Comunidade escolar não aprova proposta de calendário letivo

Alunos do 1.º ciclo são os que terminam mais tarde o ano escolar. Diretores, professores e sindicatos querem calendário idêntico para todos os anos não-sujeitos a exame.
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O Ministério da Educação ainda não publicou o despacho do Calendário Escolar para 2022/2023 e 2023/2024, mas já deu a conhecer uma proposta, sugerindo um término do ano letivo no último dia útil de junho (30 de junho de 2023 e 28 de junho 2024), para os alunos do 1.º ciclo. Os do 2.º ciclo, 3.º ciclo e Secundário (exceto 9.º, 11.º e 12.º anos sujeitos a exame), acabarão as aulas a 14 de junho, mais de duas semanas antes dos alunos de 1.º ciclo (antiga escola primária). Uma proposta "reprovada" pela comunidade escolar e que já levou à criação de uma petição pública, com cerca de sete mil assinaturas. "É discriminatório, não se compreende o objetivo desta diferença e é ainda perturbador da vida das famílias e das escolas", pode ler-se no documento.

A edição de 2019 da publicação da OCDE Education at a Glance alertou para o facto de as crianças portuguesas terem mais 1200 horas de aulas do que o resto dos países da Europa. Os alunos passam, ao todo, 5460 horas em sala de aula durante o 1.º ciclo, um número acima das 4258 horas da média da União Europeia. "Chamo a atenção para o facto de este estudo ter sido feito com o calendário pré-pandémico. Este problema agudiza com este novo calendário que parece agora se ter tornado norma", explica Alberto Veronesi, professor de 1.º ciclo.

O docente diz não encontrar qualquer benefício no prolongamento escolar. "Não percebo qual o valor que acrescenta a estes alunos. A desvantagem principal parece-me ser, sobretudo, a desmotivação com que encaram a própria rotina escolar a partir de determinada altura. Saturados que ficam os alunos e os professores, não encontro forma de se dar o processo de ensino-aprendizagem", sublinha.

Sofia Chamusca, coordenadora pedagógica (creche, pré-escolar e 1.º ciclo), do Colégio Júlio Dinis, no Porto, também não consegue apontar vantagens para os alunos do 1.º ciclo e não encontra justificação para que estes sejam os últimos a terminar o ano letivo.

"Não é possível concordar, nem é muito fácil de compreender. Só seria passível de entender se existisse uma redução expressiva de número de horas de aula por dia durante o ano letivo", explica.

Já desvantagens, a responsável diz serem muitas. "As crianças já vivem diariamente com um horário de aulas muitíssimo completo e, muitas vezes, ainda preenchido com atividades extracurriculares. Não existe tempo livre. Julgo que só daqui a alguns anos conseguiremos aferir que efeito terá nos nossos futuros jovens esta falta de tempo para não fazer nada, para inventar o que fazer. Todo o tempo das crianças está direcionado, com objetivos. Prolongar o período de aulas retira ainda mais a possibilidade de inventar, de desligar da rotina", afirma.

DestaquedestaqueSofia Chamusca lembra que "as crianças já vivem diariamente com um horário de aula muitíssimo completo e, muitas vezes, ainda preenchido com atividades extracurriculares. Não existe tempo livre".esquerda

Opinião partilhada por Alberto Veronesi, que diz estar em causa o bem-estar emocional das crianças. "É sabido que o bem-estar emocional está sobretudo relacionado com o equilíbrio entre o físico, o social, o profissional, o psicológico: se um destes cede por alguma razão, obviamente afeta o bem-estar emocional. Se os alunos são expostos a uma carga horária enorme no seu dia a dia, e ainda lhes acrescentam o número de dias, algum destes pilares do equilíbrio emocional cederá e, obviamente, terá repercussões diretas no seu bem-estar", sustenta.

No que se refere à saúde mental das crianças, Sofia Chamusca pede para que não sejam vistas como "mini-adultos". A saúde emocional também é essencial e as crianças de 1.º ciclo não podem ser pensadas como mini-adultos que estão a trabalhar. São crianças a viver uma fase maravilhosa de descoberta e devem ter tempo para serem livres e poderem fazer opções com o tempo livre de que usufruem", conclui.

A coordenadora pedagógica do Colégio Júlio Dinis alerta para o "cansaço notório" das crianças na fase final do ano letivo, em junho, resultado de maior carga de conteúdos lecionados, se comparados com o que "os pais tiveram em fase idêntica do percurso escolar".

DestaquedestaquePara Filinto Lima "a escola ideal teria por volta dos 170 dias de aulas e as interrupções letivas deveriam ser ponderadas em função dos ciclos de trabalho e atividades que evitassem a saturação". esquerda

Segundo Sofia Chamusca, ao cansaço, calor, aproximação das férias e consequente agitação do final do ano letivo, soma-se a "incompreensão por parte das crianças por saberem que os alunos mais velhos já estão de férias e eles ainda não". O ideal seria, diz, que as aulas "terminassem em meados de junho e, diariamente, os intervalos crescessem para, assim, equilibrar um pouco mais o tempo dentro de sala de aula".

Contudo, explica, as famílias poderiam não aceitar de bom grado um calendário escolar igual ao de outros ciclos. "As famílias não querem tempo livre no horário dos filhos. Muitas vezes perguntam que resposta a escola irá dar quando há uma tarde livre", lamenta.

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos de Escolas Públicas (ANDAEP) pede "idênticos períodos de lecionação para os anos de escolaridade não-sujeitos a exames finais".

"Os alunos portugueses, no 1.º ciclo, passam efetivamente muito tempo na escola", afirma. No entanto, o responsável explica que o ponto central da questão se prende com o "equilíbrio na distribuição do tempo". "As crianças do 1.º ciclo encontram-se entre as que possuem maior número de dias de aula na União Europeia. Contudo, de acordo com a publicação da Comissão Europeia Eurydice, 2021, The Organisation of School Time in Europe, Primary and General Secondary Education - 2021/22, [eles] estão entre os que possuem maior interrupção de verão. Temos, assim, uma maior concentração de dias/semanas de aulas sem interrupção, o que pode contribuir para uma saturação e cansaço", prossegue.

Na opinião do presidente da ANDAEP, a "problemática" deveria centrar-se na saúde mental: "É o bem-estar emocional das crianças que importa".

Filinto Lima alerta também para a dificuldade de gestão de horários porque "há muitas famílias que, em razão deste desfasamento, com filhos matriculados em vários níveis de ensino, experimentam dificuldades em organizar-se para corresponder às novas rotinas". Para Filinto Lima, "a escola ideal teria por volta dos 170 dias de aulas e as interrupções letivas deveriam ser ponderadas em função dos ciclos de trabalho e atividades que evitassem a saturação".

A saturação das crianças é também o que leva Luís Sottomaior Braga, professor de História e especializado em gestão e administração escolar, a pedir que as crianças sejam vistas "como tal". "As crianças não são máquinas e a primavera e verão, em termos orgânicos, têm efeitos neles. E isso tem efeitos na capacidade de aprender com ânimo e vontade", conta, pedindo "mais moderação no esticar no ano escolar e também na carga horária, que é muita, até por comparação com outros países".

O Diário de Notícias contactou o ME, mas até ao fecho desta edição não obteve qualquer esclarecimento sobre o que motivou a manutenção do prolongamento do ano para o 1.º ciclo, medida implementada no decorrer da pandemia.

Arlindo Ferreira, diretor do Agrupamento de Escolas Cego do Maio (Póvoa de Varzim e autor do blogue ArLindo (um dos mais lidos na área da setor da Educação) defende uma "carga horária do 1.º ciclo igual à do 2.º ciclo (22 horas semanais)" e "aulas a acabar na mesma altura, no final do 3.º período". O responsável não concorda com a proposta de calendário escolar do ME e afirma que "uma semana a mais ou a menos até pode parecer que não faz diferença", mas o cansaço que "toda a comunidade escolar apresenta é real".

"O final de um ano letivo deveria ser leve e prazeroso para todos, contudo torna-se desgastante. Os alunos ficam mais irrequietos, como é natural, e muitas vezes os seus irmãos já estão de férias e eles ainda têm de ir à escola", conta, relembrando o tempo que os alunos passam em sala de aula. "Não é fácil, nem recomendável, manter os alunos na sala de aula cinco horas ou mais todos os dias", alerta. Para Arlindo Ferreira, o conceito de "escola a tempo inteiro, até às 17.30", que "surgiu para dar resposta às necessidades das famílias", deveria ser revisto, pois "não há necessidade de tanto tempo".

"Mas aí é o governo que tem uma palavra a dizer. Assim sendo, há necessidade de criar novos apoios para as famílias, as escolas não podem ser lugares onde "se toma conta" de meninos e meninas, e penso que a solução está na "jornada contínua" para pais com alunos até aos 10 anos. Como é fácil de ver, aumentar o tempo dos alunos nas escolas em atividades letivas e de enriquecimento curricular não é solução, sabendo-se também que muitas vezes este tempo é prolongado e os alunos ainda permanecem na escola em regime de ATL", esclarece.

"O ME sabe que o prolongamento do ano letivo não tem benefícios para as nossas crianças mais pequenas, por isso nem sequer apresenta qualquer justificação e/ou estudo científico-pedagógico", lamenta André Pestana, coordenador nacional do Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (S.T.O.P). O S.T.O.P não concorda com a proposta para os calendários escolares de 2022/2023 e 2023/2024 sustentando que "maior quantidade não se traduz necessariamente em maior qualidade". "Isso é evidente sobretudo nas idades onde manifestamente as crianças têm mais dificuldade em manter a concentração (1.º ciclo e pré-escolar). As crianças já passam demasiado tempo em salas de aulas, e brincar, sobretudo ao ar livre, é fundamental para o seu crescimento físico-psíquico saudável. Em Portugal desafia-se o princípio generalizado na Europa de que o número de dias de aulas deveria aumentar à medida que se avança na idade e nos percursos escolares", conclui André Pestana.

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