes com hipertensão e os oncológicos, mas não há dúvida de que as três primeiras são as que têm maior taxa de mortalidade associada ao covid-19.
Ou seja, o medo destes doentes em relação à doença é ainda maior do que o de qualquer outro cidadão, desabafam alguns representantes de associações. Sobretudo os que estão na faixa etária dos 60 e mais anos e que ainda não estão reformados.
Com a agravante de que uma baixa médica, apesar de agora já poder ser pedida online e não implicar tanta burocracia, está sujeita ao crivo do médico de medicina familiar, que "pode passá-la ou não", alerta o presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal, José Manuel Boavida. Ou "a uma redução no rendimento familiar. Esta é a outra face desta situação já por si complicada", afirma a presidente da Respira, Isabel Saraiva. Para o presidente a Sociedade Portuguesa de Cardiologia, Victor Gil, "estamos todos a fazer o nosso melhor nesta situação, e não quero estar já a fazer criticas, mas, como entidade científica, temos sido obsessivos com os nossos doentes para que se protejam o mais possível, que fiquem em casa, que sigam à risca a quarentena aplicada aos maiores de 70 anos". No entanto, e em comunicado divulgado, após a conversa com o DN, a SPC também já veio lamentar o facto de a mortalidade entre os doentes cardiovasculares "não estar a ser valorizada".
Até ontem, dia 26, Portugal já somava registava 22 257 casos suspeitos à covid-19, desde o dia 1 de janeiro. Destes, 3544 deram positivo, embora ainda aguardassem resultado de testes laboratorial 2145 casos. E já 60 óbitos.
O novo vírus trouxe o medo, um medo que para muitos era desconhecido, um medo tão simples como o de ir trabalhar, de andar na rua, de viajar de transportes públicos, de ir ao supermercado ou tão-só de falar com o vizinho ou mesmo de abraçar os familiares, um medo que ganha mais dimensão certamente em todos os que estão, por razões de saúde, também mais suscetíveis à doença. "Não é fácil para quem tem 60 ou mais anos e é doente crónico ter de continuar a trabalhar, sobretudo quando percebe que não tem as condições adequadas no seu trabalho ou que não pode fazer teletrabalho", refere José Manuel Boavida.
Foi neste sentido e a partir dos muitos receios, angústias e dúvidas colocados pelos doentes com diabetes, depois de o decreto do governo ter sido publicado, que a associação que os representa decidiu lançar um alerta às autoridades de saúde e aos políticos para a necessidade de rever a situação.
No domingo à noite, a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) divulgou um comunicado a pedir "quarentena rigorosa para os diabéticos com mais de 60 anos" e aos governantes que tivessem em conta os doentes de risco que ainda não estão reformados. "De maneira nenhuma pretendemos obrigar as pessoas a deixarem de trabalhar, mas há quem não deva fazê-lo. O doente diabético tem de ser disciplinado e responsável. Aliás, costumamos dizer que o verdadeiro médico dos diabéticos são os próprios doentes, eles têm de gerir a sua doença. Portanto, melhor do que ninguém, eles sabem se têm condições para trabalhar ou não", argumenta José Boavida.
Acrescentando: "Percebo que o governo tivesse receio, até pelas verbas envolvidas, de ir mais fundo nesta matéria, mas poderia prevenir estas situações e depois fazer o que fez com os pais de crianças em idade escolar, a fiscalização para saber se tinham ou não direito aos subsídios avançados."
O médico recorda que em Portugal há 1,3 milhões de diabéticos, cerca de 13% da população. "Por isto, consideramos que a questão é grave", afirma. E, tal como o coronavírus, a diabetes afeta mais os homens do que as mulheres. "Nas pessoas com mais de 60 anos, 27% dos doentes são homens, e 20% mulheres. São números que só por si indicam "uma prevalência muito elevada nas pessoas idosas. E o que se sabe até agora é que o risco de a uma situação correr mal para estes doentes é maior do que para a população geral. Daí o termos proposto ao Ministério da Saúde a necessidade de haver uma referência especial à proteção especial das pessoas com mais de 60 anos, não só em relação à diabetes, mas também em relação a outras doenças cardiovasculares".
José Manuel Boavida diz que desde a semana passada que os contactos com as autoridades de saúde não têm parado, porque estes doentes "têm um risco aumentado e a única solução que temos, neste momento, para que estas pessoas não sejam infetadas e até que se encontre um tratamento mais eficaz, é que se isolem e fiquem em casa, mas o decreto do governo colocou a barreira nos 70 anos". Assim, "o que fazemos às pessoas que ainda têm de trabalhar, que não podem estar de quarentena ou em teletrabalho? O que fazemos a esta pessoas que podem descompensar da diabetes, porque depois esta doença pode estar associada ao coração, ao rim e a outras situações?"
Para o presidente da APDP, o que o governo fez foi "dizer aos doentes crónicos que tenham um comportamento igual ao das pessoas com mais de 70 anos, mas para isso têm de ter um atestado médico. Isto trouxe algum receio aos doentes, que pudesse haver até alguma arbitrariedade por parte dos médicos de família no sentido de saber se passariam ou não estes atestados".
Na sexta-feira, a associação solicitou ao governo que clarificasse o que entende por atestado médico - se é algo que garanta que aquele doente sofre dela, isso o próprio médico pode passar - e que agilizasse esta situação, de forma que todas as pessoas com mais de 60 anos, e que o entendessem, pudessem ter acesso à proteção social sem uma baixa médica, que implica consequências remuneratórias e até o perigo de um despedimentos.
José Manuel Boavida reforça: "Temos de dar garantia e liberdade às pessoas de poderem ir trabalhar, se assim o entenderem. Não é obrigatório ficarem em casa, até porque as condições de trabalho têm segurança, porque estão em teletrabalho ou porque têm grandes responsabilidades nas suas empresas, essas razões só as pessoas as conhecem, mas, se não tiverem nada disto e precisarem de se proteger mais, estão desprotegidos."
Este médico sublinha que "o importante em primeiro lugar é alertar a população diabética de que corre um verdadeiro risco e os que têm mais de 60 anos devem cumprir as normas aplicadas pelo decreto aos maiores de 70 anos. Os que estão entre os 60 ou abaixo desta faixa etária e que necessitam de uma quarentena rigorosa e não podem fazê-la devem pedir baixa".
E há muitos doentes que já estão a fazê-lo, apesar de não terem números concretos. "Hoje tivemos indicação de que os médicos de família também estão a passá-las sem problema, vamos ver como é que a situação evolui. Percebo que haja um problema económico para o governo, mas o risco de colocar estas pessoas com doença em internamento sairá muito mais caro do que se os conseguíssemos preservar em isolamento sem penalizações."
O médico exemplifica com o caso do estado da Califórnia, nos EUA, que fez isto mesmo, todos os maiores de 65 em quarentena obrigatória, a Alemanha está a fazê-lo e outros países europeus também. Neste momento, todos os doentes diabéticos correm o mesmo risco de serem infetados, tal como a população em geral, a agravante é que a mortalidade é mais elevada nestes do que no resto da população, e sem diferenças para quem tem diabetes tipo I ou tipo II. "Foi por nos chegarem muitos casos de doentes com este problema que tomámos uma posição e resolvemos pressionar as autoridades tendo por base uma razão puramente médica", remata o médico.
Mas, mais do que os diabéticos, os doentes cardiovasculares são os que têm a mortalidade mais elevada associada ao coronavírus. O mesmo gráfico, realizado com dados dos vários CDC, indica que a percentagem de mortalidade no total de infetados é da ordem dos 10%.
O presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC), Victor Gil, explicou ao DN que tal se deve não só ao facto de se tratar de doentes que já têm o coração doente como à forma de atuação do vírus. "Há razões relacionadas para que a doença afete mais doentes cardiovasculares e tem que ver com a ação do próprio vírus, que ataca o coração, provocando lesões coronárias e aumentando o risco de enfarte do miocárdio. Ora, se o coração já está doente e se o próprio vírus atua desta forma, é claro que o risco de mortalidade aumenta muito nestes doentes."
Em Portugal, há cerca de 350 mil pessoas que sofrem de insuficiência cardíaca e todos os anos se registam mais de 15 mil enfartes do miocárdio. Se pensarmos só nestes números, sem ter em conta outras patologias cardiovasculares, percebe-se porque é que estes doentes fazem parte de um grupo que corre maior risco de ser infetado.
Victor Gil não quis falar sobre o alerta lançado pela associação dos doentes diabéticos no que toca aos doentes com mais de 60 anos e se estes deveriam estar incluídos no grupo de proteção especial. Não quero fazer críticas, estamos todos a dar o nosso melhor, este vírus veio mostrar a fragilidade da vida. Agora, se os doentes devem ou não colocar baixa? Não sei, também não tenho dados suficientes para falar sobre isto", mas "sei que os doentes nas faixas etárias mais afetadas pela doença devem ter mais cuidados e devem ficar em casa".
Mas, em comunicado divulgado esta quinta-feira, e já depois da conversa com o DN, a SPC emitiu um comunicado em que diz precisamente que a mortalidade por covid-19 entre os doentes cardiovasculares tem sido desvalorizada pelas autoridades portuguesas, referindo mesmo que deveriam ser criados mecanismos protetores para estes doentes com dispensa de trabalho protegida, garantindo o seu isolamento social pelo menos no mesmo grau dos doentes idosos".
Ao DN o presidente da SPC confirma também que "temos sido obsessivos nos conselhos a dar aos nossos doentes. Protejam-se, protejam-se, protejam-se, isolem-se o mais possível. Estes doentes, sobretudo os que estão nas faixas etárias que têm sido mais afetadas pela doença, devem ficar em casa".
É certo que as faixas etárias com mais mortalidade são a partir dos 60, 70 e, sobretudo, dos 80 anos. Mas," quando se trata de um doente do coração, todos devem ter cuidado, porque nunca se sabe muito bem como é que o organismo de cada um reage a uma redução de imunidade tão grande".
"Temos medo, muito medo de ser infetados pela doença, de que os nossos tenham a doença, temos medo do que aí vem, mas temos de ser resilientes e de tratar tanto da nossa saúde física como da nossa saúde mental." A afirmação é de Isabel Saraiva, presidente da Respira - Associação para Pessoas com DPOC e Outras Doenças Respiratórias Crónicas.
Em Portugal, há mais de 400 mil pessoas com doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) - "a esmagadora maioria com mais de 60 anos e já na fase da reforma, mas pode ser diagnosticada a partir dos 45 ou 50 anos. Mas há pessoas muito novas com doenças respiratórias raras e que têm problemas de saúde muito pesados e que devem tomar precauções muito especiais nesta altura", sublinha Isabel Saraiva.
No entanto, sublinha, "precisava de mais dados para saber se o decreto deveria abranger idades mais jovens", mas admite que ter de pedir uma baixa médica para poder proteger a sua saúde "é a outra face desta situação, que já é muito complicada".
"Muitos de nós - doentes com doenças respiratórias - já estamos reformados, portanto a nossa vida está facilitada, mas há, de facto, pessoas com DPOC e outras doenças respiratórias crónicas que ainda estão a trabalhar. A baixa médica como solução é boa do ponto de vista da saúde, porque protege mais as pessoas, mas depois há o aspeto financeiro. Quem está de baixa fica com os rendimentos diminuídos. E isto é preocupante, porque, numa situação de incerteza económica, a decisão entre a saúde ou o ordenado por inteiro ao fim do mês, muitas vezes as pessoas fazem a segunda opção. Não é fácil".
Isabel Saraiva defende que "tudo isto é novo e somos doentes crónicos para o resto da nossa vida. Portanto, não é fácil arranjar uma solução para tantos doentes, mas para os que estão na faixa etária de maior risco talvez pudesse ser um caminho para ajudar estas pessoas durante um período de tempo".
A presidente da Respira, de 70 anos e também ela uma doente, alerta para o facto de "o aparelho respiratório destes doentes crónicos já estar afetado, por força da DOPC, da asma, do alpha 1 e de outras doenças, que contraímos ou porque fumámos, porque tivemos uma atividade profissional agressiva para os nossos pulmões ou porque é uma doença congénita. Ora, os nossos pulmões e os brônquios já estão doentes, e se este vírus começa maioritariamente por atacar as vias respiratórias deixa-nos ainda mais vulneráveis, sobretudo a partir dos 60 anos, pois o nosso sistema imunitário já não reage da mesma maneira".
As doenças respiratórias são as que aparecem em terceiro lugar e com maior número de mortes por infetados, a seguir às doenças cardiovasculares e à diabetes. Isabel Saraiva explica que estes doentes já têm de ter cuidados redobrados no seu dia-a-dia, como evitar grandes aglomerados, arejar bem as casas, não viver num ambiente poluído, beber muita água por causa das secreções e cumprir escrupulosamente a medicação. Por isso, numa altura destas, é preciso que se organizem ainda mais, que tenham os contactos dos seus médicos sempre à mão, de familiares, porque numa situação de crise pode ser mais difícil encontrá-los, ter as vacinas em dia, como a da gripe e da pneumonia, e "é preciso que sejamos todos muito resilientes".
Isabel Saraiva argumenta que não é fácil para um doente crónico com mais de 70 lidar com a situação que o país e o mundo estão a viver com esta pandemia. "Temos medo. Temos medo do que vem a seguir. Não imagina o que é para uma pessoa de 70 anos, frágil, com doença crónica, ouvir falar da crise económica e do que aí vem. Tudo isto somado às imagens de funerais e caixões tem um impacto enorme nas nossas cabeças."
Por isso, a presidente da Respira aconselha que todos devem batalhar pela sua "saúde mental, que eu diria que é quase tão importante como os cuidados que temos de ter com a nossa saúde física. Temos de ler, e ver filmes, conversar, pintar e fazer muitas atividades". É o melhor, diz, porque "tudo isto é novo e não há certezas".
Nota: Perante algumas dúvidas sobre as informações contidas neste artigo, o DN vem explicar que reitera as informações nele contidas. A matéria em causa no artigo, e à qual damos voz a partir de declarações de várias entidades que representam doentes crónicos, diabéticos, cardiovasculares e doenças respiratórias, é o facto de o decreto do governo para o estado de emergência - Decreto 2/A- março de 2020 - não consignar um regime de proteção especial para estes doentes, com 60 ou mais anos, que ainda não estão reformados, e que se veem na condição de se deslocarem para os seus locais de trabalho, se não puderem estar em teletrabalho.
Logo, são um grupo de risco. Daí, as entidades que os representam referirem que uma das soluções que têm para se protegerem é pedirem uma baixa médica ao seu médico de família para se protegerem. Nada disto está incorreto ou é fradulento. É uma solução para estes doentes.
O DN sabe, bem como os representantes destas associações de doentes crónicos, que, ao abrigo da legislação atual, uma baixa médica só pode ser passada para tratar a doença e não para prevenir a doença. O que motiva o apelo das associações às autoridades para que tenham em conta medidas concretas para o isolamento destes doentes, pois não havendo um regime especial de proteção, só poderiam ir para a baixa, e uns médicos podem passar e outros não, como é referido no texto.
O que estas associações pedem é, e está no texto, que a situação seja alterada e que os doentes não tenham que optar pela baixa até porque tem penalizações financeiras.