O que podemos esperar deste concerto, que já está esgotado, e que ao público na sala será acrescentado aquele que irá assistir à transmissão digital? É um concerto que, para além dos meus quatro músicos, incluímos um pedal steel, que aparentemente não faz parte do fado, mas que vem acrescentar um pouco de ruído ambiental, como pano de fundo. Podemos imaginar o fado como uma pintura com várias figuras. A voz é uma dessas figuras, tal como a guitarra portuguesa e mesmo a viola. E, por vezes, o fado é áspero e o pano de fundo é-lhe dado pelo ambiente das casas de fado, no tilintar dos copos, por exemplo. Por isso, escolhemos o pedal steel para ter essa função ambiental. Além disso, todo o cenário é inspirado na luz de Lisboa à noite, na dicotomia da luz e da sombra e do que é revelado. E traz a personagem Maria para o palco. É uma personagem mulher mas que também pode ser homem..Mas é uma interpretação dessa Maria que faz? Não, sou eu. Até porque o meu nome é Maria do Carmo. Mas acabo por revelar mais de mim. Não que estivesse escondida, mas trago um pouco mais. E isso revela que me estou a cantar a mim, sempre. Na verdade, em 2019 fiz alguns concertos a que algumas pessoas já tiveram oportunidade de assistir, mas, e sei que parece cliché, todos mudámos muito nos últimos tempos. Para além da pandemia fui mãe pela primeira vez, e isso influencia. Canto aquilo que sou..Como foi o processo criativo do álbum Maria? Como sabe, o disco foi lançado no final de 2018, ou seja o seu tempo de vida em concertos foi apenas durante 2019, depois foi o que todos sabemos com a pandemia. Ter feito, antes, o disco do Tom Jobim no Brasil fez-me distanciar do ambiente do fado. E com isso fiz um exercício de tentar perceber qual é o meu contributo no fado, o que o fado representa para mim e o que aprendi com ele. Isso influenciou a escolha das canções para este álbum. Fui em busca das minhas memórias, da minha infância, das reuniões em casa dos meus pais no Algarve, onde desde criança assistia aos fados cantados ao vivo....... o fado soa sempre diferente ao vivo ou numa casa de fados, verdade? Sim, porque não passa só pela música. A música pode estar bem tocada no estúdio, mas há uma desinfeção extrema quando se está em estúdio e é preciso saber que essa pequena fronteira faz muita diferença na escuta e na experiência sensorial. Gostava de ter gravado um disco ao vivo numa casa de fados, mas ao mesmo tempo o que queria era dar um pensamento sobre fado e não retratar aquilo que o fado já é. Refleti naquilo em que o fado se tem transformado e do qual eu também faço parte, e que tem passado muito por adicionar elementos e novas respostas para a mesma problemática. Quis fazer um exercício de subtração, de tal maneira, ao exagero, que fui até à voz. E é por isso que o disco abre só com voz. Para mim, qualquer instrumento ou voz sentida, falando a linguagem e abordando um tema poético do universo do fado, é fado. Uma voz isolada a cantar é fado!.E sobre a questão da mudança, de estarmos todos diferentes, como tem sido passar pela pandemia? Apesar de parecer que agora está alguma coisa a acontecer, não está a acontecer nada, para quase ninguém, sobretudo para as pessoas que vivem das artes performativas. Afetou muito as pessoas que faziam acontecer os concertos e cujo sustento vinha da organização de cada concerto... Dou o exemplo da empresa do meu engenheiro de luz, que passou a ser um armazém de recolha e distribuição de alimentos para os amigos e outros técnicos que se conhecem..Assustou-a? Não só do ponto de vista profissional mas também pessoal, uma vez que tinha sido mãe há pouco tempo. Não me senti muito amedrontada. Entretanto apanhei covid, o meu filho também, aliás aqui em casa todos tivemos. Quando soube, fiquei um pouco apreensiva, tivemos sintomas mas sem grandes preocupações e isso acabou por desmistificar um pouco a doença. É difícil pedir às pessoas para não se assustarem, mas acho que a covid é mais grave quanto maior for a nossa preocupação irrefletida nos medos que não podemos resolver. Temos de manter a calma..É essa calma que se quer para os concertos voltarem a acontecer com mais frequência? Claro, porque essa especulação exagerada do medo... é um pouco como a mesma lógica das bancarrotas em que todos começam a tirar o dinheiro dos bancos. É algo irrefletido..Mas hoje já se consegue usufruir de um espetáculo em segurança? Sim, as pessoas têm de ser muito responsáveis. Há uma garantia das regras dentro das salas de espetáculo, mas fora delas não controlamos... O meu conselho é que as pessoas depois dos espetáculos têm de se ir embora e não podem ficar à conversa... quase que estou a fazer de DGS [risos]..E depois deste concerto no CCB, o que vai acontecer? Tenho alguns concertos marcados, felizmente. Em Barcelona e outros fora de Portugal mas também por cá. Mas nem consigo decorar porque todos os dias recebo notificações de concertos que foram cancelados e que mudaram de data e que foram empurrados para a frente. O que é uma preocupação. Só temos 365 dias no ano e por isso todos os concertos que não foram feitos num ano estão a juntar-se no ano seguinte..Sabe quem a segue, quem é o seu público? Mais ou menos. Tenho um público bastante variado. Sei que tenho um público mais jovem e, claro, também tenho uma grande faixa de público que gosta de fado há muitos anos..Essa aptidão do público mais novo para ouvir fado é pelo surgimento de fadistas mais novos, como a Carminho e outros nomes? Não sei se todos os fadistas da nova geração têm o mesmo tipo de público. Mas sim, houve uma grande evolução do descomplexar o género musical. Quando era nova não podia dizer que cantava fado, era logo posta de lado, não era cool, não fazia sentido que alguém jovem cantasse essa música de "velhos". E houve uma fase em que tive de assumir que era amante de fado, independentemente do que dissessem, e esse foi um grande momento de viragem para mim..A música difundida por streaming aproximou o fado de um público mais jovem? Sim, mas ao mesmo tempo é o género musical que mais vende no suporte físico. Eu gosto de ter o objeto, mas não me importo que as pessoas me oiçam noutros formatos. Por outro lado, luto para que o não-objeto proporcione o mesmo tipo de serviço. Há muita informação sobre o disco que se perde no streaming..E no dia-a-dia ouve fado? Oiço muito fado. Mas também jazz, música brasileira e clássica. E isso influencia-me bastante. Sobretudo porque cultura gera cultura. São os outros artistas que alimentam os artistas. Pesquiso muitas coisas que estão perdidas da memória do público. Como aconteceu com o tema Pop Fado [do álbum Maria], uma música de 1960 do António Calvário. O fado tem muito a ver com a cultura do jazz, com muitas interpretações e abordagens diferentes do mesmo tema..filipe.gil@dn.pt