Reinventar o brutalismo em cinema. Fazê-lo através de um épico que celebra uma tradição de ritual folclórico da Escandinávia mítica. Robert Eggers mete mãos à obra com um sentido religioso numa obra que mostra tripas a sair das barrigas das vítimas, cabeças degoladas, narizes arrancados à dentada, crianças a expelir gazes como modo de virilidade e toda uma inimaginável panóplia de jorrares de sangue. Por tudo isto, é um "divertimento" fora deste tempo, uma reflexão sobre a guerra e a violência humana sem vergonha da sua barbaridade e da sua transgressão politicamente incorreta. Ou como se este ato gráfico de encenar a animalidade humana fosse um atalho para a sustentabilidade de uma parábola existencialista e filosófica sobre a futilidade da vingança e da força bruta. The Northman, além do mais, parece contaminado com aquilo que partilha: a fúria e a raiva cega da sua personagem e aí leva espetacularmente tudo à sua frente. E é essa disposição implacável e negríssima que projeta uma sensação de não sabermos o que contar, mesmo quando se está no meio de um conto de moral ancestral..Algures entre as linhas mestras da história de Conan, o Bárbaro e a de O Rei Leão, sem esquecer Thor, esta história de reis e príncipes na Islândia mística do ano de 895 capitaliza a estética dos guerreiros vikings, aqui filmados com um esplendor de bonitos, porcos e maus, mas sobretudo maus e sádicos. Aliás, Sjon (o argumentista de Lamb - Cordeiro) e Eggers inspiram-se na lenda de Amleth, a mesma da qual Shakespeare criou o seu Hamlet, ou seja, o fraticídio de um rei às mãos do seu irmão bastardo. Um ato presenciado pelo filho adolescente do rei, Amleth, que depois de escapar da fúria criminosa do tio consegue fugir numa embarcação jurando vingança e libertação da mãe, a rainha que entretanto é conquistada pelo novo rei assassino..Os anos entretanto passam e descobrimos o menino já com corpo de herói musculado, um viking obcecado com a vingança e craque na arte de matar tudo e todos com a sua afiada espada. Quando descobre o paradeiro do seu tio finge-se escravo e volta à Islândia para cumprir aquilo que julga ser o seu destino, isto por entre visões do futuro e profecias patrocinadas por bruxas e feiticeiros. Nesta odisseia, o príncipe vingativo acaba por se apaixonar por uma escrava com sonhos de liberdade ao mesmo tempo que descobre que a sua mãe deu à luz um herdeiro do seu tio odiado..Repleto de uma estranheza encantatória e de um recurso ambicioso à força telúrica das paisagens islandesas, O Homem do Norte vive também do carisma de atores que dão tudo no processo. São faróis por entre a negríssima carga trágica e aí é fascinante descobrir o trabalho corporal do bobo de Willem Dafoe, tão assustador como divertido. Um trabalho muito próximo daquilo que o ator chegou a mostrar no palco do CCB quando cá veio com a sua companhia teatral, a Wooster Group..Depois, como não sentir prazer com os breves momentos de Bjork, uma bruxa sem olhos que arrepia a sério... E prazer ainda maior com a requintada emanação do mal das expressões de Claes Bang (o ator de O Quadrado) e de Nicole Kidman, a rainha perversa. Mas é Alexander Skarsgaard, como protagonista, quem leva ao limite uma dimensão de possuído, um homem lobo-urso cuja fisicalidade encerra em si um jogo de ator absolutamente extremista..Robert Eggers, cineasta que nos filmes anteriores, A Bruxa - A Lenda de New England (2015) e O Farol (2019) cultivava um gosto pelas ambiências de rituais, filma tudo com um peso de épico sujo e suntuoso. É este o filme que lhe dá um passaporte de visionário no atual sistema de produção americana. Um visionário capaz de nos enganar com falsos planos-sequência, cheios de lama e sujidade, mas também contrapor quadros visuais fantasiosos com um bom gosto áspero notável. A sua vitória aqui é não se perder na escala gigante de uma produção que chegou aos 90 milhões de dólares. Cada plano tem a sua assinatura e controlo. O Homem do Norte, mesmo com a capa de épico lendário de vikings, não deixa de ser outro exemplo da sua destreza dentro do género do "folk horror", ou seja, cinema de terror com a tal carga reveladora que é tão gutural como espiritual..Se é também um exercício de captura do espírito das iconografias das lendas islandesas, o filme consegue sempre equilibrar-se muito bem no seu estudo humano que decifra a fronteira entre o ódio e amor. Este Amleth é a configuração iconográfica de um imaginário do pecado, da limitação humana perante o sagrado. Porque nas portas do inferno (Valhalla, assombração de fogo e sombras) ficamos sempre bestas..Longe de ser perfeito, O Homem do Norte pode ser acusado de estar demasiado "cheio" e ter alguns novelos narrativos a mais, mas talvez seja nessa imperfeição que ganhe mais alma. Chapeau à Universal por ter financiado uma obra tão indomesticável! E apenas se avisa que o ressoar da voz malévola de Bjork talvez fique dentro da nossa cabeça mais tempo do que julgaríamos....dnot@dn.pt