Cicely Tyson, a atriz que deu corpo e alma às mulheres negras
Zombou da ideia que as pessoas têm da morte há menos de um mês. "Não tenho medo da morte. Não sei o que é. Como poderia ter medo de algo de que nada sei? As pessoas dizem que é isto e é aquilo. Mas não sabem. Elas não estiveram lá. Eu não estive lá. Eu também não tenho pressa em ir!", disse à revista do The New York Times. A entrevista antecipava o lançamento do livro de memórias Just as I Am (Tal como sou), que decorreu na terça-feira. Dois dias depois, Cicely Tyson morreu, com uns 96 anos plenos de realizações e de espanto para quem via a sua jovialidade.
"Cicely pensou no novo livro de memórias como uma árvore de Natal decorada com todos os ornamentos da sua vida pessoal e profissional. Hoje ela colocou o último ornamento, uma estrela, no topo da árvore", escreveu o seu manager, Larry Thompson.
Cicely Tyson não foi a primeira enquanto atriz negra a conhecer o sucesso, mas foi aquela que, não só pelo seu desempenho, fosse no teatro, na televisão, ou no cinema, mas também pela escolha e recusa de papéis, construiu uma carreira pioneira, consistente e plena de significado.
Em 2016, o então presidente Barack Obama concedeu-lhe a medalha da Liberdade. O reconhecimento no cinema pode ser aferido pela nomeação para o Óscar de melhor atriz pelo papel em Sounder - Esperança, de 1972, e pelo Óscar honorário atribuído em 2018. Na televisão, pelos três Emmys, dois pelo desempenho na Autobiografia de Miss Jane Pittman, de 1974, no qual protagoniza a história de 110 anos de uma mulher no sul dos Estados Unidos que nasce escrava e assiste ao movimento pelos direitos civis; e o outro Emmy, em 1994, pela minissérie Oldest Living Confederate Widow Tells All , além de mais uma dúzia de nomeações. E no teatro, quando aos 89 anos recebeu um Tony Award pelo desempenho em The Trip to Bountiful, tornando-se na pessoa mais velha a receber este prémio.
E não foi a última peça na Broadway: dois anos depois estaria a contracenar com James Earl Jones em The Gin Game.
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Foi no teatro que esta nova-iorquina do Harlem, filha de imigrantes das Caraíbas, iniciou a carreira artística, mas antes foi secretária. "Um dia pensei 'Deus não me pôs à face da Terra para bater à máquina o resto da vida'", e passado uma semana, contou ao The Washington Post, recebeu um convite para entrar num show de moda. A partir daí começou a fazer trabalhos como modelo e em 1956 estreou-se no teatro.
No início dos anos 60 fez-se notar na peça The Blacks e a partir dos anos 60 começa a fazer televisão, o meio que lhe trouxe mais notoriedade. Mas só com o papel em Sounder, aos 48 anos - soube-se há poucos anos a verdadeira idade de Cicely Tyson, tendo chegado a fazer de filha de Maya Angelou em Roots - Raízes, em 1977, quando era mais velha - é que a sua carreira ganhou um impulso.
Fez de Coretta Scott King, mulher de Martin Luther King Jr. em King, da abolicionista Harriet Ross Tubman em A Woman Called Moses, da educadora Marva Collins em The Marva Collins Story, papéis de personalidades edificantes. Recusou muitas ofertas. "Espero pelos papéis. Primeiro, que sejam escritos para uma mulher, depois que sejam escritos para uma mulher negra. E depois eu tenho a audácia de ser seletiva sobre o tipo de papel que desempenho. Na realidade são três golpes contra mim", disse numa entrevista em 1997.
Numa entrevista de 2020, ao Gold Derby, a atriz que pode ser vista em séries de TV recentes como How to Get Away With Murder ou Cherish the Day, explicou como escolhia um papel. "Porque são diferentes, cada um deles, e esse é o desafio para mim, fazer-vos ver essa pessoa como alguém que nunca conheceram antes. É isso que me entusiasma quando leio um guião. Quando leio um guião, uma de duas coisas me acontece. Ou a minha pele se arrepia ou o meu estômago se contorce. Quando o meu estômago se contorce, sei que não posso fazer isto, e posso passá-lo muito facilmente. Não me interessa o quanto me oferecem, não o posso fazer. Agora, quando a minha pele formiga e eu não posso ficar quieta, é meu."
Cicely Tyson foi casada com o trompetista e compositor Miles Davis (é a capa do disco Sorcerer), que descreve como "gentil como um cordeiro", apesar de uma relação conturbada, marcada por infidelidades, abusos de drogas e álcool, e uma agressão física do artista à atriz.
Desafiada na mais recente entrevista a dar um conselho do alto dos 96 anos, Cicely Tyson lembrou um ensinamento da mãe: "Sê fiel a ti próprio. Façam isso e não terão arrependimentos."
"Durante a sua extraordinária carreira, Cicely Tyson foi um dos raros atores premiados cujo trabalho no ecrã só foi superado pelo que conseguiu realizar fora dele. Ela tinha um coração sem igual - e durante 96 anos deixou uma marca no mundo que poucos alguma vez igualarão."
Barack Obama
Ex-presidente dos EUA
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"A sua carreira foi utilizada para iluminar a humanidade no povo negro. Os papéis que desempenhou refletiam os seus valores; ela nunca cedeu. A sua vida tão plenamente vivida é um testemunho de grandeza."
Oprah Winfrey
Apresentadora de TV
"Lenda. Obrigado por ter arrombado portas para raparigas como eu."
Tika Sumpter
Atriz
"A pessoa mais doce que conheci. Rainha, lenda e pioneira, a Sra. Cicely Tyson abriu a porta a muitas atrizes negras na Broadway, na televisão e no cinema."
Magic Johnson
Ex-basquetebolista