Comunista vítima de skinheads: "Fiquei desconfigurado. Só o julgamento vai trazer-me paz"
"Há um Carlos antes de dia 20 de setembro de 2015 e um depois", afirma a mulher do militante comunista que foi nessa data violentamente agredido por um grupo de neonazis, em Lisboa. Entre eles um guarda prisional.
Carlos (nome fictício, a pedido da família) ficou marcado para o resto da vida, com sequelas neurológicas permanentes que lhe roubaram memórias, lhe tiraram a "doçura", a "combatividade" e a "energia". Há cinco anos que espera por justiça: "só o julgamento vai trazer-me paz", afirma.
Carlos foi uma das vítimas de skinheads que estão entre 37 arguidos que vão ser acusados pelo Ministério Público (MP) por vários crimes muito violentos, motivados pelo ódio ideológico, religioso, racial e de género. Conforme o DN noticiou este sábado, pelo menos 18 pessoas, comunistas, antifascistas, muçulmanos, negros e homossexuais, foram espancadas, alguns quase até à morte, como foi o caso de Carlos, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa.
Quando falou ao DN avisou logo que daquele dia "de nada" se lembrava, mas reconhece que a sua "vida mudou" e "nunca mais" foi o mesmo. Nessa tarde tinha acabado de sair de um comício do PCP no Coliseu dos Recreios. Ia na rua das Portas de Santo Antão "na conversa com uma camarada" quando "de repente" foi "puxado e atirado ao chão". Aqui apagou-se a memória.
Mas a "camarada" (de quem mantemos anonimato) que estava com Carlos e testemunhou às autoridades o que viu, ajuda-nos a reconstituir o crime. "De repente saltam para cima dele três ou quatro, todos vestidos de preto, e começaram-lhe a dar pontapés e socos em todo o corpo, principalmente na cabeça. Meti-me no meio para tentar puxá-lo, mas empurram-me com força e caí em cima da mesa de uma esplanada ali na rua. Nunca vi uma coisa assim. Batiam-lhe tanto. Ficou como morto. Um deles quando ia a fugir da polícia deixou cair a carteira e soubemos que era um guarda prisional".
A esta mulher, cantoneira de limpeza, criada no bairro da Curraleira, nem passou pela cabeça não ajudar as autoridades. Ficou "com medo", assume, "mas um militante comunista está habituado a lutar sempre e nunca desistir". "Faria o mesmo por qualquer ser humano", sublinha.
No hospital de S. José, a mulher de Carlos encontrou já "muitos camaradas à espera", que a olharam, resignados, "como que a preparar-me para o pior". Viu "muito sangue ainda a escorrer por um dos ouvidos" de Carlos, "toda a cara pisada".
Ficou, recorda, "totalmente destrambelhada". O médico puxou-a para um canto e ela leu-lhe desalento nos olhos. "Disse-me que não tivesse esperança, que nunca tinha visto uma agressão assim. Disse que o cérebro do meu marido tinha ficado muito afetado, com hemorragias. Tinha hematomas por todo o lado. Avisou que, caso sobrevivesse, nunca mais voltaria a ser o mesmo".
Carlos era um dedicado dirigente sindical na câmara de Lisboa, gostava de sair, divertir-se com os amigos. Não havia fim de semana no verão que não fosse à praia. "Há cinco anos que nunca mais foi à praia, fecha-se no quarto todos os fins de semana, ficou agressivo a falar, mais teimoso e sempre a arranjar desculpas para não ir ou sair mais cedo dos comícios do partido, ele que ia a todos", conta a mulher.
Carlos sabe que mudou. Sente-o todos os dias. Na forma como anda, no desequilíbrio que o atormenta, na dificuldade em reconhecer pessoas conhecidas, na dificuldade em lembrar-se de palavras para se explicar, no prazer de viver que praticamente o abandonou.
"Fiquei desconfigurado", diz. "Até aquele momento era feliz. Era uma pessoa muito positiva, cheia de energia. Agora falta-me tudo. Só tenho cá dentro uma grande tristeza. Foi horrível, foi horrível. Eles queriam matar-me. Nunca fiz mal a ninguém, tenho amigos de todos os partidos, sempre fui do povo. Nunca mais vou ser a mesma pessoa. Antes não perdia uma reunião ou um comício do partido e agora fico com medo. Tenho ido algumas vezes, mas estou sempre a lembrar-se daquele horror. Só o julgamento vai trazer-me paz", assinala.
A mulher revela-nos que tinha "os papéis de militante do PCP assinados e prontos para entregar" quando o marido sofreu o ataque dos skinheads. "Depois daquilo voltei a guardá-los na gaveta, tenho medo do que pode mais acontecer, não acredito que aqueles nazis sejam condenados e presos. Quem é o polícia que prende outro polícia (o guarda prisional suspeito)?", questiona com ceticismo.
Na verdade, este guarda prisional foi detido pela Polícia Judiciária (PJ) em 2016, juntamente com cerca de duas dezenas de suspeitos skinheads, mas foram todos libertados pelo juiz de instrução.
Jonathan Costa não se importa de dar o nome. É já um "velho" conhecido dos grupos neonazis e tem sido recorrente vítima dos seus membros, entre os quais estão alguns dos 37 arguidos que o MP se preparara para acusar.
É membro do Núcleo Antifascista do Porto e estava no aeroporto daquela cidade quando foi insultado e agredido por dois cabeças rapadas do Portugal Hammer Skins, a fação mais violenta dos cabeças rapadas. Foi em janeiro de 2017 e este caso é um dos que, para o MP demonstra que os skinheads continuaram a sua atividade criminosa mesmo depois das detenções dois meses antes.
"Tinha ido levar a minha tia ao avião, para embarcar para a Suíça. Estávamos no check-in quando vi aqueles dois a vir em minha direção. Insultaram-me e tentaram dar-me um murro, mas consegui esquivar-me. Empurraram-me, arrancaram-me um patch (emblema) do Núcleo Antifascista que tinha cosido no blusão e fugiram. A minha tia só chorava", recorda.
As agressões não foram mais longe porque o jovem pratica Krav Maga e soube defender-se. "Vou-te apanhar, vou-te matar", ouviu gritar um deles, em tom ameaçador. O patch foi depois exibido, como troféu das agressões, nas páginas do Facebook dos neonazis - incluindo alguns arguidos neste processo - facto que serviu como prova do roubo e para sustentar também a acusação.
Este jovem, ex-imigrante na Suíça, bastante ativo nas redes sociais contra a extrema-direita conta que nos últimos dois anos foi alvo de outros cinco ataques. Sofreu no ano passado, uma tentativa de atropelamento no Porto e suspeita que os seus autores sejam também os cabeças rapadas.
Também em 2019 foi envolvido noutro ataque, mas os autores, ligados ao PHS e a claques do Porto e de Braga, deram à polícia a versão que tinha sido Jonathan a agredir primeiro. Todos os casos foram denunciados à PJ. Jonathan garante que não tem medo, mas teme pela sua mulher e pela filha bebé. "Já me ameaçaram na frente delas, na rua, já publicaram nas redes sociais fotografias da fachada da minha casa", afirma. Sentiu que, para segurança da família, devia mudar de residência.
Tal como Carlos, Jonathan Costa espera justiça, mas é cético como a mulher do comunista. "É muito tempo à espera, sinto-me revoltado por saber que esses nazis continuam em liberdade e a poder fazer a outras pessoas, mais frágeis, o que tentam fazer-me a mim. Isso preocupa-me muito", sublinha.
Jonathan, com o Núcleo Antifascista, foi um dos promotores de uma petição que deu entrada na Assembleia da República, com cerca de 10 mil assinaturas, que apelava à ilegalização de "grupos de cariz fascista/racista/neonazis".
A iniciativa, que teve o apoio de mais de uma centena de organizações nacionais e internacionais, foi uma reação à realização, no dia 10 de Agosto de 2019, em Lisboa, de uma reunião de organizações de extrema-direita europeias, algumas assumidamente de ideologia fascista e neonazi.
"A presença e atuação de grupos terroristas e neonazis como a Blood and Honour, Hammerskin ou ainda a Nova Ordem Social já foram assinalados pela Europol e o SIS. Não podemos nem iremos aceitar a normalização deste discurso de ódio e dos ataques dos quais estes grupos são autores, permitindo a sua livre atuação e comprometendo assim a segurança dos nossos filhos e filhas, dos nossos amigos e amigas", escreveram.
A petição deu entrada no parlamento a 17 de dezembro de 2019, baixou à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias em fevereiro deste ano e foi "admita" em março. Ainda não foi discutida pelos deputados. "Não há vontade política, não há consciência forte do perigo que estes grupos representam para a sociedade democrática", assevera Jonathan.