A ciência ganhou pontos à doença. Prolongou a vida. Adormeceu a morte, mas inquietou o envelhecimento. E agora? Como tratar o cérebro? Como proteger a memória? As expectativas traçadas a 30 ou a 50 anos marcavam as demências - ou doenças neurodegenerativas - como a epidemia silenciosa do século. Cada caso de Alzheimer fazia soar os alarmes nos laboratórios. Os neurocientistas focaram-se na descoberta de um fármaco milagroso. Mas até agora nada. E o caminho pode ter várias alternativas..Em entrevista ao DN, no seu laboratório, e onde desde 2013 lidera uma equipa de oito investigadores, a neurocientista do Instituto de Medicina Molecular (IMM) João Lobo Antunes, Luísa Lopes, de 44 anos, bioquímica de formação, explica o que hoje já se sabe sobre este órgão, sobre a memória, e o que ainda falta saber para o proteger e para o tratar..Mas não tem dúvidas quando afirma: "O cérebro é um órgão que deve ser tratado como qualquer outro. Por vezes, temos alguma resistência a isso, mas o cérebro precisa de proteção.".Vou começar por si. Como neurocientista pensa muito na memória e no que lhe pode acontecer? Bem, não pensava muito, mas com a idade começo a ter alguns cuidados. Hoje tenho 44 anos e sinto que não tenho a mesma resistência que tinha. E isso faz-me pensar que tenho de ter cuidado. Isto por um lado, por outro gosto de me manter ativa, de manter a minha energia..Sei que gosta que a tratem só por Luísa, sem o Dra., que é uma mulher enérgica, um pouco impaciente... [ri-se] Tenho muito pouca paciência para quem me diz que não se podem fazer coisas porque são difíceis ou porque nunca se fizeram antes. E é preciso ter muita energia para combater esta cultura..O que faz? Agora já não tento combater esta cultura, mas faço o que acho que devo e tento rodear-me de pessoas que sejam pragmáticas, positivas e viradas para o futuro. Isto é importante, porque a nossa atitude mental muda muito a forma de como encaramos a vida e o futuro..É importante também para a ciência... Para a vida e para a ciência. Nós, os cientistas, que temos de estar sempre a lutar pelo financiamento, em que a nossa prática nos dá mais falhanços do que sucessos até alcançarmos as respostas que procuramos, se não tivéssemos uma grande dose de motivação, curiosidade e de energia, não sei como era....É uma característica comum aos cientistas... É uma característica comum a muitos de nós. Temos de ter alguma resiliência, mas, ao mesmo tempo, sou defensora de uma vida regrada. Tenho consciência de que há um equilíbrio que é necessário manter. E digo muitas vezes: "São as pessoas que têm muitos interesses na vida, muitas curiosidades paralelas, que vão chegar a algum lado." Acho que esta perspetiva enriquece tanto a vida como o trabalho..Nasceu a 4 de julho, no Bombarral, onde andou na escola primária e no liceu. Nesta altura já se interessava pela ciência? Sim, já tinha a ideia de que queria ser bióloga. O meu interesse pela biologia começou muito cedo e com a ajuda da minha mãe. Ela sempre foi muito curiosa e incutiu-me a mim e às minhas irmãs a ideia do sentido crítico. De pôr as coisas em causa, mas de uma forma saudável. Quando fiz 12 anos deu-me o livro sobre a vida da Marie Curie, uma mulher muito diferente do seu tempo, cientista, virada para o seu trabalho, não queria casar nem ter filhos quando jovem, a primeira a ganhar um Prémio Nobel, uma mulher que não era o que se esperaria para uma mulher daquela época. Eu recebi o livro, ainda o tenho, li-o e adorei. Nele escrevi: "Sou a Luísa, tenho 12 anos e quero ser bióloga.".Foi este o momento... Este foi o ponto em que percebi que gostava de fazer ciência. Na altura, não sabia que ciência queria fazer. Lembro-me de andar à procurar de cursos, sem saber se havia de escolher biologia ou bioquímica, mas a bioquímica fascinou-me, juntava a ideia de investigar o funcionamento das células, mas ligado à medicina humana. Por isso, o ser cientista é uma ideia de há muito tempo..A memória é absolutamente necessária para o nosso processo de decisão.Vamos então à memória. O que é? Um armazém de informações, de emoções, sensações, sonhos? De forma muito simples: a memória é a capacidade de reter informação e a capacidade de a evocar quando é necessária. Hoje sabemos que há vários tipos de memória: a chamada episódica, que é a memória dos factos e dos eventos no tempo, a emocional, em que associamos emoções a momentos particulares, e a sensorial, dos sentidos. E o que sabemos hoje é que a memória é mais fortalecida se for associada a qualquer uma destas componentes..Por exemplo... Se formos ver um filme que nos desperte uma emoção muito forte vamos lembrar-nos mais facilmente do enredo. E porquê? Porque há uma conexão direta entre a amígdala, que, no fundo, é uma zona do cérebro, que é sensível às emoções, e o hipocampo, que gere a memória. A memória é muito mais complexa do que imaginamos. Já se sabe hoje que é absolutamente necessária para o nosso processo de decisão..Porquê? Porque todos os dias tomamos decisões com base nas experiências prévias. De uma forma ou de outra, a memória é necessária para tudo. É necessária para a orientação espacial. O hipocampo, uma zona normalmente associada à doença de Alzheimer, é muito importante para a orientação espacial, sendo a desorientação um dos sintomas da doença. A memória episódica, como já falámos, quando associada a odores, também fica mais fortalecida. Quantos de nós não se lembram de coisas da infância baseadas em odores que sentem? Por exemplo, uma comida favorita na casa da avó. Isto evoca memórias..Este lado da memória associada a odores tem sido muito estudada? Tem. Sabe-se que, no fundo, é como se além da memória e do tempo estivéssemos a ter duas vias que reforçam um momento. Tornam-no mais forte. O facto de juntarmos um estímulo visual, ao escrevermos uma lista ajuda-nos a memorizar mais, do que se estivéssemos só a decorá-la em voz alta. Há truques para aumentar esta capacidade mnemónica. A repetição, o usar cores, e outros estímulos sensoriais fortalecem a memória, para o bem e para o mal. Em situações de trauma fica-se com uma recoleção do momento mau, uma memória que é desagradável....Então é a memória que nos faz viver ou é possível viver sem memória? Do ponto de vista físico é possível viver sem alguns tipos de memória. Uma das grandes experiências que nos permitiu perceber a importância da memória foram as efetuadas com o paciente HM, que ficou muito famoso..Porquê? O paciente HM era um jovem americano com um tipo de epilepsia que não era tratável desde criança. Na altura, em 1953, o médico dele fez o que se faz em casos extremos, naqueles em que o organismo não responde à medicação para que a pessoa possa ter alguma qualidade de vida. Ou seja, removeu bilateralmente o hipocampo e ele perdeu a capacidade de formar novas memórias. Tinham de estar sempre a repetir-lhe todos os dias a mesma coisa, não se lembrava de quem tinha conhecido, mas não perdeu aquilo a que chamamos a memória de procedimentos, a memória do trabalho, lembrava-se de como desenhar, como andar de bicicleta e outras coisas. A pessoa vive, mas em termos de qualidade de vida perde a sua autonomia. Vivemos em termos físicos, mas ao perdermos a memória também se perde qualidade de vida. Os neurocientistas da memória estudam muito a história do paciente HM, porque foi a primeira vez em que se percebeu a importância deste tipo de memória..Ou seja, em termos físicos existe-se, mas perde-se qualidade de vida. Logo é a memória que nos alimenta as decisões, as emoções, que nos faz viver... Esse é um ponto de vista filosófico, mas a memória é uma parte muito importante da nossa identidade, faz parte de nós. Em termos sociais é muito difícil quando alguém perde a sua memória, porque perde também a sua capacidade de socializar, passamos a existir apenas. Como dizia Luis Buñuel na sua autobiografia: "A vida sem memória não é vida. A nossa memória é a nossa coerência, a nossa razão, o nosso sentimento e até a nossa ação. Sem isso, somos nada.".Quais são os fatores que colocam em risco a memória e que contribuem para a sua degradação? Primeiro convém esclarecer que o declínio cognitivo do envelhecimento não é uma doença, faz parte do envelhecimento. Ou seja, o ser humano conquistou longevidade ao conseguir tratar doenças infecciosas e ao facto de melhorar as condições sanitárias. Hoje conseguimos manter-nos mais saudáveis durante mais tempo. Escapamos às infeções e a outras doenças com antibióticos e hábitos de higiene, mas isto trouxe outro problema: o aumento das doenças do envelhecimento, e o maior fator de risco da demência é o envelhecimento..Mas há fatores que podem atenuar o envelhecimento e o funcionamento da memória? Há várias coisas que os neurocientistas já sabem. Por exemplo, há fatores de risco para a demência que podemos gerir melhor. São eles: o isolamento social, um historial de depressão, daí que seja muito importante que as pessoas diagnosticadas com doença mental a tratem, problemas de sono, que a pessoa deve diagnosticar e tratar também, o risco de doenças cardiovasculares e o sedentarismo intelectual ou físico. Isto não é pseudociência. É um facto. Há estudos de prevenção nos países nórdicos muito interessantes e que nos levam a isto..Quais? Na Finlândia, foi levado a cabo o chamado estudo de FINGER, que juntou 1200 pessoas identificadas como tendo elevado risco de declínio cognitivo, e às quais foi prescrito, como se fosse um medicamento, uma dieta adequada, um regime de exercício físico, monitorização de risco cardiovascular e a interação social. A primeira análise dos resultados, ao fim de dois anos desta intervenção, mostrou que tal tinha sido eficaz na redução do declínio cognitivo..O estudo continua, há mais resultados? Sim, estas pessoas vão continuar a ser seguidas até 2024, mas, para já, sabe-se que esta intervenção de dois anos foi eficaz. Temos de ter esta noção. Há os fatores de risco intrínsecos (história familiar, idade, sexo, genética), que não podemos modificar, e os extrínsecos, ou seja, passíveis de intervenção. Para nós cientistas era muito importante conseguir um medicamento milagroso, mas hoje já sabemos que estes fatores têm sido eficazes na diminuição do risco para a demência, tão eficazes que a incidência da doença de Alzheimer [número de casos novos/população em determinado período] diminuiu em relação à geração anterior. Não há uma diminuição do número total de casos, esse, quanto mais envelhecida está a população, mais irá aumentar. Se calhar, estamos todos mais conscientes do que há 40 anos sobre o impacto que este estilo de vida pode ter. E isso está a fazer a diferença..Mas há um modelo de exercício físico específicos ou alimentos que ajudem a prevenir a degradação da memória? Há estudos desses a serem feitos em Portugal sobre a intensidade e a frequência de exercício físico que pode diminuir o risco de demência, não só a doença de Alzheimer especificamente. A estimulação cognitiva, por exemplo, também. Há estudos muito avançados já neste aspeto. O que sabemos é que uma alimentação que previna o risco de patologias cardiovasculares é uma alimentação que previne o envelhecimento precoce e que diminui o risco de demência..Esses projetos já estão a ser feitos noutros países? O projeto FINGER, por exemplo, está a ser replicado noutros países, nomeadamente da Ásia, da Europa, nos Estados Unidos e na Austrália, e obviamente que terá de ser adaptado à dieta e à realidade cultural de cada povo. Mas a base é atuar nestes fatores de risco. Em Portugal, que eu saiba, o projeto FINGER ainda não foi aplicado dessa forma. Mas já há muitos grupos a estudar este tipo de intervenção em estudos mais pequenos, como os do exercício físico, que referi, ou de estimulação cognitiva..Em 2007, regressou a Portugal porque queria voltar à academia e investigar a importância do stress na prevenção do declínio cognitivo. O stress é um fator de risco? O stress é uma adaptação positiva. Faz-nos reagir. É necessário à sobrevivência, embora às vezes o associemos a uma coisa má, mas não é. O stress é benéfico, mas quando é autolimitado. Se é continuado no tempo, quando perdura, ou se é de uma intensidade enorme num curto espaço de tempo, passamos a ter uma situação patológica, tornando-se mais grave. Há situações que podem levar à depressão, que já por si é um fator de risco de demência..Mas o stress crónico é? Só por si, não. Ou melhor, com essa designação. A questão é que depois pode resultar noutros problemas. Por exemplo, os soldados do Iraque diagnosticados com stress pós-traumático, aqueles que tinham ataques de pânico, problemas de sono, queixas cognitivas, foram estudados. E quando se foi avaliar o volume do seu hipocampo, percebeu-se que este estava grandemente diminuído - o hipocampo é um sensor de stress. Na altura, pensou-se: isto é irreversível, porque qualquer atrofia numa estrutura cerebral significa morte de neurónios, a maior parte não se regenera. Mas o que veio a seguir são boas notícias. Ficámos a saber que o grande efeito de um stress maior provoca uma redução nas ramificações dos neurónios, dos prolongamentos, e não tanto a morte dos neurónios. O que significou, e isto é bom saber, que se conseguiu normalizar o volume do hipocampo daquelas pessoas com tratamentos de psicoterapia e antidepressivos..A que pistas é que isso nos leva? Deu-nos duas pistas. Primeiro que o stress é algo que podemos tratar e tentar intervir. Mas é muito importante que se atue na fase em que ainda não há um comprometimento do neurónio, quando ainda temos a célula, mesmo que esta tenha a tal retração nas ramificações. Outra pista, esta dos nossos estudos, é que também se percebeu que o análogo da cafeína consegue normalizar a estrutura do hipocampo..A cafeína e os seus efeitos no cérebro foi a primeira publicação com impacto mundial do seu grupo de trabalho... Quando vim para Portugal queria perceber se o stress crónico podia ou não ser um fator exacerbador do declínio cognitivo. Já se sabia que o stress agudo era, pois havia muita literatura nesse sentido. Sabíamos também que após um período de stress agudo há, normalmente, queixas cognitivas. Mas a minha questão era mais profunda, queria perceber como é que o stress moderado poderia, mais tarde, ser um risco para a perda de memória ou para a existência de sequelas. Vim para o IMM, criámos uma sala de comportamento animal, para fazer monitorização e vários testes de memórias, e conseguimos perceber que a cafeína poderia prevenir o declínio e os défices de memória, que estão associados ao stress crónico.."O cérebro tem de ser tratado como se trata o fígado ou a pele".Há pouco falou na depressão e de como é um risco para a demência. Isto quer dizer que as pessoas que sofrem de depressão e que não se tratam estão a cometer um erro? Na nossa perspetiva isso tem de ser avaliado clinicamente, mas um não tratamento será sempre uma má opção nestes casos, porque aumenta muito o risco de outras patologias. Quanto mais cedo for identificada a depressão e tratada na medida do que é possível, porque cada caso é um caso, mais cedo se previne o risco de demência. Porque é que as pessoas não hão de tratar o seu cérebro como tratam o fígado ou a pele? Quando temos um problema destes vamos ao médico e tratamo-lo, quando há um problema no cérebro, temos alguma resistência. Achamos que temos de ser fortes e que conseguimos suprir sozinhos. Não é verdade. Há muitos casos em que não o conseguimos sozinhos e precisamos de um acompanhamento profissional. Tal como os outros órgãos, o cérebro precisa de ser tratado e precisa de proteção precoce..Agora também se fala muito nos ciclos circadianos. O trabalhar por turnos pode afetar a memória? O mercado de trabalho deveria valorizar isto? A primeira coisa importante a dizer, até para não se ser alarmista, é que há pessoas que não sofrem muito com o trabalho por turnos. Depende muito da pessoa e do seu cronótipo, ou seja o seu ritmo biológico individual. Mas já há algumas empresas que começam a ter isso em conta, porque há profissões em que o trabalho por turnos é inevitável. Por outro lado, também já há formas de se mitigar um bocadinho os efeitos do trabalho por turnos. Uma delas é poder fazer-se um acompanhamento maior dessas pessoas para se identificar se há ou não casos mais crónicos do que outros para que sejam tratadas. Outra situação é respeitar o cronótipo de cada pessoa, o que é algo muito interessante..Como é possível fazer isso no mercado de trabalho? Entre nós humanos há madrugadores e notívagos. Isto é fácil de identificar, já há análises que o permitem fazer. No laboratório há alguns projetos que envolvem esta vertente, poder medir-se a atividade de uma pessoa pela chamada actigrafia, sendo possível perceber pela sua atividade, mas também pelo seu perfil de libertação de melatonina, a hormona indutora do sono, qual é o seu ritmo interno. Por exemplo, uma pessoa intelectualmente ativa, e que tenha um relógio biológico para acordar às 07.00, deveria ser indicada para os turnos da manhã. Enquanto as pessoas mais ativas à noite deveriam ser indicadas para esse horário. Assim estariam todas mais ajustadas..Se isso não for respeitado pelo mercado de trabalho e até pelas próprias pessoas, pode ser mau para a memória? Terá consequências sim se a pessoa não for acompanhada. Mas nós, seres humanos, temos muita tendência para contrariar o nosso ritmo biológico. Os ciclos de luz são importantes, deveríamos estar mais expostos à intensidade da luz, deveríamos estar mais tempo na rua. Há estudos muito interessantes com pessoas que têm problemas de sono e que se estiverem duas semanas a acampar dormem muito melhor..Porquê? Há uma sincronização mais eficaz da libertação das hormonas que são necessárias para induzir o sono. Nas férias, na praia, as pessoas apanham imenso sol e dormem melhor, não é só porque estão de férias, é porque o sol é muito importante. Deveríamos apanhar sol e estar expostos à luz natural, porque é a intensidade da luz do sol que nos sincroniza enquanto animais e não a luz artificial..O comportamento saudável torna o cérebro mais capaz de lidar com o envelhecimento.Se forem respeitados os ciclos circadianos, se se fizer exercício físico e uma alimentação adequada, se tivermos uma interação social, quer dizer que estamos a proteger a nossa memória das demências? Segundo os dados científicos alcançados até agora, claramente que estamos. É este o caminho que se deve fazer. Não gostamos de ser moralistas, no sentido de dizer que agora nada se pode fazer. Não tem que ver com isto. Tem que ver com termos outros comportamentos. Ou seja, com os comportamentos que não nos colocam em risco de forma continuada. Se o fizermos vai ser pernicioso no futuro. Um tipo de comportamento mais saudável torna o cérebro mais capaz de lidar com o envelhecimento. Se o respeitarmos estamos, se quisermos, a retardar o envelhecimento cerebral..Com os estilos de vida que temos hoje como é que olha para a memória no futuro? O que nos vai acontecer? Olho sempre para o futuro com grande otimismo. Não sou fatalista. Acho que temos de ter alguns cuidados. Neste momento já conquistámos muitos anos à doença, mas continuamos a aprender cada vez mais. Aprendemos muito uns com os outros, mas a velocidade de processamento de informação que a tecnologia veio incluir nas nossas vidas não só a melhorou em muitos aspetos, como também acelerou a ciência como nunca..Esta velocidade veio colocar o ser humano à prova? Temos de perceber que, por vezes, fazemos coisas sobre-humanas, exageramos na nossa capacidade de estar ativos, sempre performantes e sempre com o nosso melhor desempenho. E isto não é humano. Temos de respeitar os limites, temos de perceber o sono, que o período de inatividade cerebral, que no fundo é o período de recuperação cerebral, é tão importante como o período de atividade, e o ser humano tende muito a desvalorizar o período de descanso..O tempo de descanso é tão importante como o da atividade? Esse tempo é importante para a formação das memórias, para a recuperação do cérebro e sobretudo para o sistema de controlo da qualidade das células. Ou seja, para a eliminação de resíduos tóxicos e para o restabelecimento do funcionamento celular. Isto é importantíssimo para mantermos ao longo do tempo um desempenho ótimo, que é agora o chavão da sociedade moderna....Afinal, há mesmo uma linguagem entre o cérebro e o sistema imunitário.É verdade. Mas agora também se fala de uma linguagem entre o cérebro e o sistema imunitário. Como é que interagem? Até há muito pouco tempo pensava-se que o cérebro era o órgão que interagia com o sistema imunitário quando havia um insulto ou um problema, mas estamos a perceber agora, ainda numa primeira fase, que mesmo numa situação de fisiologia, em condições normais, há atores ou mediadores do sistema imunitário que são importantes até para as funções normais. É um trabalho que está a ser feito no IMM em colaboração entre as neurociências e a imunologia. A área da neuroimunologia é recente, surgiu a partir do momento em que se percebeu que havia vasos linfáticos no cérebro e que, portanto, havia forma de mediadores imunitários chegarem ao cérebro que não fosse só por insulto, como por uma neuroinflamação, por um agente tóxico externo, etc..Mas em que consiste este trabalho? É um trabalho coordenado por um grupo de Imunologia do IMM [Bruno Silva Santos e Julie Ribot] no qual colaborámos. Queríamos perceber se uma determinada interleucina poderia ter um papel importante no cérebro e percebemos que, de facto, há moléculas tão importantes que, se não estiverem lá, deixa de haver memória a curto prazo, funções cruciais do sistema nervoso. Isto é uma mudança no paradigma que existia, mas, biologicamente, até faz sentido que o cérebro use os recursos à sua disposição e que são importantes para a memória. Ou seja, percebemos que atores do sistema imunitário são também importantes para a memória fisiológica. Agora, estamos a tentar perceber, e na continuação deste trabalho, se estes mediadores podem ou não ter impacto na neurodegeneração. Será que podemos usar este conhecimento para perceber melhor a neurodegeneração? É a fase seguinte..Tem-se falado muito nas experiências em animais que envolveram o sangue. Também se pode ir por aqui? Em 2014, houve um estudo nos Estados Unidos, que até foi muito noticiado em Portugal, e que consistiu em juntar dois animais, um idoso e um mais jovem, juntar os seus sistemas circulatórios e fazer que no animal idoso circulasse sangue do animal jovem. Quando se analisaram os vários órgãos do animal idoso percebeu-se que, de alguma forma, tal rejuvenescia os órgãos..E como? Diminuía os marcadores que normalmente associamos à senescência das células. O estudo teve um follow-up e percebeu-se que se usássemos plasma de animais jovens e se introduzisse em animais idosos com deficiências de memória, que se conseguia atenuar estes défices cognitivos. Mas há agora muita investigação a tentar perceber que fatores solúveis do sangue são estes que poderão ter este efeito no rejuvenescimento das células e, se forem identificados, se poderão ser eficazes no homem..E sobre os medicamentos que existem e se sabe que previnem o envelhecimento? Há vários fármacos a serem testados para se avaliar se previnem o envelhecimento celular no homem (por exemplo, os denominados senolíticos), mas ainda não sabemos nesta fase quais são os seus efeitos de proteção do cérebro. Sabemos que os fatores solúveis do sangue parecem ter este efeito em modelos de animais, em humanos há pistas, mas ainda não há dados definitivos..Este tipo de terapia através de fármacos antienvelhecimento, de uma dieta adequada, da interação social do exercício físico, pode ser o futuro em termos de terapia para a memória? Acho que tem de ser encarado como um complemento crucial. Ao contrário do paradigma atual, em que achamos sempre que é um fármaco que vai ser a solução. Este conceito de terapias multidisciplinares é importante, sobretudo em patologias multifatoriais e complexas como estas. Não são uma solução farmacológica, mas têm demonstrado alguma eficácia. O futuro está a começar a ser este, obviamente que são métodos mais morosos e nós preferimos tomar um comprimido anticolesterol do que se calhar fazer dieta. A nossa natureza não está neste tipo de atitude, mas temos dados que o comprovam. Mas esperemos também que, muito em breve, possamos ter um fármaco disponível.