No dia 15 de fevereiro, o gesto de desportivismo do jovem Dinis Paulo, de 10 anos, num jogo de benjamins de futsal entre o Sporting e o Benfica encantou Portugal. Com o encontro empatado (0-0), o árbitro assinalou um penálti contra os encarnados. O miúdo do Benfica colocou-se à frente da bola na altura de um remate e a bola bateu-lhe na cara. O lance deu margem para dúvidas e o árbitro marcou grande penalidade, considerando que o corte foi com o braço. Os jogadores leoninos aproximaram-se do árbitro e um deles, Dinis, fez o gesto a dizer que o corte foi com a cara. Perante essa garantia o juiz anulou a grande penalidade e mostrou ao jovem atleta leonino o cartão branco, que premeia o fair-play. O Sporting acabou por ganhar (1-0), mas o resultado foi o menos importante nesse jogo..O vídeo do lance foi partilhado pelo Sporting e tornou-se viral nas redes sociais, colocando o cartão branco na ordem do dia. Mas há centenas de outros casos que passam despercebidos e que o DN descobriu com a ajuda do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ). Só na época passada (2018-19) foram mostrados 552, num total de 2041, desde 2015, ano em que foi criado. A amostragem acontece em jogos da formação, sendo a Associação de Futebol de Lisboa a mais ativa. Jogadores que pedem desculpa a adversários, jogadores que ajudam o árbitro a reverter decisões erradas, treinadores que reduzem equipas para jogar de igual para igual com os adversários e fisioterapeutas que auxiliam adversários em dificuldades... há de tudo um pouco e em várias modalidades. Em 2016, o árbitro de futsal José Pinto e a fisioterapeuta, do Sport Clube Beira-Mar, Sara Janela salvaram mesmo a vida de uma atleta..No dia 6 de de abril do ano passado, o treinador Luís Desidério, do Clube Desportivo Jardim Amoreira, entrou no jogo do Campeonato Distrital de Juniores D, 2.ª fase de apuramento, com apenas quatro jogadores depois de ver que o adversário (Milharado) só tinha quatro atletas para jogar. Três dias depois, o Atlético Clube do Cacém apresentou-se em campo num jogo do Campeonato Distrital de Juniores D2 (futebol de sete) com apenas cinco jogadores, para jogar de igual para igual com o adversário. Esta é aliás uma das atitudes mais premiadas.O mesmo aconteceu a 18 de dezembro, na segunda jornada do Campeonato Distrital de Infantis da AF Beja. O árbitro João Lopes mostrou o cartão branco ao treinador da equipa de infantis do Sport Clube Mineiro Aljustrelense, João Miguel Pires, depois de ele sugerir alinhar apenas com seis jogadores para a igualar o número de crianças à disposição do técnico adversário..Em Castelo Branco, um exemplo idêntico num jogo de juvenis. O Vila Velha de Ródão só tinha oito futebolistas disponíveis e o Sp. Covilhã decidiu jogar em igualdade numérica. Durante o encontro da sexta jornada do Campeonato Distrital de Castelo Branco, o Vila Velha de Ródão ficou reduzido a sete, por lesão, e o treinador serrano optou por fazer sair um jogador para continuar a partida com o mesmo número de unidades nas duas formações. O Vila Velha de Ródão perdeu por 13-0 em casa, mas foi o gesto do treinador do Sp. Covilhã que ficou registado..O gesto repetiu-se num jogo de futebol feminino da Associação de Futebol de Aveiro, em que o treinador de uma das equipas, Diogo Simões, se apercebeu de que o adversário só tinha cinco jogadoras para jogar e retirou duas atletas da sua equipa..Os atos de fair-play e desportivismo são muitos e variados. Como o protagonizado pelo treinador estagiário do Vila Verde na época 2018-19. Bruno Pinho "mostrou uma atitude extremamente pedagógica após um conflito entre dois jogadores adversários, sendo proativo a auxiliar a serenar os ânimos intervindo diretamente e dialogando com os jogadores", segundo o árbitro do jogo..Também o jovem Romilson Gomes do Catujalense viu um cartão branco num jogo do Campeonato Distrital de Juniores B. "Na sequência de uma entrada dura e imprudente, um jogador da equipa adversário estava no chão a queixar-se de uma perna quando o jogador n.º 39 [Romilson Gomes] em vez de ir para o ataque joga a bola propositadamente para for a para o outro jogador ser assistido", justificou a Associação de Futebol de Lisboa para a atribuição do cartão..Já no dia 28 de de abril, durante um jogo do Campeonato Distrital de Juniores, o treinador do Patameiras, Nuno Rodrigues, viu um jogador da equipa adversária "entrar em grande stress por não conseguiu atar os atacadores das chuteiras" e ajudou-o de imediato. Atitude que lhe valeu a distinção..Atirar a bola para fora depois de um penálti injusto.Em janeiro, num jogo de sub-13 entre as formações da AD Xavelhas e da AD Machico relativo à terceira jornada da segunda fase da série B do referido escalão da Madeira, o árbitro assinalou uma grande penalidade a favorecer a equipa da AD Xavelhas. "O jogo estava 0-0 e técnico da equipa, que também é coordenador do clube, Dinarte Fernandes, decidiu em conjunto com o jogador Tiago Serrão não haver motivos para a marcação da grande penalidade. Por isso, quando foi chamado a converter o castigo máximo, o avançado de 12 anos, que poderia ter dado vantagem à sua equipa, num ato de grande desportivismo, atirou a bola propositadamente para fora.".O início do ano ficou ainda marcado pela iniciativa dos atletas do escalão de Juniores B do Lusitano Futebol Clube por no jogo com a AD Sátão exibirem cartolinas com mensagens sobre bullying, relação pais/atletas e violência no desporto. O mesmo clube viu um atleta da equipa sub-10 ser distinguido: "Um jogador adversário, ao tentar devolver a bola ao Lusitano, acabou por inadvertidamente marcar golo. Constrangidos com a situação mas empenhados em corrigir o erro, pois o golo foi acidental, os nossos atletas permitiram que a equipa do Pinguinzinho marcasse um golo sem qualquer oposição.".Já em fevereiro, Santiago Oliveira, dos Infantis do EFCA (Escolas Futebol Concelho de Alcanena), "abdicou de concretizar uma clara oportunidade de golo para que um jogador da equipa adversária fosse assistido"..As atitudes de desportivismo ultrapassam as barreiras do futebol. No dia 13 de abril, durante a liga de juniores de futsal, Tiago Fernandes do Clube São João de Deus viu um cartão branco. "Após o guarda-redes da equipa adversária levar mais do que os quatro segundos permitidos para o lançamento de baliza o árbitro marcou um livre indireto a favor do Clube São João de Deus. O jogador viu que o adversário ficou muito desolado e nervoso com a decisão e na marcação do livre indireto enviou a bola para fora, pela linha de baliza.".Num outro jogo, também da liga júnior de futsal, os pais e a claque do Furacão de Talentos ACR foram premiados "pelo comportamento exemplar" para com o adversário e o árbitro, "mostrando alguma paciência" quando o árbitro explicava as suas decisões. No final do jogo, o capitão de equipa pediu inclusive ao árbitro que tirasse uma foto com ele..E chegou ao corfebol. No ano passado, durante "o jogo importante e renhido de Corfebol entre o Grupo Desportivo dos Bons Dias (GDBD) e o Clube de Corfebol de Oeiras (CCO), uma atleta do CCO caiu de forma desamparada. Ao deparar-se com a queda, imediatamente um colega da equipa adversária (GDBD), Júlio Ruivo, estendeu-lhe a mão para a auxiliar a levantar. O atleta interrompeu o jogo e o ataque da sua equipa para ajudar a colega da equipa adversária"..E ao ténis de mesa. Na final júnior masculina do 48.º Torneio da Cidade de Lisboa, "um mesatenista viu ser-lhe atribuído um ponto pelo árbitro principal por, aparentemente, uma bola enviada pelo seu adversário não ter tocado na sua superfície de jogo. O atleta beneficiado contrariou a decisão do árbitro afirmando que, efetivamente, a bola tinha tocado no seu campo, pelo que o ponto deveria ser considerado para o seu adversário. O árbitro reverteu a sua decisão"..O cartão pode premiar qualquer um envolvido no fenómeno desportivo. Em 2018, num jogo de voleibol, um fisioterapeuta, apesar de estar a prestar assistência à sua equipa, no imediato saiu do seu lado do campo para ir prestar assistência a um atleta em dificuldade da equipa adversaria, acompanhando e tratando o atleta para que pudesse continuar a jogar..Criado em 2015, já salvou vidas.Um cartão que premeia e não pune. Assim é o cartão branco, que contempla condutas de exceção, comportamentos exemplares e gestos eticamente elogiáveis desde o campo à bancada. Tem apenas cinco anos de vida. Nasceu em 2015. Uma iniciativa do Plano Nacional de Ética Desportiva do Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ) para tentar travar uma crise de valores no desporto. Ou seja, da necessidade de criar uma cultura desportiva com mais ética, lealdade e respeito..A ideia foi apresentada às várias federações e associações espalhadas pelo país e conta já com cerca de 50 entidades envolvidas. O cartão branco foi mostrado mais de duas mil vezes em várias modalidades desportivas, como por exemplo andebol, basquetebol, badminton, corfebol, futebol, patinagem, râguebi, ténis e voleibol. A Federação Portuguesa de Futebol juntou-se à iniciativa do IPDJ e com ela arrastou várias associações de futebol, como Lisboa, Setúbal, Santarém, Leiria, Beja, Guarda, Évora, Braga, Portalegre, Aveiro e Viana do Castelo, Vila Real e Viseu, entre outras. "O objetivo é valorizar o lado positivo do desporto. Desta forma, o árbitro torna-se um educador pela positiva, indicando às crianças o que não está correto (através da amostragem de cartão vermelho e amarelo), mas reconhecendo e premiando a atitude certa e o gesto de fair-play", disse ao DN o coordenador do projeto, José Lima..De todos, há um que se destaca. Foi mostrado em 2016 ao árbitro de futsal José Pinto e à fisioterapeuta do Sport Clube Beira-Mar Sara Janela. Durante o encontro entre as equipas juniores de futsal do CRP Belazaima e o SC Beira-Mar, um atleta da equipa do Belazaima desequilibrou-se e caiu desamparado, batendo com a cara no chão e ficando sem reação. José Lima admitiu que "até para o IPDJ/PNED foi uma surpresa, pois não foi previsto que a exibição do cartão branco pudesse ser alargada às equipas de arbitragem", mas a Associação de Futebol de Aveiro "esteve bem e acrescentou valor ao projeto"..O árbitro deixou o apito de lado para vestir a pele de socorrista."Instintivamente, decidi atuar devido à formação e treino que tive como bombeiro, verifiquei que estava inconsciente; avaliei os sinais vitais e posicionei o atleta na posição lateral de segurança, com permeabilização da via aérea, Tinha as pupilas assimétricas, o que era sinal revelador da existência de um traumatismo cranioencefálico, o atleta tinha uma hemorragia ativa proveniente de um corte profundo no queixo ", contou mais tarde o juiz, que controlou a hemorragia e evitou a movimentação da cabeça do atleta até à chegada dos meios de socorro. Durante o incidente, contou com a "prestimosa" ajuda da fisioterapeuta do Beira-Mar..José Lima explicou que já vão aparecendo alguns casos no futebol sénior, pois há diversas associações de futebol, como Aveiro e Santarém, que já adotaram o cartão nas competições de futebol e de futsal masculino e feminino. "Num jogo entre o Alvarenga e o Maceirense, a 10 de fevereiro de 2019, o autocarro que transportava a equipa do Maceirense teve uma avaria no centro de Arouca, ficando imobilizado, pelo que teve de ser rebocado. O Maceirense avisou o GDS Cruz de Alvarenga SAD de que iria haver atraso, dada a situação. De imediato o GDS Cruz de Alvarenga SAD disponibilizou o seu autocarro para transportar os elementos do Maceirense e assim cumprir os horários de almoço e de jogo, que viria a perder. No final do jogo, e apesar da derrota, o GDS Cruz de Alvarenga SAD assegurou o transporte da equipa do Maceirense a casa", contou ao DN o coordenador do cartão branco..João Capela: propor o cartão branco à UEFA e à FIFA.João Capela mostrou vários cartões brancos e viu ele próprio um. Designado para apitar a final da Taça da Associação de Futebol de Lisboa (AFL) entre o Pero Pinheiro e o Coutada, naquele que seria o seu último jogo como árbitro de futebol, Capela mostrou quatro cartões por gestos de fair-play, dois a jogadores e dois às claques."Um ao jogador que mandou a bola para fora para que o adversário que estava lesionado fosse assistido e outro a um jogador que repôs a bola em jogo, dando-a ao guarda-redes da outra equipa. E depois às claques das duas equipas, que em vez de me insultar, aplaudiram as minhas decisões no meu último jogo", contou o árbitro ao DN, que acabou também ele por ver um cartão branco "num ato símbolo de agradecimento pela carreira" por parte da AFL..O juiz já me tinha sido distinguido como Personalidade Cartão Branco 2019, através do Plano Nacional de Ética no Desporto e defende a iniciativa: "O cartão branco é uma forma que o árbitro tem de comunicar com os intervenientes no jogo, à semelhança do que faz com os amarelos e os vermelhos, só que neste caso é exibido no sentido positivo, para premiar atitudes positivas, não tem que ver com questões técnicas mas comportamentais.".Para o ex-árbitro, no que ao futebol sénior diz respeito, já passou o prazo da sensibilização e está na hora de passar à ação. "As coisas no futebol profissional só vão melhorar quando os clubes deixarem de se autorregular em termos disciplinares. Tem de ser uma entidade externa a determinar os castigos. Quando houver essa vontade, as coisas vão melhorar. Já chega de campanhas de sensibilização, tem de se começar a agir", defendeu Capela, que seguiu a carreira de árbitro no basquetebol e já mostrou alguns cartões brancos na modalidade..E porque não há cartões brancos no futebol sénior? "Nós estamos a tentar, mas é uma questão regulamentar que tem de ser resolvida. Estamos a preparar uma coisa com o CNED para sermos pioneiros nisto e fazer uma proposta à UEFA e à FIFA para testarmos a introdução do cartão branco numa competição. Já temos evidências suficientes de que o cartão branco faz sentido", explicou o ex-árbitro..E tanto faz sentido que, segundo um estudo da Associação de Futebol de Lisboa,"se tornou evidente que em alguns escalões de formação a exibição do cartão branco tem uma influência positiva, pois reduz as ocorrências disciplinares no jogo". Ou seja, mais cartões brancos e menos amarelos e vermelhos.