Brasileiros em Portugal e o vírus que lhes trouxe o desemprego

Grande parte dos brasileiros que imigraram para Portugal trabalha em serviços correntes, lojas, cafés e cabeleireiros. Sem gente na rua, não têm negócio. O desemprego e a crise receios tão ou mais fortes do que o próprio coronavírus para eles.
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Após a chegada da pandemia do coronavírus, a orientação para os entregadores da Uber Eats é de que não subam até o apartamento e deixem a refeição à porta do prédio. É o que faz Glenilson Maciel, 32 anos, dois deles a trabalhar com a plataforma de entregas. Só não esperava a "receção" recente de um cliente na zona da Praça de Espanha, em Lisboa. Não quis descer até a portaria e, irritado com a negativa de Glenilson em subir, cuspiu da janela na sua direção e, depois, gritou: "Volta para a tua terra!".

A terra de Glenilson é o Brasil. Lá estão a mulher e a filha, que dependem do dinheiro do entregador para pagar as despesas. O que aconteceu na Praça de Espanha foi um entre tantos constrangimentos que está a passar desde que entrou em vigor em Portugal o Estado de Alerta, seguido pelo Estado de Emergência. "Não fosse pela minha família, tinha parado com as entregas durante estes tempos", conta.

"Estes tempos" não têm sido fáceis para os brasileiros como Glenilson, trabalhadores acostumados a raramente dizerem "não" a uma proposta de trabalho. A pandemia, porém, obrigou os profissionais que pertencem ao maior contingente de imigrantes em Portugal (cerca de 150 mil) a recuarem e até recusarem uma oferta, mesmo que isso represente um desfalque no orçamento e seja motivo de preocupação com o futuro.

Uma situação mais comum entre os trabalhadores com vínculos laborais precários, mas que não escapa também aos que são contratados por conta de outrem e até os que gerem o próprio negócio.

Tempos como estes fizeram M. recusar ver o seu nome publicado no jornal. Contratada de uma empresa de telecomunicações num centro comercial em Lisboa, já sentiu os efeitos da redução de clientes com a quarentena obrigatória. A jornada semanal agora resume-se a dois dias de trabalho a cada três de folga. "Medo talvez seja uma palavra forte, o mais correto seria apreensão, tanto pelo futuro profissional como pelo risco de infeção", revela.

O Estado de Emergência restringiu as atividades nos centros comerciais aos bens essenciais, entre os quais estão os serviços de comunicação. Autorizados a lidar com o público, os funcionários na loja onde M. trabalha não usam máscara, estão munidos apenas com álcool em gel. São proibidos de tocarem no telemóvel dos clientes e, por mais estranho que seja a uma atividade comercial, devem evitar ao máximo o manuseamento de dinheiro.

Outro cuidado a ter é quanto ao número de pessoas no estabelecimento - não mais do que cinco clientes por vez - e uma atenção especial à faixa etária mais sensível à Covid-19. "A orientação é a de atendermos quem tem mais de 65 anos nas duas primeiras horas do expediente. A partir daí, estão proibidos de entrar na loja", conta. Entretanto, independentemente da faixa etária, a verdade é que a quantidade de clientes está a cair e M. conta que, às vezes, passa horas numa loja "deserta".

Nas ruas vazias não há trabalho

Desertas também estão as ruas de Lisboa. "Mais do que medo, sinto uma certa tristeza", atesta Glenilson. Apesar do esforço em continuar a conduzir a mota por avenidas fantasmas, a recompensa no final do mês deve ser menor do que o habitual. "Os pedidos caíram para menos da metade", contabiliza. Outros brasileiros vivem a mesma situação. "Acho que 80% dos entregadores na empresa são do Brasil", estima. Todos com a expectativa de redução no ordenado.

No caso de M., o salário está garantido de forma integral, apesar de surgirem os primeiros despedimentos onde trabalha. "Nenhum deles, até agora, entre o grupo de seis ou sete brasileiros que estão por lá", ressalta.

A situação é mais difícil para quem é patrão de si mesmo. Sueli de Souza, 54 anos, conduz há três anos para plataformas como o Uber, Bolt e Cabify e, desde o início da pandemia, parou o carro na garagem. Nos primeiros 15 dias de confinamento, estima que tenha deixado de faturar uns 1200 euros. "Entrei em quarentena até perceber como a situação vai desenvolver-se em Portugal", explica.

O temor de Sueli agravou-se ainda mais quando recentemente foi diagnosticada com diabetes, um dos fatores de risco em relação a Covid-19. A condutora está apreensiva pois até agora não percebeu que medidas do governo contemplam o seu estatuto de empresária unipessoal. Enquanto espera por uma boa notícia da sua contabilista, já recebeu uma outra, má. "Esta semana, em plena pandemia, todas as plataformas aumentaram o seguro obrigatório trimestral em pelo menos 30%", queixa-se.

E no salão, também não

Em situação parecida está Maricela Intriago, 28 anos, dona de um salão de manicure no Largo da Misericórdia, em Guimarães. As portas do Espaço Unharte não abrem desde a última sexta-feira 13. Maricela costumava atender entre cinco e sete clientes por dia e a decisão de não expor a própria saúde, a do marido e de uma criança pode custar-lhe um salário mínimo a cada 15 dias.

"Mesmo após o espaço estar fechado, ainda recebi telefonemas de umas cinco clientes. Sabe como é, há pessoas que não gostam de ficar feias. Mas não adianta nada me proteger se os outros não tiverem o mesmo cuidado", afirma. Maricela também espera pela rede de suporte prometida pelo governo e, assim como Sueli, aguarda por ouvir boas novas do seu contabilista.

O músico Diego Xocó, 33 anos, não espera ouvir nada de nenhum contabilista, até porque, como um "bom artista", não tem um. Morador em Alfama, em Lisboa, costumava tocar nos arredores do Museu do Fado, mas subitamente viu os turistas desaparecerem. A quarentena, então, tornou-se inevitável. "Mesmo que quisesse continuar a tocar, não teria quem me ouvisse", explica.

A música representa metade dos ganhos de Diego, mas isto parece não o perturbar: diz que vai aproveitar o período de contenção (inclusive de despesas) para compor novas músicas e arriscar-se às transmissões via streaming, bastante populares em tempos de convivência digital.

O músico ainda não se arriscou, entretanto, a cantar na varanda - outra tendência do momento - até porque mora nas águas furtadas de um prédio de quatro andares na Travessa do Zagalo. "Não o fiz porque a minha varanda é uma chaminé", explica, sem desafinar na alegria.

"Mas tem uma janelinha pequena, com vista para o Panteão. Quem sabe, um dia posso cantar algo para a Amália", promete, usando uma das principais armas dos brasileiros, especialmente em situações adversas: o bom-humor. Que ao lado da prevenção e da esperança podem ser um bom remédio "nestes tempos" de pandemia.

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