Carlos Robalo Cordeiro. "Neste momento só há duas coisas a fazer: isolamento e testar em maior volume"
Portugal já está na fase de mitigação. Considera que estamos a fazer bem e o correto, tendo em conta todas as medidas tomadas?
Está a fazer-se aquilo que deve ser feito, mas eventualmente poderia ter sido feito com mais antecedência. A fase de mitigação já existe há algum tempo e talvez tenha havido alguma hesitação na passagem da fase de contenção alargada para a fase de mitigação. De certa forma, foi a pressão da sociedade civil que o exigiu. Foram acontecendo diversos tipos de ações, como o encerramento de instituições. Aqui em Coimbra há um mês que foi suspenso o ensino prático da Faculdade de Medicina, para promover o afastamento dos alunos dos doentes. Portanto, penso que poderíamos ter adiantado algumas medidas, fazia todo o sentido, e quanto mais fôssemos adiantando, mais íamos prevenindo a exponenciação do número de casos - como se está agora a verificar.
O facto de não terem sido tomadas atempadamente vai ter consequências mais graves?
Todas as medidas que se tomam neste tipo de situação epidemiológica não têm um efeito imediato. Têm um efeito duas a três semanas depois. Por isso o Conselho das Escolas Médicas e o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos foram criando pressão junto do Ministério da Saúde e da Direção-Geral da Saúde para se tomarem medidas rápidas. Estávamos a perceber o que estava a acontecer noutros países e o que aí vinha, a potencial dificuldade em conter a propagação do vírus em Portugal. Estávamos a perceber que quanto mais depressa se tomassem medidas que evitassem grandes aglomerados populacionais e se encerrassem locais que são por excelência de propagação, como universidades e escolas, mais cedo nos preparávamos para a situação. Mas se me pergunta se quanto mais cedo estas medidas tivessem acontecido maior seria a contenção e menor o estrago e o volume de doença, aí digo, com certeza que sim. Claro.
Mesmo assim conseguiremos evitar a realidade que se vive em Itália ou em Espanha?
Essa é uma pergunta que só o tempo vai responder. Que Portugal tomou medidas mais atempadamente do que estes países, há que reconhecê-lo. Portanto, previsivelmente, esse efeito irá acontecer e potencialmente não teremos a evolução que está a acontecer nesses países. Mas se eventualmente existirem outras condições, como o não cumprimento do isolamento - o que não me parece, acho que tem havido um nível de civismo muito significativo, salvo algumas exceções - ou do não encerramento das atividades não essenciais, isso sim, poderá levar Portugal a um quadro de maior gravidade e de maior expansão da doença. Neste momento ninguém poderá responder com exatidão.
Como se explica a situação de Itália?
Em Itália, e isso já é sabido, houve algum descontrolo inicial. Mas lembre-se que Milão tinha um voo direto para Wuhan. Não havia sequer noção, a nível global, de que se estava perante uma situação epidémica e provavelmente já o vírus estava em Itália e em circulação. E portanto logo aqui houve muito tempo que se perdeu, mas por se desconhecer com exatidão que se estava perante uma situação destas. Depois perdeu-se tempo por haver uma hesitação em tomar algumas medidas com carácter mais imediato, como o isolamento. Mas penso que no caso de Itália haverá seguramente outras condições, sejam elas de natureza comportamental, de hábitos, de natureza genética, que tenham facilitado ou que expliquem a razão pela qual a letalidade é mais do dobro da média mundial. Mas isso terá de ser explicado depois, não agora em plena epidemia.
Relativamente a Portugal, tem-se falado em cenários que apontam para 60 mil infetados, milhares de mortes. Acha plausível?
É possível. São hipóteses. Mas, a meu ver, só há duas coisas possíveis de se fazer neste momento: isolamento e testagem em maior volume - embora haja outra muito importante e que está relacionada com o meio em que o vírus circula mais, que é a existência de uma capacidade de proteção adequada dos profissionais de saúde. Mas o isolamento, sobretudo dos elementos de risco, pessoas idosas, com fragilidades, doenças crónicas ou neoplásica, etc., é fundamental.
E quanto aos testes...
É fundamental que haja capacidade para testar o maior número de pessoas, sobretudo grupos de risco, como são os profissionais de saúde, as pessoas que têm profissões que obrigatoriamente estão em contacto com a população, bombeiros, farmacêuticos, técnicos de lares, pessoas que fazem distribuição de alimentos, etc. Deveria ser obrigatório uma capacidade de testagem muito mais alargada do que a que temos agora, para se ter a ideia de quantos infetados temos, de facto. Até para os isolar e termos maior mitigação da disseminação.
Por exemplo, fazer testes a todos os profissionais de saúde?
Há profissionais de saúde que podem estar positivos sem o saber. Podem estar assintomáticos ou ter muito pouca sintomatologia e continuarem a trabalhar. Ora, se fossem testados, seriam obviamente afastados do risco de propagação a terceiros e a pessoas fragilizadas, como os doentes. Só assim conseguiríamos quebrar a exponenciação, que vai ainda continuar, do número de casos.
Ainda não estamos na fase crítica...
Não estamos. Está a avançar, como é óbvio, de dia para dia. Há dias em que avança 20%, há outros em que avança 30%, o que também pode ter que ver, embora esse confronto não tenha sido feito, com o número de testes que se fazem, porque é diferente. Se tivermos um aumento de 20%, ficamos satisfeitos porque não foi assim tão grande. Mas se nesse dia tivermos feito menos testes do que fizemos num dia em que obtivemos um aumento de 30%, essa relação pode ser a mesma. Portanto, quanto mais testarmos melhor iremos conhecer a realidade.
A testagem eficaz é uma das soluções?
Não tenha dúvida. Essa é uma das soluções e deveria ser feito. Essas contas estão feitas por pessoas que se dedicam aos números e à epidemiologia e que dizem que deveriam ser feitos, no imediato, três mil testes por cada milhão de habitantes. Isto no imediato e para se ter uma noção melhor do que se está a passar, e para se evitar a propagação e o aumento da doença. Se conseguirmos evitar o aumento da doença evitamos hospitalizações e a maior gravidade da doença.
Mas não tem sido essa a estratégia de Portugal. É porque não há testes?
Há uma corrida mundial aos testes, sem dúvida, mas apesar de tudo há muitas instituições portuguesas, além das públicas, que estão já a trabalhar no sentido de criar condições para que haja um alargamento da cobertura de testes a nível nacional. Por exemplo, as universidades e muitas outras instituições em Coimbra, Lisboa, Porto, Algarve. Em Coimbra, vamos avançar com uma unidade de grande dimensão que está a ser desenvolvida pela universidade em colaboração com a Administração Regional de Saúde do Centro, nas antigas instalações da Faculdade de Medicina, para se fazerem pelo menos 30 mil testes.
Vai avançar já?
Na segunda-feira, dia 30. Estão criadas dez equipas laboratoriais, com origem na Faculdade de Medicina e na Faculdade de Farmácia, em centros de investigação, como é o caso do Centro de Neurociências, para que, pelo menos 16 horas por dia, se possa fazer o mínimo de 500 testes diariamente. O que vai ser muito bom. Sobretudo porque vai permitir-nos traçar um perfil mais correto do que se está a passar na população, nomeadamente na de maior risco.
Estes projetos deveriam ser alargados?
Claro, o que se pretende fazer neste centro é o mapeamento de todas as estruturas de saúde - CHUC, IPO, unidades de saúde familiar, etc. - e dos profissionais de saúde. Isto vai dar-nos a noção do panorama global de um grupo. E deveria ser feito noutras profissões e por todo o país. É muito importante que o façamos. Já sabemos que há duas medidas que podem ajudar: isolar as pessoas e testá-las.
Falou há pouco na pressão do Conselho de Escolas e da Ordem. Foi a sociedade civil que levou o Estado a agir?
Temos de ser honestos. Houve uma certa pressão da sociedade civil para que o Estado e as autoridades tomassem decisões. Portanto, quem começou a dar o exemplo foi a sociedade civil, as universidades, as ligas de futebol e muitas outras entidades que começaram a tomar medidas. O Estado veio atrás, com medidas corretas, que são necessárias implementar com eficácia. Sei que não é fácil para quem está a governar um país, que não é propriamente o mais rico do mundo e que saiu há pouco de uma crise, tomar medidas que parem significativamente a economia. Mas temos de pôr a saúde à frente da economia.
Isso foi o que levou outros países a retrair-se também?
Veja o que fez a China. É um império, tem outras condições e outro estofo para poder avançar com medidas assim, mas colocou a saúde à frente da economia e das questões de natureza social. Depois pôs a ciência e a tecnologia a trabalhar ativamente, mas o isolamento e o parar um pouco a economia são as medidas corajosas que têm de ser tomadas.
Está a dizer que o estado de emergência devia ser mais restrito?
A meu ver foram dadas exceções um pouco alargadas de mais. Passear os animais domésticos, fazer passeios higiénicos, OK, mas é preciso fazer ver às pessoas que, e como alguém dizia com alguma graça, são proibidos eventos com mais do que uma pessoa. É isso que temos de ter em atenção. O risco é enorme. Este vírus é de elevada contagiosidade, uma pessoa pode infetar, em média, duas a três pessoas. E em cinco dias podemos ter umas centenas de pessoas infetadas apenas por um contaminante, que até pode nem saber que está infetado.
O pior ainda está para vir?
Estamos numa fase de aceleração, de aumento exponencial da doença, mas julgo que apesar de tudo as medidas que foram tomadas vão mitigar um pouco esta exponenciação, temos de ter essa esperança. E portanto o pico pode não crescer tanto como poderia acontecer se não tivessem sido tomadas as medidas. Mas estamos longe de uma fase final. Disso não tenho dúvida.
Concorda que o pico será a meio de abril ou no início de maio, como se tem dito?
Eu creio que ninguém, do ponto de vista científico, poderá responder com exatidão a essa pergunta. É assim que se espera, olhando para o que se tem passado noutros países. Em termos temporais, espera-se que no máximo a doença possa estar mais um mês a crescer, para depois passarmos a uma situação de recuperação.
Esta fase ainda não acabou mas já se começa a falar de um segundo surto. É altura para se começar a falar nisto?
Não. Até porque, e com toda a sinceridade, a minha grande esperança é de que, quando chegar um segundo surto, se chegar, já haverá um fármaco para tratar o vírus ou uma vacina para o prevenir. O importante é que esta vaga seja empurrada para um nível menor e que se consiga criar condições para que o nosso sistema de saúde tenha capacidade de resposta. Isso é o mais importante.
Depois desta pandemia, tudo pode mudar na saúde pública, na organização de serviços?
A crise que estamos a viver é uma lição a vários níveis. É uma oportunidade de revermos a nossa abordagem a este tipo de situação, desde logo em termos de saúde pública. Mas há mais situações nas nossas vidas que claramente serão moldadas. Por exemplo, hoje estamos a fazer um recurso ao digital e às novas tecnologias no ensino universitário, que não voltará a ser como antes. Não tenho dúvida de que esta situação vai constituir um case study e que a partir de agora será um valor acrescentado para o nosso processo de aprendizagem.
E em relação à medicina e à ciência?
Acho que é uma oportunidade única para a abertura à criação de determinado tipo de regras, atitudes e hábitos, que vão ficar, espero, para sempre no nosso património. Até mesmo o espírito de solidariedade, a promoção das relações familiares, de amizade, etc. Acho que nada será como antes. É uma oportunidade para se transformar esta energia em algo para deixar às gerações futuras.
O facto de termos um SNS - independentemente de todas as suas fragilidades -, o que não acontece noutros países, pode ajudar na resposta a este vírus?
Se me fizer esta pergunta no final de abril a resposta pode ser diferente. Se tivermos o mesmo tipo de evolução do que Itália ou Espanha, mostraríamos a mesma fragilidade. Não há SNS que esteja preparado para um volume tão grande e tão grave de doença. Nenhum. E a Itália, na área dos cuidados respiratórios, que é uma área que conheço bem, tem uma enorme capacidade e qualidade. Só que ninguém está preparado para um volume tão grande em cuidados intensivos. Disto não tenho dúvida.