Foi há exatamente um ano, mais dia menos dia, que Rifkin"s Festival fez a abertura de San Sebastián, o Festival de Cinema cuja 69.ª edição está neste momento a decorrer no País Basco (ver pág. 26). Por ser ambientado nesse mesmo Festival de San Sebastián, dir-se-ia que o filme, no contexto, poderia funcionar quase como um postal de boas-vindas (se assinado por qualquer outro realizador), não fosse a sua uma visão esmorecida sobre o suposto glamour dos festivais de hoje em dia, e as figuras ocas ou pedantes que se corre o risco de lá encontrar. Woody Allen não faz propriamente um retrato agressivo nesta comédia "romântica" de cidade turística, antes destila a solidão do seu protagonista de uma forma, ao mesmo tempo, tocante e desinspirada..Tocante porque é impossível não ler no rosto tristonho de Wallace Shawn a própria tristeza do cineasta face à Hollywood que o cancelou - e, nesse sentido, Rifkin"s Festival, rodado inteiramente em Espanha, não é mais do que o filme de um realizador octogenário que quer cumprir o seu ritmo de produção e continuar a fazer aquilo que ama -, desinspirada porque efetivamente o humor parece adormecido nas dobras de um guião frágil. Shawn é Mort Rifkin, um professor aposentado dos estudos de cinema que interrompe a escrita de um ambicioso romance para acompanhar a sua mulher (Gina Gershon), uma assessora de imprensa, ao Festival de San Sebastián. Quer dizer, ele vai menos acompanhá-la do que confirmar as suas suspeitas acerca da natureza da relação entre ela e o jovem realizador francês (Louis Garrel) a quem está a fazer assessoria no festival..A inércia do filme começa na imagem deste casal americano que já não tem nada a uni-lo e não sabe: ela derrete-se com o charme petulante do francês, em frente ao marido, e ele assiste ao enfadonho espetáculo de mútuo deslumbre com uma passividade não menos enfadonha. A coisa alcança um certo grau de animação apenas quando Rifkin se entrega aos prazeres de um festival que só acontece dentro da sua cabeça, isto é, um conjunto de sequências oníricas, a preto e branco, que remetem de forma lúdica para clássicos do cinema, num diálogo gracioso com aspetos biográficos e com a anedota conjugal em curso. Mas será suficiente para colmatar a insipidez que se sente?.De Truffaut a Fellini, passando por Buñuel, Welles (há um trocadilho inteligente com o Rosebud de Citizen Kane) e pelo seu cineasta adorado, Bergman (com curiosíssimas abordagens a Persona e O Sétimo Selo), Woody Allen monta um pequeno dispositivo cinéfilo - que liga bem com a cena inicial do filme, no consultório de um psicoterapeuta - para render a homenagem possível aos autores que o trouxeram até aqui. Nesse gesto capaz de nos fazer recuar dentro da própria obra de Allen está a luminosidade ténue de Rifkin"s Festival, um deleite que surge a espaços para nos arrancar da letargia existencial de Wallace Shawn/Mort Rifkin, inclusive através de uma piscadela de olho ao A Rosa Púrpura do Cairo..Sem muito com que se entreter, Rifkin vagueia num ambiente em que todos são mais belos, apresentáveis e socialmente habilitados do que ele, um "judeu da classe média do Bronx". Refugia-se então em dilemas filosóficos de banco de jardim, neuroses e hipocondria típicas da persona de Woody Allen, e acaba por ir parar ao consultório de uma cardiologista (Elena Anaya, atriz de A Pele onde Eu Vivo, de Almodóvar) que também não deve muito à felicidade. O que é que se faz? Juntam-se as duas solidões e está garantido o passeio fotogénico captado por Vittorio Storaro, o fiel colaborador de Allen nos últimos filmes..A sensação que se tem é que Rifkin"s Festival partilha de uma certa atitude, entre o desencanto e o desejo de comunicar com o seu público, muito presente no livro de memórias de Woody Allen, A Propósito de Nada (2020). E isso acrescenta uma camada íntima a este filme que o faz merecer algum respeito. Um filme que elogia o cinema enquanto infunde o sabor amargo do estado da cultura cinematográfica, eventualmente de maneira demasiado simples..Na derradeira página de Apropos of Nothing lê-se: "O meu maior arrependimento? Apenas o facto de ter dado milhões para fazer filmes, assumir o controlo artístico total e nunca ter feito um grande filme." Não é verdade, e o referido A Rosa Púrpura do Cairo, para além de Annie Hall, Manhattan, Ana e as Suas Irmãs, Crimes e Escapadelas, Match Point, entre outros, são a prova da falta de sentido desta afirmação. Mas ela revela uma postura - não de modéstia - que atravessa todo o livro, mesmo nas passagens mais divertidas, e que também define Rifkin"s Festival: uma tendência para a menorização. Neste mais recente caso, uma tristeza acomodada num pequeno filme, feito com liberdade artística mas sem brilho. A mesma angústia seca que o leva a estas palavras: "Em vez de viver nos corações e nas mentes do público, prefiro viver no meu apartamento." Parece só uma frase gira para fechar, com humor conforme à personalidade de Allen, mas é o sintoma de uma pose de desistência, um aceno longínquo ao brio. No fundo, é isso: falta aqui brio. .dnot@dn.pt