Há cem anos nasceu em Lisboa uma menina chamada Amália Rodrigues. Até há pouco tempo eu não sabia quem era Amália", conta Alexandra, com a voz colocada, dirigindo-se a um público imaginário. Quando Alexandra nasceu Amália já tinha morrido. Mas, apesar disso, ela cresceu a ouvir os fados. "Parece que eu só sossegava quando a minha mãe punha o CD da Amália.".É assim, ao som da viola e da guitarra portuguesa, que começa o espetáculo 100 Amália, criado no âmbito do clube Músicas & Musicais do Agrupamento de Escolas Nuno Gonçalves, em Lisboa, mas que neste domingo sai dos portões da escola e sobe ao palco do Teatro São Luiz. São 35 miúdos, entre músicos, cantores e atores, do 5.º ao 12.º anos, que nos vão contar como descobriram a fadista do xaile negro, o que aprenderam sobre a vida dela e quais as músicas de Amália que mais gostam de ouvir.."Quando, há um ano, lhes disse que íamos fazer um espetáculo sobre a Amália ficaram todos a olhar para mim de boca aberta, muito poucos sabiam quem era, quase nenhum está habituado a ouvir fado", conta Rosário Lucena, a professora de Música que, desde 2004, é a responsável pelos espetáculos musicais da escola. O desafio era aprender mais sobre Amália no ano em que se celebra o seu centenário. A pandemia estragou-lhes os planos. 100 Amália deveria ter sido apresentado antes da Páscoa mas, com o encerramento das escolas e o confinamento, acabou por ser adiado. "Depois de seis meses sem contacto uns com os outros, tem sido uma semana louca, de recomeço das aulas e de ensaios para poder, finalmente, apresentar o espetáculo." E, para piorar um pouco mais, os alunos ensaiam de máscara. "Não é fácil mas eles têm-se esforçado muito, são uns heróis!"."Começou tudo com a festa do cinquentenário da escola, quando decidimos fazer o Cats", lembra a professora. Correu tão bem que decidiram criar um clube de teatro musical e, depois, também uma orquestra. De então para cá, o clube Músicas & Musicais já se aventurou, entre outros, pelos universos de My Fair Lady, Annie, O Pai Tirano e Mamma Mia!.."As áreas artísticas e musicais desenvolvem várias competências dos alunos: o trabalho colaborativo, a autoestima, a criatividade, o pensamento crítico... Além disso, é engraçado porque este clube junta miúdos de diferentes idades e criam-se amizades entre alunos do secundário e do 5º ano." O clube acabou por tornar-se um dos mais populares da escola. "As pessoas têm ideia de que os bons alunos é que fazem bons espetáculos mas não é necessariamente assim, e todos os anos temos alunos que têm problemas de comportamento ou de aproveitamento mas que no palco são impecáveis", explica a professora..A ideia de fazer um espetáculo sobre a Amália foi de Camané e surgiu numa conversa com Sara Pereira, a diretora do Museu do Fado. O fadista recorda: "Aquilo que normalmente se faz é um espetáculo em que uma rapariga interpreta a Amália e tem de interpretar a sua vida e todos os dramas, mas o que eu achei que seria engraçado era ter um espetáculo em que os jovens nos dão a sua própria visão de quem é a Amália. Porque são uma geração muito nova e nem todos têm contacto com este tipo de música, essa diversidade de olhares poderia ser interessante, como é que descobriram a Amália, o que é que os pais lhes contaram, como é que eles interpretam as suas músicas?".A diretora do museu lembrou-se de desafiar o Músicas & Musicais, com o qual já tinha colaborado em 2011, num outro espetáculo, Os Cantos do Fado. A professora Rosário Lucena abraçou logo a ideia, mesmo sabendo que iria ser difícil envolver os miúdos: "Ouvimos muitas músicas e vimos muitos vídeos da Amália. Fizemos uma visita ao Museu do Fado e andámos a passear por Alfama, espreitámos as casas de fado. E tivemos duas visitas muito importantes: o Camané e o David Ferreira, filho do David Mourão-Ferreira. Foram conversas muito interessantes, eles conheceram a Amália e foram fundamentais na partilha, na envolvência e na forma como contaram as suas histórias", explica a professora Rosário.."Nós tínhamos uma noção de quem era a Amália, sabíamos que era fadista mas não sabíamos muito mais do que isto", admite Inês Simões, aluna do 11.º ano. "Eu não tinha grande conhecimento de fado, só tinha ouvido aquelas músicas mais conhecidas, e com este espetáculo foi um mundo que se abriu", concorda André Bernardo, do 10.º ano. "A mim o que mais me surpreendeu foi a forma como ela, de uma pessoa humilde e pobre, passa tão rapidamente a ser famosa", acrescenta Margarida Xavier, do 11.º ano. "Principalmente porque Portugal é um país pequeno e a fama que ela alcançou no estrangeiro é surpreendente.".Camané tem noção de que esta geração tem uma relação com Amália completamente diferente da que ele teve, só pelo facto de a cantora já não estar entre nós, não aparecer na televisão nem dar concertos por aí. "Mas isso não quer dizer que não possam ter uma relação com a Amália tal como temos com Ella Fitzgerald ou Billie Holiday ou Maria Callas", diz. O fado não tem de ser um bicho-de-sete-cabeças, não tem de se fazer silêncio absoluto nem ficar de cara séria. "Vamos aprendendo e vamos gostando de maneira diferente quando temos 10 ou 15 anos e depois mais crescidos.".Também por isso, uma das preocupações de Rosário Lucena foi escolher temas que fossem mais acessíveis: "Não queria pôr jovens e crianças a cantar fados que requerem uma certa vivência, com letras que eles não iriam compreender. Então, escolhemos aqueles que fossem mais leves, mais alegres. O Camané trouxe-nos as gravações de Amália a cantar o Tiro-Liro e o Alecrim e isso permitiu que todos estabelecessem uma relação com ela."."Acho que uma das grandes dificuldades para nós foi entender o peso que o fado tem e o que alguns fados fazem sentir as pessoas mais velhas", diz Inês. Margarida continua: "Disseram-nos que para absorver o significado de alguns fados era preciso alguma experiência de vida. Até nos disseram que nas casas de fado havia pessoas que choravam a ouvir, porque sentiam aquelas histórias como uma coisa mesmo pessoal." Quando lhes perguntamos quais os fados de Amália de que mais gostam, André elege Madrugada de Alfama, Inês prefere o Novo Fado da Severa e Margarida refere É ou Não É..Gonçalo Ferreira, do 11.º ano, estudou viola no Conservatório e há anos que faz parte da orquestra da escola - habituado a um repertório mais clássico, confessa que se surpreendeu por acabar por gostar tanto de fado. O seu preferido é Não Sei Porque te Foste Embora. Rodrigo Xavier, do 6.º ano, o mais pequeno e agitado dos intérpretes, gosta mais de A Casa da Mariquinhas, que é também o preferido de Isabel Saleiro, do 7.º ano, que não esconde que está um bocadinho nervosa por este ser o seu primeiro espetáculo na escola..De todos os participantes do espetáculo, aquele que está verdadeiramente como peixe na água é Daniel Freire, aluno do 10.º ano, que toca guitarra portuguesa. Sobrinho do guitarrista Ângelo Freire, Daniel estuda no Conservatório desde os 10 anos e toca todas as sextas e sábados na Tasca do Jaime, em Alfama. "Ainda estou a aprender mas gostava de ser profissional", diz, sorridente, o guitarrista de 15 anos. Para ele, que cresceu entre fados e guitarradas, a história de Amália não foi novidade e está completamente à vontade: nem precisa de pauta e tem sempre o pé a bater no compasso certo.