Bispos sob fogo. Como a pandemia dividiu os católicos portugueses

A atuação da hierarquia da Igreja face à pandemia expôs como nunca velhas divisões nos católicos entre conservadores e moderados
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Em Óbidos, o pároco local, padre Ricardo Figueiredo, inconformado por não poder celebrar missas presenciais, decidiu-se há dias por algo inovador: uma missa drive in no terreiro do Santuário Senhor da Pedra, nos arredores da vila, com todos os crentes dentro dos seus carros participando na celebração. A missa incluía até um confessionário drive in.

Alertada a diocese de Lisboa para a iniciativa, rapidamente o padre recebeu um telefonema da capital que o aconselhava a não avançar. Argumentou-se que a proibição das missas é para valer, com drive in ou sem drive in. Por "instruções superiores" a missa foi cancelada.

Este é apenas um exemplo de uma situação em que a hierarquia católica foi forçada a intervir para travar os ímpetos de quem nunca se conformou com a determinação governamental de suspender as missas presenciais - as quais regressarão no último fim de semana deste mês, já tendo sido emitido um regulamento de segurança muito detalhado.

A Igreja Católica portuguesa enfrentou a pandemia acatando (às vezes até por antecipação) as orientações de confinamento emanadas do poder político - mas a verdade é que essa obediência ao princípio do "a César o que é de César" revoltou muitos católicos, expondo velhas fraturas.

As manifestações dessa revolta foram muitas e algumas saltaram para o espaço público, com o tom das críticas a acentuar-se sobretudo a partir do 1º de Maio, quando o Governo autorizou a CGTP a celebrar o Dia de Trabalhador na Alameda, em Lisboa, estando nesse fim de semana os portugueses proibidos de transitar entre concelhos (mas para os sindicalistas essa proibição não existiu).

Na Igreja de S. Nicolau, em Lisboa, numa missa transmitida via Facebook (como todas de há semanas para cá), o respetivo pároco, padre Mário Rui, não escondeu a revolta pelo facto de as missas presenciais estarem proibidas - e ainda o 13 de Maio em Fátima - e a CGTP conseguir celebrar na rua o Dia do Trabalhador: "Não há dúvida de que a geringonça manda neste país", disse, ao encerrar a homilia.

Noutra paróquia de Lisboa, Santa Joana Princesa (zona de Alvalade), o padre Duarte da Cunha assinava um dia depois, a 2 de maio, um longuíssimo texto defendendo que as missas deviam retomar no fim de semana de 16/17.

"Diante da decisão do governo e da aceitação tácita por parte dos bispos de só começar a haver missa pública no fim de maio, parece haver pouco a fazer. Somos chamados a ser obedientes e vamos ser, certamente. Mas nada nos impede de pensar que deve ser possível repensar esta decisão e termos missas mais cedo. É importante que se saiba que os católicos que pedem para começar a celebrar a Missa antes do fim do mês não estão a ser irresponsáveis; eles sabem bem que deverão seguir regras porque as sabem justas e necessárias."

Prosseguindo: "Não é justo é pensar que os católicos que vão à missa são perigosos como os adeptos do futebol, que perdem a cabeça quando há um golo e se abraçam todos! Os católicos estão atentos aos outros. Basta ver como as paróquias, as comunidades religiosas, os jovens e as famílias católicas estão a ser protagonistas na primeira linha da ajuda concreta a quem mais precisa."

No dia seguinte, 3 de maio, já circulava pela internet um vídeo de católicos a pedir aos "queridos bispos" que fosse autorizado o regresso das missas presenciais. Quem articulou a sua organização não se sabe quem foi - mas sabe-se como terminava. Com uma frase onde se lia: "Seria mais fácil o mundo sobreviver sem o sol do que sem a Santa Missa."

Ouvido pelo DN, António Marujo, jornalista há décadas especialista em assuntos religiosos e diretor do site de noticiário religioso "7 Margens", não é de meias palavras quando comenta o vídeo: "Um vídeo tonto".

E "tonto", para começar, por causa da tal última frase: "Gostava de ver aqueles católicos sobreviverem sem sol."

No seu entender, o que a exceção dada à CGTP veio expor ainda mais no mundo católico é "uma fratura que já existia antes". E "essa fratura é entre aqueles que acham que a vida na Igreja se resume ao sacramento num templo e aqueles que acham que há mais vida na Igreja para lá disso".

Aliás, segundo acrescenta, há uma "coincidência muito grande" entre os que querem missas já (ou até acham que nunca deveriam ter sido suspensas) e o que contestam, por exemplo, as conclusões do Sínodo da Amazónia (que abriu a porta à ordenação de homens casados e às missas celebradas por mulheres). A divisão, portanto, é a mesma de sempre: tradicionalistas de um lado; moderados do outro.

O que vale, prossegue, é que o bispado reagiu à pandemia em clima de unidade, "percebendo claramente a gravidade do problema". E ainda antes de ser determinado o estado de emergência (19 de março) já a Conferência Episcopal tinha emitido uma diretiva obrigando os padres a entregarem a hóstia da comunhão na mão e não na boca (algo que aliás os tradicionalistas começaram de imediato a contestar).

Face ao avolumar das vozes pedindo o regresso imediato das missas presenciais - apelo feito já na perspetiva da aproximação das celebrações do 13 de maio em Fátima -, D. Manuel Clemente, presidente da Conferência Episcopal e Cardeal patriarca de Lisboa, veio a terreiro reafirmar a proibição de missas.

"Sabemos que o fim do estado de emergência não significou o fim da pandemia e do grande perigo de ela alastrar, se não mantivermos o cuidado necessário. O Governo não autorizou celebrações religiosas em geral até ao fim deste mês; e o Santo Padre pediu para todos nós a graça da prudência e da obediência às orientações oficiais, para que a pandemia não regresse", escreveu.

Concluindo: "Custa-nos certamente, mas temos de cumprir, a bem da saúde pública. Atentos ao bem de todos e de cada um, com o cuidado que a sua vida nos requer, da saúde do corpo à do espírito, totalmente considerada e respeitada, para ser vida em abundância."

Ao mesmo tempo, em Fátima, o respetivo bispo, cardeal António Marto, também reafirmava categoricamente que este ano as celebrações do 13 de maio no santuário se farão sem peregrinos.

"A decisão da Igreja Católica de seguir as indicações das autoridades civis no sentido de suspender as celebrações religiosas comunitárias decorre da responsabilidade de fazer o que está ao seu alcance para não colocar em perigo a saúde pública, cumprindo também deste modo o mandato evangélico do amor ao próximo", lia-se, numa nota emitida pelo gabinete do bispo.

Marto sucede a Clemente

A unidade com que os bispos enfrentaram o problema permite antecipar que a contestação de que foram alvo por setores importantes da comunidade católica - contestação essa alimentada por muitos párocos - não terá reflexos na eleição, marcada para 20 de junho, do sucessor de D. Manuel Clemente na presidência da Conferência Episcopal Portuguesa.

Tudo aponta para que o sucessor seja António Marto. Afinal foi ele que, quase em lágrimas, anunciou pela primeira vez em 6 de abril a "única decisão sensata": a de que, este ano, as celebrações do 13 de maio se farão sem peregrinos.

[Notícia retificada às 18h00 do dia 10 de maio. O padre Duarte da Cunha não sugeriu em 2 de maio que as missas abrissem "já" mas sim no fim de semana de 16/17, propondo um plano de ação para esse efeito. Pelo erro o DN pede desculpa.]

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