Confissões de uma notável lisboeta
Em Irma Vep a sueca Alicia Vikander é uma atriz à procura de uma personagem num jogo de Olivier Assayas sobre os bastidores do ato de fazer cinema. Ou seja, a ficção televisiva dentro do cinema. Em Cannes, esta minissérie da HBO foi mostrada com pompa de cinema, precisamente no festival que recusa colocar em competição filmes da Netflix...
Irma Vep é televisão baseada num filme do próprio Olivier Assayas, Irma Vep (1996), uma das suas obras maiores, a história de uma atriz em processo de filmagens de um remake de um filme de vampiros dos tempos do cinema mudo, Les Vampires (1915), de Louis Feuillade. Assayas a refletir sobre o seu processo e a adaptar o conceito inicial para os nossos dias, neste caso para uma rodagem em França com um realizador excêntrico (um maravilhoso Vincent Macaigne) e uma atriz de Hollywood, Alicia Vikander, acabada de fazer um blockbuster chamado Doomsday. Um objeto com um perfurante humor autorreferencial e uma liberdade narrativa absolutamente rara para os padrões da HBO. E como Vikander não é a Maggie Cheung dos tempos da versão de 96 tudo funciona de outra maneira e com um dispositivo de camadas metafóricas diferentes.
Nos deveres de promoção habituais, a muito simpática Alicia Vikander mal percebe que está a falar para um órgão português esclarece a sua situação como lisboeta: "Continuo a viver em Lisboa, mas eu e o Michael [o marido Fassbender] não temos estado muito por lá, temos andado sempre a filmar por fora. Este verão estou de volta a Lisboa! Gosto de viver lá, mas também espero ter tempo para visitar a minha Suécia. Em Lisboa, agora, as pessoas já não nos ligam, já não somos novidade. Ajudou também a Madonna desviar a atenção.". À porta do Hotel Majestic, o marido e o filho recém-nascido tentavam escapar aos fotógrafos...
Citaçãocitacao"Quis fazer esta série porque tenho um fascínio pelo Olivier Assayas e uma paixão enorme pelo processo de fazer cinema".Alícia Vikander
Sobre isto de interpretar uma atriz de cinema que tem uma carreira de sucesso, Alicia fala em gozo puro, mas afasta que esta Mira tenha muito de si: "Somos diferentes! Ela sente-se um peixe fora de água naquele filme europeu que vai fazer e eu nunca ficaria assim! Mira claro que gosta de falar de cinema mas também fala demasiado sobre a sua vida privada - eu sou incapaz de falar de mim. Depois, tem aquela relação com a sua assistente. Pessoalmente, não sei como é que uma atriz conseguiria estar sempre com a assistente. Aí somos realmente muito diferentes...Quis fazer esta série porque tenho um fascínio pelo Olivier Assayas e uma paixão enorme pelo processo de fazer cinema. Irma Vep é essencialmente um longo filme dividido em diversas partes". Assayas, autor de obras como As Nuvens de Sils Maria ou Personal Shopper, foi a razão principal para a atriz vencedora do Òscar em A Rapariga Dinamarquesa aceitar este desafio. Irma Vep versão 2022 é óbvio que é uma reinvenção de um filme mas é também uma lição de naturalismo cinematográfico, um olhar sobre como o cinema pode ser uma arte de vampiros. Alicia reforça a sua admiração por Assayas: "Irma Vep é também uma forma de mostrarmos às pessoas como são realmente os atores e os cineastas. Mesmo sendo casada com um ator, a maior parte dos meus amigos não é desta área e tem imensa curiosidade e aqui mostramos como um plateau pode ser um local caótico. Entrei para este projeto muito excitada para ver como é que o Olivier Assayas o iria abordar".
A seguir, a atriz tem aprazado a continuação de Tomb Raider, onde voltará a ser uma Lara Croft para a geração Z, algo que considera uma "outra fera": "gosto mesmo de mudar de registo...Atiro-me ao Tomb Raider como a mesma paixão e respeito", mas antes ainda vamos vê-la ao lado de Jude Law no filme de Karim Ainouz, Firebrand, onde pela primeira vez se deparou com um coreógrafo para cenas eróticas - "foi bastante útil, gostei!", acrescenta.
Tal como muito atores, Alicia também abdica de ver os seus filmes: "Porquê? Não sei, sinto que já está feito, pronto! Estar a viver algo que já vivi não me atrai, enfim, talvez um dia...talvez seja importante esperar alguns anos...Quando este meu bebé crescer creio que pode vir a ser divertido ver os meus filmes ao seu lado! Quem sabe?". A propósito de ser agora mãe diz que o que verdadeiramente mudou foi a questão do local de filmagens: "Exato, agora cada vez que recebo um convite quero sempre perguntar logo onde temos de viajar! Agora, eu e o Michael, temos de pensar como uma família, sobretudo a nível de horários e planeamentos..."
Aconteça o que acontecer, a ficção do streaming por estes dias terá de passar por este Irma Vep, história de fetiches, atores, egos de cineastas e coordenadores de...intimidade. Em Cannes, nem todos ficaram apaixonados por este conceito, mas não deixa de ser uma prova do espaço de liberdade que as plataformas estão a dar a cineastas autores O "capricho" de Assayas em filmar de novo algo que concebeu décadas atrás é um testemunho disso mesmo.
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