A situação da pandemia de covid-19 justificaria uma cerca sanitária na grande Lisboa? A questão foi lançada com um tweet, no último domingo, pelo presidente da câmara de Ovar, perguntando por que razão o Governo não impõe à capital a mesma medida que foi aplicada em março à cidade. "A 17/3 percebeu-se o cerco em Ovar. Era o único Município em contaminação comunitária. Depois todo o País passou a essa condição. Não fazia sentido fazer cercos. Entretanto tudo melhorou. Hoje Lisboa está a colocar em risco todo o País. Não esperem mais. Ou só há coragem para Ovar?", escreveu Salvador Malheiro, também vice-presidente do PSD, na rede social twitter..Fernando Medina, presidente da Câmara de Lisboa, rapidamente ripostou. "Salvador Malheiro estava com saudades de ir à televisão porque ele não faz ideia do que é Lisboa, que basta uma freguesia de Sintra para ser maior do que Ovar", disse na TVI o também presidente do Conselho Metropolitano de Lisboa.."Teria um impacto nefasto".Mas será necessário? Prévio a isso, seria possível? Filipe Froes, coordenador do gabinete de crise para a covid-19 da Ordem dos Médicos, tem uma resposta muito clara: "Não".."Não se justifica, não tem proporcionalidade, não tem cabimento. E teria um impacto nefasto no país", defende o pneumonologista, sublinhando que uma medida desta natureza "seria uma assunção de falência total no combate à pandemia"..Impor uma cerca sanitária na região de Lisboa, abrangendo cerca de três milhões de pessoas, teria um impacto "económico, social e político" com uma tal dimensão que "quase seria preferível voltar a confinar o país", prossegue Filipe Froes, que considera não só que estamos numa fase muito diferente da pandemia, em comparação com março, como a dimensão de Ovar e da grande Lisboa não permitem qualquer tipo de comparação..As diferenças são evidentes: de acordo com os dados oficiais só três dos 18 municípios da AML (Montijo, Sesimbra e Alcochete) têm menos população que Ovar. E há que assinalar que os dados estatísticos se reportam ainda aos Censos de 2011, os últimos a contar a população portuguesa. No total, a área metropolitana de Lisboa tem 2,8 milhões de habitantes, quase um terço do total do país, distribuídos por um total de 118 freguesias nos 18 concelhos, distribuídos por uma área de cerca de 3000 quilómetros quadrados. Ovar tem 147 quilómetros quadrados. .Este é igualmente um aspeto focado por Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, que destaca a magnitude que uma medida destas assumiria, não só face ao total de habitantes, mas também ao número elevadíssimo de pessoas, na região metropolitana da capital, que vive num concelho e trabalha noutro..O médico sustenta que, se a situação se agravar, uma medida como um cerco sanitário - o termo vulgarmente usado em saúde pública - deve ser ponderado, mas será sempre "muito difícil de implementar". Mas, no momento atual, "as vantagens não ultrapassam as desvantagens". E é preciso também considerar qual a situação no terreno e a resposta mais eficaz, ou seja, se a intervenção deve ser mais localizada ou se precisamos de medidas "mais generalizadas"..Na segunda-feira, após uma reunião com os presidentes dos cinco municípios mais afetados por novos contágios de covid-19, nas últimas semanas, o primeiro-ministro recusou a ideia de uma cerca sanitária na região da grande Lisboa, invocando o facto de os surtos estarem identificados e localizados. Foi, aliás, este contexto que justificou a delimitação de 19 freguesias, nos cinco concelhos, que vão manter o estado de calamidade. Para o conjunto da Área Metropolitana de Lisboa foram tomadas medidas como a proibição de ajuntamentos de mais de 10 pessoas, a obrigação da generalidade dos estabelecimentos comerciais fecharem às 20 horas ou a proibição do consumo de bebidas alcoólicas na via pública. "Não há dois pesos e duas medidas, há dois momentos diferentes e há uma circunstância completamente diversa", afirmou António Costa, defendendo que, com as medidas que entretanto já entraram em vigor, "conseguir-se-á obter o efeito útil que poderia ser alcançado com uma cerca sanitária, mas sem todos os inconvenientes da cerca sanitária"..Fonte do executivo, que diz não querer alimentar a polémica aberta por Salvador Malheiro, faz questão de sublinhar outra diferença: em março foi o próprio presidente da Câmara de Ovar a pedir que fosse imposta uma cerca sanitária à cidade, um pedido que não foi feito por nenhum autarca da região de Lisboa. Até agora, só o autarca da Azambuja avançou essa hipótese e em relação apenas a um complexo residencial..Uma "provocação numa lógica regionalista".A questão transformou-se entretanto num "desaguisado" entre Salvador Malheiro e Medina, com o primeiro a usar novamente as redes sociais para acusar o presidente da câmara de Lisboa de ter sido "extremamente deselegante"..Já na tarde de terça-feira, o autarca voltou à rede social para anunciar que há dois novos casos de covid-19 em Ovar, "sendo um deles com origem na Região de Lisboa". Nos comentários à publicação do autarca é comum a acusação de que há dois pesos e duas medidas, que Lisboa beneficia de um estatuto de privilégio ou que está a prejudicar o resto do país..A mesma ideia já presidiu, aliás, ao lançamento de uma petição pública, dirigida aos "portugueses não residentes em Lisboa", em defesa de uma cerca sanitária na capital. Sem grande sucesso: conta apenas 34 assinaturas..Para o politólogo Adelino Maltez a posição assumida por Salvador Malheiro não é mais que uma "provocação numa lógica regionalista", "uma posição tipo lobby do norte, como na TAP", mas vinda de um autarca de um município mais ao centro, no distrito de Aveiro..Um exemplo de "demagogia, ainda por cima vindo de um vice-presidente do PSD", que não deixa de ser "legítimo" dentro do "jogo político", mas falha o essencial: "O que interessa aqui é que isto é mau para a saúde pública, é um problema para o país. É péssimo para a economia, uma mancha num momento terrível para a recuperação do turismo. É mau para tudo"..Rio diz que Malheiro não defendeu cerca sanitária.Pelo caminho, Rui Rio saiu em defesa do seu vice-presidente, criticando as declarações do presidente da Câmara de Lisboa. Fernando "Medina esteve muito mal na resposta ao Presidente do Município de Ovar, Salvador Malheiro. Todos temos momentos menos felizes e hoje o Presidente da Câmara de Lisboa esteve particularmente infeliz", escreveu Rio no twitter..Ontem, após uma audiência em Belém com o Presidente da República, o líder do PSD voltou ao tema para dizer que Salvador Malheiro não pediu uma cerca sanitária a Lisboa, mas sim "medidas mais musculadas".."Não vi em lado nenhum o presidente da Câmara de Ovar a dizer que se devia aqui fazer um cerco sanitário, fechar Lisboa, e não entra ninguém, nem sai ninguém, tal como aconteceu em Ovar. Vi-o a dizer que são precisas medidas mais musculadas aqui na Área Metropolitana de Lisboa. Vi-o dizer isso. E nisso eu concordo", referiu o presidente do PSD.