Numa entrevista em Cannes, Virginie Efira, a protagonista desta história medieval, refletia se um filme como este, com sexo lésbico explícito e violência pretensamente profana, poderia causar celeuma. Será que o escândalo no cinema é um conceito obsoleto? No caso de Benedetta, o novo filme de Paul Verhoeven, a questão levanta outras questões, a começar pela maneira como se dilui nos media a própria noção de "escândalo". Em última instância, a transgressão já não é o que era - goste-se ou não de um objeto destes, o seu conteúdo, por muito que seja "chocante" vermos uma freira masturbar-se com um vibrador esculpido de uma estatueta da Virgem Maria, parece que se dilui nesta atual cultura de ruído. Outra das possíveis polémicas do filme, o seu eventual male gaze em tempos de paisagem de #MeToo, também se arrisca a ser engolido ou obliterado. Nada que minimize o mais importante neste trabalho, a liberdade de um cineasta a filmar sexo sem pruridos. A liberdade de Paul Verhoeven, ponto final, cineasta que põe em marcha um questionamento das possibilidades de encenar o desejo feminino, sobretudo quando aponta a Idade Média como contraponto a um mundo contemporâneo em que as sociedades heteronormativas podem ainda recuar perante essa encarnação de um orgasmo feminino..CitaçãocitacaoVamos falar de desejo? Um filme sobre a transbordante vibração do corpo feminino filmada por um homem, algo inflamável nestes tempos....Afinal de contas, esta história de uma freira acusada de visões blasfémicas misturadas por comportamentos sexuais "lascivos" é também uma prova de força de uma visão de risco, na qual não se tem medo de forçar o excesso ou desencadear impulsos sensoriais supostamente interditos. É como se o "ridículo" pudesse ser uma forma de discurso de mise-en-scène, talvez essa a maior provocação do veterano cineasta holandês, anteriormente também ligado a imagens de transgressão, nomeadamente em Delícias Turcas (1073) ou Amor e Sangue (1985). Isso e uma vontade extrema de renegar mandamentos de bom gosto visual ou ordem e geometria de cinema. É isso que faz das imagens de volúpia do filme algo verdadeiramente próximo de nós, algo lucidamente vivo, mesmo em carne exposta. Concessão? Que o seja, sem medos. E convém sempre recordar que este é o cineasta que terá transformado o esquema de perceção na América daquilo que se entende como thriller erótico em Instinto Fatal (1992) e incendiado uma certa moral francesa com Ela (2016). Adaptação de um romance de Judith C. Brown, Immodest Acts - The Life of a Lesbian Nun in a Renaissance Italy, Benedetta conta a história verdadeira de uma freira do século XVII possuída por visões violentas de Jesus Cristo. Uma freira que vive um tórrido romance sexual com uma noviça e mais tarde se torna madre superior de um convento italiano, sendo depois vista como uma fazedora de milagres. Um argumento que ainda teve a contribuição de Jean-Claude Carrière, o reputado argumentista recentemente falecido. Em Cannes, dividiu a crítica (tal como aqui, ver mapa das estrelas em baixo) e tornou-se uma espécie de filme maldito, especialmente por ter saído de mãos a abanar do palmarés, não esquecendo que a sua epopeia de produção demorou alguns anos: problemas de saúde de Verhoeven e a hibernação da estreia graças à pandemia..A força de Benedetta está em colocar a tal danação como estado de espírito de uma narrativa que surpreende sempre por nunca desacelerar no ritmo e assumir uma linguagem seca e sem restrições no limite da representação do desejo feminino. Nos dias de hoje, com tanta brigada de policiamento do novo feminismo, um filme com tanta nudez feminina e em busca do orgasmo genuíno filmado por um idoso que inventou o cruzar de pernas de Sharon Stone, talvez valha como um discurso. É a tal questão que refiro no começo do texto: podemos já não ter pedalada mediática para um filme escandaloso mas importa perceber se a própria Igreja consegue percecionar o tal conteúdo blasfemo deste filme erótico-religioso..Acima de tudo, parece tratar-se de um objeto honesto que interroga as políticas do nosso corpo, por muito que a proposição pareça nascer das trevas. Para onde vai o desejo e de onde nasce a culpa... A certa altura, a freira protagonista é vítima de uma possessão. Possessão religiosa ou demoníaca? Venha o diabo e escolha... Que melhor abstração "avariada" se poderia propor? Mas é também na marcante presença de uma atriz como Virginie Efira que o filme se agiganta e se dilui alguma sombra de soap-opera medieval. Efira nunca "aboneca" a sua freira e o realismo do seu sofrimento e prazer é coisa vintage num imaginário que por vezes é seduzido pelas fórmulas de um certo cinema trash, mesmo que disfarçado de respeitável filme de época. Uma atriz fulgurante que já dava indícios de todo este alcance dramático quando começámos a reparar nela em filmes como A Oportunidade da Minha Vida (2010), de Nicolas Cuche, e, sobretudo, A Fabulosa Caprice (2015), de Emmanuel Mouret. Hoje, esta belga, antes de ser uma star, é uma atriz de cinema, uma grande atriz de cinema!.dnot@dn.pt