Cinco anos e meio à espera de um rim. Este é o tempo médio que um doente, em Portugal, pode ter de esperar para receber o órgão no Serviço Nacional de Saúde. A previsão não é bem aceite por muitos pacientes obrigados a fazer hemodiálise. Susana Sampaio, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação (SPT), conta haver sempre alguém que arrisca a pergunta: "Não há outra forma de encontrar um rim?" Legalmente, não há, mas existe quem procure atalhos. .Receber um rim oriundo de uma rede de tráfico não constitui crime. É o que pretende alterar a proposta de lei do governo que criminaliza o tráfico de órgãos - e cujo diploma, proposto pelo governo, será votado no Parlamento a 5 de abril. E quem aceitar transplantar-se com um órgão obtido no mercado negro também será punido..É o último passo para seguir as recomendações da Convenção do Conselho da Europa contra o tráfico de órgãos humanos, que Portugal ratificou em novembro de 2018 e que começou a produzir efeitos legais a 1 de março de 2019. Tem como principal objetivo a cooperação entre os países para acabar com as redes criminosas que lucram milhões num negócio que é um atentado à dignidade humana..De acordo com os últimos dados, há 2186 pessoas portuguesas à espera de um rim e o número total de órgãos transplantados desceu: em 2017 registaram-se 895 transplantes e no ano passado foram 829. Os dados apresentados apontam para uma média mais curta no tempo de espera por um rim: 53% dos doentes renais são transplantados em menos de dois anos..Mas ainda há uma taxa de 7,5% de pacientes que têm de esperar mais de cinco anos, o número apontado por Susana Sampaio. Há menos órgãos transplantados de dadores falecidos (757), mas também de dadores vivos (72). E o desespero alimenta um dos negócios ilegais mais lucrativos do mundo..Índia, China, Paquistão, Tailândia e Filipinas: vender um órgão por 500 euros."A cada seis minutos um órgão humano é vendido no mercado negro. Os rins representam 80 por cento do tráfico de órgãos humanos", é o primeiro dado do documentário Tales from the Organ Trade, da realizadora canadiana Ric Esther Bienstock. O filme foi lançado em 2013 mas, seis anos depois, o cenário mantém-se. O crime de tráfico de órgãos humanos está, segundo organizações internacionais, entre os dez crimes mais cometidos a nível mundial.."Entre 5% e 10% dos transplantes renais, por exemplo, são realizados através do comércio de órgãos. O preço varia entre os 62 mil euros e os 140 mil euros", disse a perita do Instituto Português do Sangue Ana Pires da Silva, no ano passado, durante o seminário Tráfico de Órgãos Humanos, onde considerou que "o tráfico de órgãos é um capítulo negro da história da transplantação". Valores milionários que não correspondem ao valor que é pago pelos que se mutilam para sair da pobreza: em alguns casos não chegam a receber sequer 500 euros..A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que haja dez mil casos de retirada ilícita de órgãos humanos de pessoas vivas ou mortas para transplantes ou outros fins. Segundo o mesmo organismo, a Índia, o Paquistão e a China são os países onde há mais turismo de transplantação: locais para onde os doentes com dinheiro viajam para serem transplantados com recurso a órgãos do mercado negro..A Convenção do Conselho da Europa para o tráfico de órgãos humanos foi assinada por todos os países europeus, também pelo Canadá, Costa Rica, Santa Sé, Japão, México e EUA. Da lista de assinantes não fazem parte o Paquistão e a Índia - países onde há quem venda um rim para conseguir alimentar a família - ou a China, onde era o próprio governo a autorizar a extração de órgãos dos prisioneiros condenados à morte - o país proibiu a prática em 2015, mas é impossível saber se esta foi efetivamente eliminada.."O panorama está a mudar", admite Susana Sampaio, que aponta outros países que entraram nos últimos anos na rota do tráfico de órgãos: Filipinas, Tailândia e Afeganistão. Os refugiados são as novas vítimas das redes criminosas que se dedicam ao tráfico de seres humanos, muitas vezes para recolha de órgãos para transplantação, que, segundo a ONU, é a segunda prática criminosa mais lucrativa, a seguir ao tráfico de armas..Portugal não faz parte da rota do tráfico de órgãos humanos. Porquê?.Em Portugal, não há registos formais de tráfico de órgãos humanos, apenas testemunhos de médicos que desconfiaram da origem de um órgão transplantado. Até que o diploma seja homologado pelo Presidente da República - e caso passe no Parlamento, o que Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, acredita que vá acontecer - está ainda em curso uma alteração ao Código Deontológico dos médicos para que estes possam quebrar o sigilo a que estão obrigados caso detetem uma situação de transplante ilegal.."Existem casos - não registados - de doentes que vão transplantar-se fora do país e que quando chegam à consulta nós ficamos com dúvidas acerca da legalidade desses transplantes", refere Miguel Guimarães.."A realidade é esta: se um doente tem seis mil euros e está à espera de um transplante em Portugal, e muitas vezes não sabe que está a fazer parte do tráfico de órgãos, consegue ser transplantado pagando esse valor. Mas quem vende esse rim só recebeu 400 ou 500 euros", descreve o bastonário. "É uma violação do direito das pessoas, é uma violação física, ética e deontológica", sublinha..Em Portugal, e ao contrário de outros países, como os EUA, todos são dadores. Quem não deseja que os seus órgãos sejam utilizados após a morte terá de se inscrever no RENNDA - Registo Nacional de não Dadores, criado com o objetivo de viabilizar "um eficaz direito de oposição à dádiva", lê-se no site do Serviço Nacional de Saúde. Por isso é que o país tem cerca de 95 por cento de dadores e, segundo Susana Sampaio, "no momento de morte as pessoas percebem que podem ajudar alguém e é muito raro [acontecer] uma recusa".."De alguns anos para cá tem sido feito um importante trabalho de campo para sinalizar dadores", diz ainda a presidente da SPT. O sistema de saúde público português "permite ao doente o acesso ao transplante independentemente das suas condições económicas" e ajuda a que Portugal não seja terreno fértil para redes de tráfico de órgãos. Ainda assim, a necessidade existe..Os casos de transplantes ilegais detetados são poucos e não estão registados. Em 2015, Fernando Macário, ex-presidente da SPT, falava na possibilidade de existir "um caso por ano" em Portugal. A Polícia Judiciária e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras confirmaram ao DN não existir nenhum caso oficial em investigação ou que tenha chegado ao conhecimento das autoridades..Até agora, mesmo nos casos em que os médicos suspeitaram que um doente tinha obtido o órgão de forma ilegal, o ato não constituía crime. É precisamente isto que o governo tenciona mudar com a votação do diploma no início de abril..População envelhecida. Há menos dadores em Portugal.Fernando Macário recordou o caso de um cidadão chinês que foi à China e comprou o rim a um condenado à morte, mas também já aconteceu um português ter viajado até ao Paquistão para receber o transplante. "Os casos que conhecemos são acima de tudo desconfianças dos médicos que acompanham esses doentes, nunca temos certezas", diz ao DN Miguel Guimarães. O bastonário só se lembra de um caso, quando ainda era interno no Hospital de São João, no Porto. "Um doente, na casa dos 50 anos, chegou Portugal com um rim transplantado. Após insistência, disse que tinha feito o transplante na Índia", conta o médico..Susana Sampaio recorda um caso semelhante, mas não consegue precisar se será o mesmo relatado pelo bastonário. "Tivemos um doente que fazia diálise e disse-nos que iria fazer o transplante fora do país. Fez o transplante na Índia e acabou por correr muito mal: teve uma rejeição imediata e ficou com hepatite C", relata..O aumento da esperança de vida nos países ricos vem contribuir para engrossar a lista dos doentes que precisam de um transplante, mas também diminuir o número de órgãos disponíveis. A tendência já tem reflexos em Portugal. Além de se terem registado menos dadores, em 2018 o país registou ainda a média mais elevada de sempre na idade do dador (57,3 anos). A esperança estará mais do lado da ciência do que no aumento do número de dadores ou órgãos disponíveis. "Já existe o chamado rim biónico ou rim artificial e esta pode ser a resposta para os milhões de pessoas com insuficiência renal em todo o mundo. Irá demorar até ficar acessível, mas quando acontecer será um procedimento que ficará até mais barato do que a hemodiálise", diz Miguel Guimarães. "É uma grande esperança", corrobora Susana Sampaio, "mas ainda estamos longe desse cenário", alerta..O que diz a proposta de lei?."O ordenamento jurídico‑penal português não consagra o tráfico de órgãos humanos, com a densidade axiológica prevista na mencionada convenção, como uma incriminação autónoma. Assim, introduz-se no Código Penal um novo tipo legal - o crime de tráfico de órgãos humanos - para conformar o ordenamento jurídico interno às exigências da convenção", lê-se na proposta de lei n.º182/XIII..A convenção identifica os comportamentos que devem ser criminalizados: "Remoção ilícita de órgãos humanos; utilização de órgãos removidos de forma ilícita para fins de implante ou para outros fins além do implante; implante de órgãos fora do sistema nacional de transplantes [em Portugal já não estavam autorizados os transplantes em hospitais privados]; solicitação ilícita, recrutamento, oferta e pedido de vantagens; preparação, preservação, armazenamento, transporte, transferência, receção, importação e exportação de órgãos humanos removidos ilicitamente.".O diploma conta com o parecer do Conselho Superior de Magistratura e da Ordem dos Médicos, mas também da Procuradoria-Geral da República, que recorda o facto de o ordenamento jurídico-penal português não consagrar o tráfico de órgãos humanos, "pelo que se introduz no Código Penal um tipo legal para conformar o ordenamento jurídico interno às exigências da convenção - o crime de tráfico de órgãos humanos"..Estão contemplados os "crimes cometidos no território dos países que assinaram a convenção, mas também a bordo de um navio; a bordo de uma aeronave, por um dos seus nacionais ou por uma pessoa com residência habitual no seu território", descreve o parecer. Crimes que, se o diploma passar na Assembleia da República e for homologado por Marcelo Rebelo de Sousa, irão passar a estar incluídos no artigo 5.º c) do Código Penal..Penas até cinco anos para médicos que façam transplantes ilegais.As principais alterações são a inclusão do crime de tráfico de órgãos humanos que se insere no capítulo dedicado aos crimes contra a integridade física. "Quem extrair órgão humano, de dador vivo, sem o seu consentimento livre, informado e específico ou de dador; quando, em troca da extração, se prometer ou der ao dador vivo, ou a terceiro, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou estas as tenham recebido" arrisca uma pena de prisão de três a dez anos..A mesma pena é aplicada a quem, tendo conhecimento destes crimes, "preparar, presentear, armazenar, transportar, transferir, receber, importar ou exportar órgão humano extraído nessas condições ou utilizar órgão humano, ou parte, tecido ou células deste para fim de transplantação, investigação científica ou outros fins não terapêuticos"..Também comete o crime "quem aliciar dador ou recetor" - os chamados brokers - e "quem extrair, atribuir ou transplantar órgão humano, em violação das legis artis ou fora das condições legais" - os cirurgiões ou médicos responsáveis pelo transplante serão punidos com penas de prisão de um a cinco anos, no mínimo, mas o diploma contempla uma pena mais pesada se os crimes acontecerem, por exemplo, no contexto de uma organização criminosa..Partidos acompanham proposta do Governo.Todos os partidos com assento parlamentar vão votar a favor do diploma proposto pelo Governo..Sara Madruga da Costa, vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, considera que a iniciativa "só peca por tardia. Há muito tempo que já poderíamos ter incluída na nossa legislação a criminalização do tráfico de órgão humanos", afirmou. BE, PCP, Verdes e PAN também confirmaram ao DN que irão votar a favor do diploma..Já o CDS, através da deputada Vânia Dias da Silva, vai sugerir uma alteração ao diploma, no sentido do crime se inserir "no capítulo [do Código Penal] que criminaliza o tráfico de seres humanos" e não no capítulo dedicado aos crimes contra a integridade física, como é proposto pelo Governo.