"Eu já nem saio à rua com medo da desgraça", ouve-se Manuela Azevedo cantar, mais ou menos meio de Armário, mais uma canção de avanço de Véspera, o novo disco dos Clã, pondo fim a um longo hiato de seis anos, pelo menos no que aos álbuns de originais diz respeito. "Eu sinto falta de ar, preciso sair, eu tenho falta de ar, eu quero sair, não dá p'ra respirar, eu quero sair", termina por dizer, já com o desespero na voz, a vocalista da banda portuense, que confessa nunca ter imaginado como a letra escrita por Capicua há pouco mais de um ano, se viria tornar tão "ilustrativa da realidade"..A rapper é uma das duas novas letristas convidadas pela banda portuense, tal como Aurora Robalinho, uma amiga pessoal do casal composto por Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves, o núcleo criativo dos Clã, que voltaram a convidar nomes como Sérgio Godinho, Samuel Úria, Arnaldo Antunes, Carlos Tê ou Regina Guimarães para escreverem as restantes letras de um disco "simples e direto", como ambos o caracterizam nesta entrevista conjunta ao DN..O novo trabalho marca também a estreia de dois novos membros, o baterista Pedro Oliveira e o baixista Pedro Santos, convidados para substituírem Fernando Gonçalves e Pedro Rito, dois dos membros originais do sexteto formado em 1992, que no ano passado, "durante cerca de meia hora", esteve em risco de terminar a carreira..Apesar de Véspera ser o primeiro álbum dos Clã em seis anos anos, não estiveram propriamente parados, certo? Manuela Azevedo (MA): depois do Corrente, que ainda teve uma digressão bem longa, até ao início de 2016, que foi quando começámos a pensar que iríamos fazer a seguir. E nessa altura fomos desafiados pelo Nuno Carinhas para fazer o Fã, uma peça que se revelou um desafio muito interessante, porque implicava entrar no território do teatro musical, algo que nós sempre gostámos muito, mas neste caso mais direcionada para o público infantil e juvenil. Implicava também que banda estivesse toda em palco, o que era algo novo para nós e acabou por ser um projeto que nos ocupou durante bastante tempo..Hélder Gonçalves (HG): E logo a seguir tivemos outro convite do Teatro Nacional, por parte do Miguel Fragata e da Inês Barahona para fazer outro musical, o Montanha Russa, que foi um processo ainda mais demorado porque teve uma carreira muito longa em palco, com muitos espetáculos, mesmo no estrangeiro, portanto acabámos por estar sempre muito ocupados e nos poucos buracos que tínhamos, íamos aproveitando para fazer algumas coisas em estúdio. Mas acima de tudo demorou todo este tempo porque estávamos a procura de algo diferente para este disco..Essas experiências no teatro acabaram por influenciar este disco? MA: Assim de uma maneira mais direta ou esteticamente mais reconhecível, não, mas terá contribuído de alguma forma..HG: Já há algum tempo que estamos a tentar encontrar uma maior simplicidade, ao nível dos arranjos das músicas, de forma a torna-las mais diretas. Julgo que neste disco damos mais um passo nesse sentido e nesse aspeto o trabalho realizado para teatro acabou por ajudar-nos a perceber o que poderia estar a mais, a fazer uma edição mais atenta, de modo a deixar aquelas coisas muito fortes e essenciais para a música..São uns Clã mais depurados, digamos assim? MA: Nós gostávamos que sim [risos]. Esse lado mais direto era algo que procurávamos para este trabalho e essa foi aliás a única orientação dada aos letristas. Ou seja não queríamos letras muito cínicas ou muito irónicas ou algo rebuscadas, nem melancólicas ou lamechas. Havia essa vontade de se ser franco mesmo ao nível dos textos, de ser uma coisa muito cara a cara, sem leituras nas entrelinhas. E essa ideia surgiu através da música, dessa franqueza nos elementos instrumentais..HG: O que não quer dizer em certos momentos não existam mais camadas, porque nós também gostamos disso enquanto banda. Aliás, um dos álbuns dos Clã que mais gostamos, o Rosa Carne, de 2004, é totalmente o oposto, porque surgiu numa altura em que estávamos precisamente a trabalhar a soma das camadas e o modo como isso poderia resultar na música, mas agora pretendíamos fazer o caminho inverso e apresentar algo mais direto..Falou há pouco dos letristas e neste disco há dois nomes que se estreiam a escrever para os Clã, a Capicua e a Aurora Robalinho. O que é que elas trouxeram de novo? MA: No caso da Capicua foi um convite nosso, porque já há muito que gostávamos do trabalho dela enquanto MC, mas principalmente da artesã das palavras que ela é, do amor que demonstra pela língua portuguesa. Já sabíamos que ela se conseguia multiplicar em diversas personagens, até pelo modo como escreve para diferentes públicos, como as crianças, portanto havia esse reconhecimento de um território comum, de coisas que nós gostamos e ela também faz. E havia uma canção em especial que parecia ser mesmo a cara dela. Convidámo-la a vir cá a casa, ouviu o trabalho todo, mas também estivamos à conversa sobre a vida em geral. Ela gostou muito do que ouviu e foi assim que surgiu o tema Armário. E foi tão certeiro que a convidámos a escrever mais uma letra, nesse já num universo musical menos óbvio, mas que também acabou por correr muito bem. Já a Aurora Robalinho foi uma verdadeira surpresa. Ela é uma jovem criadora muito próxima de nós, uma grande amiga que conhece o trabalho da banda muito bem e um dia apareceu-nos com uma letra, a primeira que alguma vez escreveu. E nós gostámos muito..Falaram do tema Armário, cuja letra, da Capicua, é bastante adequada a estes estranhos tempos que vivemos atualmente, quando se ouvem frases como "eu já nem saio à rua com medo da desgraça", "preciso sair" ou "sinto falta de ar"... MA: Essa letra já era atual quando foi feita, só não era tão literal, porque ficámos mesmo confinados ao nosso armário. Originalmente tinha mais a ver com o surgimento de algumas nuvens ameaçadoras para o planeta, que está quase a rebentar com os nossos abusos, com a eleição de alguns políticos irresponsáveis em países que fazem toda a diferença no equilíbrio da humanidade, a crise dos refugiados, o ressurgimento de algumas ideias políticas esquisitas na Europa e não só. Tudo isso trouxe uma sensação de ameaça iminente às pessoas, de medo de sair à rua, de ter receio de viver. E a capicua apanhou muito bem essa ideia na letra, embora nenhum de nós imaginasse que, passado um ano e pouco, a canção seria tão ilustrativa da realidade..Como é que escolhem as letras? HG: Esse puzzle é sempre montado de maneira diferente a cada novo disco. Neste caso, no final de 2018, já tínhamos as músicas todas prontas e no início do ano seguinte começámos a pensar quais seriam as indicadas para cada um dos diferentes letristas. Ainda houve algumas trocas de última hora, mas acabou por correr bem..Apesar de já trabalharem com alguns destes letristas há muito tempo, como é o caso do Sérgio Godinho ou do Arnaldo Antunes, a verdade é que têm sempre várias as pessoas a escrever. Como é que, enquanto banda, conseguem uniformizar tudo isso e tornar essas letras algo vosso? MA: Acima de tudo tem de haver uma enorme franqueza e generosidade nesse trabalho. Os letristas têm de estar à vontade para receber uma canção e dizerem-nos que não gostam ou não conseguem trabalhá-la..Já aconteceu alguma vez? MA: Claro que sim, até mesmo neste álbum. É por isso que normalmente mandamos sempre mais do que uma canção a cada letrista, para cada autor perceber onde está mais confortável. Há sempre alguns casos em que não funciona logo à primeira, porque é um trabalho de facto muito delicado, esse de se escrever para um universo musical e fonético já preestabelecido. Mas estamos a falar de gente que não só escreve muito bem e escreve canções muito bem, mas que também conhece muito bem o nosso trabalho, que nos são próximas também a nível pessoal. Isso tudo acaba por permitir que esse trânsito de ideias até se encontrarem as palavras certas para cada música aconteça de forma muito natural. Mas mesmo assim é sempre um milagre [risos]..HG: Neste disco aconteceu algo muito interessante, porque os letristas sentiram exatamente o mesmo que nós ao ouvirem as músicas pela primeira vez. Nós tínhamos uma espécie de briefing preparado, para lhes explicar o pretendido, mas optei por só falar com eles depois de ouvirem as demos e na maior parte dos casos eles perceberam imediatamente, como foi o caso do Samuel Úria, com o tema Sinais. E até aconteceu a coincidência de muitas letras se complementarem umas às outras sem nenhum deles saber sobre o que os outros estavam a escrever. É muito engraçado, mas às vezes até chega a ser assustador [risos]..Como é que viveram este tempo de confinamento? MA: Nem houve assim uma grande mudança em termos de rotina porque já estávamos fechados em casa, no estúdio, a trabalhar. A diferença é que estávamos com a banda toda e agora estamos só os dois. Não nos podemos queixar, porque vivemos num sítio muito simpático, temos quintal para podermos apanhar um bocadinho de ar sem termos de sair à rua, mas é muito estranho ver as imagens das ruas vazias e perceber o receio nos olhos das pessoas quando se vai às compras. Parece que virámos todos figurantes de um filme de ficção científica..HG: E lidar com isso tudo numa altura em que criativamente estávamos com a urgência de mostrar o disco ao vivo. Tivemos de descobrir outras soluções e outros meios de fazer as coisas, mas nada substitui o palco..E os Clã são uma banda que gosta de palco, certo? MA: Não só gostamos como precisamos do palco. Por muito que as trabalhemos em estúdio, as canções só se descobrem verdadeiramente em cima do palco. Esse embate com o público é o teste mais importante, é fundamental para compreendermos e dominarmos as canções..HG: Lidar com isso acaba por ser toda uma aprendizagem, porque também temos de deixar de lado algum egocentrismo. A dada altura a preocupação deixou de ser a música e passou a estar direcionada para as pessoas que habitualmente trabalham connosco na estrada, os técnicos e os roadies, que tinham o rendimento dependente dos concertos. De repente todas as nossas preocupações habituais de promoção, naturais quando acaba de se editar um disco, passaram para segundo plano..MA: Sim, porque a estrada também tem esse lado do trabalho de equipa e é terrível perceber que esses companheiros estão ainda mais suspensos que nós, porque não têm outra forma de trabalhar..Este disco marca também a estreia de dois novos elementos, o baterista Pedro Oliveira e o baixista Pedro Santos, que substituíram, respetivamente, Fernando Gonçalves e Pedro Rito, dois dos membros originais. No decorrer deste processo alguma vez esteve em cima da mesa o fim da banda? MA: Talvez, aí durante uma meia hora [risos]. A sério, foi mesmo assim que aconteceu. Tudo isto foi precipitado por uma decisão do Pedro, que se envolveu noutros projetos, não musicais, e deixou de ter tempo e disponibilidade para se entregar aos Clã como gostaria e até aí sempre fez. Na sequência disso, o Fernando decidiu que também iria fazer o mesmo e quando nos reunimos todos, a possibilidade de acabarmos foi colocada em cima da mesa. Afinal estávamos juntos há já tantos anos que se calhar não fazia sentido continuar só com alguns, mas foi o próprio Rito que nos convenceu a seguir em frente..HG: Ainda pensamos em continuar só como um quarteto, mas depois tivemos de contratar dois músicos para nos acompanhar ao vivo em dois concertos que já tínhamos marcados, no festival Douro Rock e na Festa do Avante!. E num verdadeiro golpe de sorte encontrámos dois músicos, que também são excelentes pessoas e isso é o mais importante, para nos acompanhar. Começámos a ensaiar e passado pouco tempo, logo depois do primeiro concerto, fizemos-lhe a proposta de integrarem a banda e já gravaram o disco connosco.