Se há filme que nestes dias vai provocar muitos risos nervosos na sala de cinema é A Flor da Felicidade. Um título lançado no Festival de Cannes 2019, de onde saiu com uma distinção para a sua atriz, Emily Beecham, e que parece ter sonhado a miniatura de uma realidade aproximada do que estamos a viver hoje. Máscara cirúrgica, luvas e um ritual de lavagem de mãos com álcool gel são acessórios e prática comum entre as personagens centrais: fitólogos que estão a experimentar o entusiasmo e as dúvidas dos primeiros dias de uma nova criação, porventura revolucionária..Trata-se de uma planta esfíngica, batizada com o nome Little Joe, cuja composição genética concebida em laboratório visa a produção de um efeito antidepressivo através do odor libertado pelo pólen. Mais especificamente, uma flor terapêutica que deverá acionar o processo biológico das hormonas da felicidade em retribuição do afeto que receber de quem a cuida - e isso implica não só regar como falar com ela. Até aí, tudo bem..O quadro complica-se um bocadinho quando estranhos fenómenos de comportamento, humano e animal, começam a ser associados à presença do inofensivo Little Joe. Um erro científico? Talvez. Logo nos primeiros momentos da nossa conversa com a realizadora, a austríaca Jessica Hausner, o papel da ciência é congratulado. "Acho interessante que a ciência seja algo tão poderoso nos nossos dias, de maneira a que religião tenha perdido protagonismo. Gosto que assim seja. Mas essa próxima religião, a ciência, não dá todas as respostas e não domina os efeitos secundários, mesmo das coisas boas. Pelo contrário, há a possibilidade de erro...", afirma com um sorriso levemente perverso..O erro laboratorial é, pois, a hipótese que assombra este filme hipnótico, de atmosfera moldada por uma banda sonora - do compositor japonês Teiji Ito - a meio caminho entre o tribal e o oriental, que faz o terror ganhar a textura de um tecido delicado. Aqui, a única pinga de sangue que se vislumbra é tratada com um penso rápido e a "sujidade" que caracteriza o cinema de género é substituída por uma visão subtil, inteligente e higienizada do medo. A ansiedade enquanto jogo de perceção..A propósito de A Flor da Felicidade, muito se falou da inspiração que terá sido Invasion of The Body Snatchers, na versão de Don Siegel e do remake de Philip Kaufman. Mas é possível trazer ainda para o universo das referências A Loja dos Horrores (1960) de Roger Corman, comédia de humor negro sobre uma planta carnívora, ou o ponto de vista do criador segundo o Frankenstein de Mary Shelley. Entenda-se: para lá das discussões à volta de um vírus que não era suposto ter sido usado e sofreu uma mutação, e um cenário de pessoas infetadas por um pólen que provoca sintomas quase impercetíveis, o filme de Hausner é uma excelente sessão de psicanálise focada no dilema de uma mãe, a "criadora"..Tópico importante para uma cineasta que reflete sobre a posição social da mulher e não se verga a juízos tradicionais: "Espanta-me que uma certa noção antiquada da maternidade ainda vigore na sociedade, sobretudo nos países de língua alemã, mas também no resto da Europa. É aquela ideia de que uma mãe deve amar a sua criança e nada mais, enquanto o pai pode amar a criança e também a sua própria profissão... Esta não é uma imagem que se atribui à mulher, e foi um dos primeiros conceitos na base do filme. Queria ter como protagonista uma cientista dedicada, uma mulher com uma carreira bem-sucedida, que ama realmente o seu trabalho, mas também ama o seu filho! Portanto, não é uma contradição. No entanto ela não deixa de ter sentimentos de culpa, que vêm de dentro mas igualmente da postura da sociedade. A pergunta que faço é: como é que ela se livra dessa culpa?" Por estas palavras temos o retrato de Alice, uma mãe divorciada que, em consultas regulares com a sua psicoterapeuta, se estuda a si própria na medida de dois amores: o filho Joe e a planta, Little Joe, sua invenção botânica..Se pusermos os olhos na filmografia de Hausner, em particular nos dois filmes anteriores - Lourdes (2009), sobre a procura de um milagre, e Amor Louco (2014), centrado no poeta Heinrich von Kleist e o seu convite insólito a uma mulher com quem deseja consumar um pacto de suicídio romântico - fica muito clara uma certa tendência para explorar formas de mitigação do sofrimento humano. "Todas as sociedades têm as suas ideias sobre a vida depois da morte, a cura ou a felicidade, e o humor dos meus filmes vem da tentativa de compreensão dessas ideias, porque nós precisamos delas para viver, senão nada disto faz sentido", diz a realizadora ao DN..E esse humor fino também é visto a desabrochar em A Flor da Felicidade, cuja única personagem depressiva é aquela que alerta para o caráter nocivo da nova planta. "Eu aprovo a depressão. É um estado muito límpido da mente. É perceber que a vida não tem lógica e um dia morrerás", acrescenta e continua: "Sabe, em adolescente eu era fascinada por Sartre e Camus, autores existencialistas que tentaram tirar os óculos de sol e olhar para a vida tal como ela é. Nos filmes, faço ironia com o facto de continuarmos a usar esses óculos de sol. Precisamos deles.".O brilhantismo desta ficção científica regada de perigo sugestivo, e com emoções esterilizadas, está ainda na escrita enigmática do movimento da câmara dentro de uma paleta de cores que oscila entre o quente e o frio. Sobre esse impulso suave da lente, Jessica Hausner diz-nos apenas que, por vezes, "é como se a câmara estivesse a fazer o que lhe apetece". Porém, no que toca aos atores - e vale a pena referir Ben Whishaw, no papel do colega botânico mais próximo da protagonista, Emily Beecham - há toda uma coreografia pré-concebida no storyboard. "Todos os movimentos dos atores são uma espécie de ballet ensaiado. É uma forma muito específica de trabalhar", revela..A Flor da Felicidade é o primeiro filme inglês da realizadora austríaca, mas não é a sua primeira experiência de rodagem numa língua estrangeira, desafio que aprecia bastante: "Tento reduzir as minhas histórias a uma certa fórmula universal, e filmar noutra língua ajuda-me porque sou obrigada a livrar-me de todas as minhas bases austríacas e transportar a narrativa para outras culturas - não é só a língua, é a mentalidade da língua.".Ao sair da sua zona de conforto, dir-se-ia que Hausner fica apta para criar desconforto. Mas até isso é ambivalente em Little Joe (título original), porque a construção do desconforto confunde-se com um terror que embala, um conto sombrio que oferece o regaço para adormecer espectadores mantidos em ambiente de estufa. Foi o poeta Paul Celan quem disse que a morte é uma flor... Não o vamos contrariar..**** Muito bom