Beijar a cruz. A exceção numa Igreja que "não abandona os seus fiéis"

Há sempre quem não cumpra as restrições impostas pelo surto do novo coronavírus, como aconteceu em dois lares durante a Páscoa, mas os padres têm arranjado soluções para manter o contacto com as comunidades e mais de dez mil pessoas acompanharam as celebrações na Sé Lisboa, através do Facebook e YouTube.
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No passado dia 27 de março, o Papa Francisco rezou pela humanidade numa Praça de São Paulo completamente vazia. As imagens correram mundo. Devido às medidas de contenção da pandemia de covid-19, o local que habitualmente se enche de fiéis estava vazio enquanto o Papa deixava a sua mensagem ao mundo: "Estamos todos neste barco. Ninguém se salva sozinho".

O Papa continua a celebrar missas, que são transmitidas no canal YouTube do Vaticano, noutros locais, talvez com menos impacto visual mas sempre com a mesma solidão. A mensagem é clara e tem sido repetida por vários responsáveis da Igreja Católica: para sermos comunidade, neste momento, não podemos estar fisicamente juntos.

Em Portugal, a Conferência Episcoal decidiu no dia 13 de março suspender as missas, catequeses e outros atos de culto até que esteja superada a atual situação de emergência de disseminação do novo coronavírus. "Permaneçamos em oração pessoal e familiar, biblicamente alimentada, confiados na graça divina e na boa vontade de todos", pediu a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) em comunicado.

Muitas paróquias aderiram, então, às transmissões online. No site do Patriarcado de Lisboa, por exemplo, existe uma lista, em constante atualização, das celebrações litúrgicas na região de Lisboa que são transmitidas pela internet, pela televisão ou pela rádio.

"Tem sido uma experiência muito positiva", conta ao DN o padre João Paulo Pimentel, da paróquia de Telheiras. "Nunca tínhamos feito nenhuma transmissão online. É um pouco estranho ter a igreja vazia, faltam-nos os nossos fiéis, mas o importante é chegarmos até eles. E é bastante simples. Usamos a câmara do telemóvel e transmitimos pelo Facebook." Ao início o padre João Paulo teve dúvidas: "Hesitei bastante. Já existem outras transmissões profissionais, quer do Vaticano quer de Fátima, porque é que as pessoas haveriam de ver uma transmissão amadora, com menos qualidade? Mas depois confirmei que as pessoas viam, que mandavam mensagens. São as pessoas aqui da paróquia, que costumam vir à nossa missa. E por isso vamos continuar, enquanto houver pessoas a ver."

A Igreja de Telheiras foi uma das que se manteve aberta, apesar do estado de emergência. "Eu vou lá todos os dias. Recebo as pessoas que aparecem, sempre mantendo as distâncias e cumprindo todas as regras de segurança. Acho que é importante porque há pessoas que querem confessar-se ou conversar. Nestes tempos difíceis é importante que as pessoas se sintam acolhidas", explica o padre. Da mesma forma, também os catequistas têm instruções para manter o contacto com as crianças e jovens, assim como os grupos de apoio e oração devem manter-se ativos. "As pessoas continuam a ter necessidades espirituais e nós tentamos encontrar soluções até onde for possível."

Nos últimos dias, o padre João Paulo Pimentel esteve em isolamento, depois de um dos seus paroquianos, que tinha estado na igreja recentemente, ter testado positivo para covid-19. "Mas agora já recebi o resultado do teste e está tudo bem, por isso assim que puder vou voltar à igreja", garante.

Também o padre Diamantino Faustino, da paróquia de Linda-a-Velha explica que a distância levou-os a procurar outras formas de chegar às pessoas: já tinham um site mas agora têm uma página no Facebook e uma conta no YouTube onde todos os dias transmitem a missa, mensagens de bom dia e de boa noite, sempre mensagens de "fé e esperança" a todos os paroquianos. "Temos uma missão a cumprir, seja no cuidado para com os doentes, seja ficando em casa com paciência, e a fé é força capaz de mover montanhas", diz ao DN. "O cristão está no seu posto, sobretudo nos momentos de dificuldades, para levar a força espiritual que os outros precisam. E tantas coisas boas têm vindo ao de cima, seja nos médicos e enfermeiros, seja nas empresas, etc. Tanta gente a querer fazer o bem."

Entre as boas surpresas desta situação, além da disponibilidade de todos e a enorme entreajuda, o padre Diamantino sublinha a "rede de relações fraternas": "Aparecem outras pessoas da paróquia que não estavam no contacto habitual, sobretudo as que ficavam sempre em casa, por doença ou velhice. Estas agora têm muito mais contacto com a paróquia."

Uma Páscoa à distância

Da mesma forma, nas recomendações para esta Páscoa, o Papa pedia expressamente a todos os fiéis que seguissem as recomendações de saúde da sua área de residência. Os padres deveriam continuar a cumprir todas as celebrações mas sem a presença de fiéis nas igrejas, a transmissão de alguns desses atos através de meios tecnológicos deveria ser uma opção a considerar. Na quinta-feira santa, o Papa aconselhava: "omita-se o lava pés". E para a sexta-feira pedia que "o ato de adoração à Cruz com o beijo seja limitado apenas ao celebrante".

Numa outra mensagem, Manuel Clemente e António Marto, respetivamente presidente e vice-presidente da CEP, explicaram que as atuais restrições impostas no respeito pelo bem da saúde pública obrigariam a todos a celebrar "o mistério pascal em condições limitadas, sem se poder reunir com os sacerdotes e demais fiéis". "Apesar de ser doloroso este tempo de ausência das celebrações comunitárias, ele tem sido fecundo na criatividade e no uso das novas tecnologias para a evangelização, para a espiritualidade e para ser Igreja comunidade e Igreja em saída. Este é também um tempo para pensar, dialogar, imaginar e projetar novo futuro", concluía a nota da CEP.

Há sempre quem não cumpra

E, no entanto, há sempre quem não cumpra as recomendações. No domingo da Páscoa pelo menos dois lares promoveram o tradicional "beijar a cruz" entre os utentes, indo contra as orientações formalmente divulgadas pela Direção-Geral da Saúde e pela hierarquia da Igreja Católica que decidiu suspender esta tradição na celebração pascal.

Apesar destes incidentes, o balanço da Páscoa é bastante positivo, admite o padre Nuno Rosário Fernandes, diretor do Departamento de Comunicação do Patriarcado de Lisboa. "Tanto quanto percebi essas foram iniciativas privadas e foram claramente exceções", afirma o padre Nuno. "Assim que foi decretado o estado de emergência e nos vimos confrontados com este confinamento forçado, procurou-se responder às necessidades das pessoas, usando sempre que possível as novas tecnologias. Para nós era importante encontrar um modo de chegar às nossas comunidades e também proporcionar-lhes uma vivência da Páscoa o mais próximo possível do que é habitual."

Se dúvidas houvesse sobre o interesse dos fiéis: as transmissões das celebrações na Sé de Lisboa, durante a semana da Páscoa, presididas pelo cardeal patriarca dom Manuel Clemente, foram acompanhadas por mais de dez mil pessoas, entre o Facebook, o Youtube e o Meo Canal.

O padre Nuno Rosário Fernandes admite que para a maioria dos párocos estas transmissões online foram uma novidade mas garante que todos estão a dar o seu melhor, até mesmo os que tinham "menos apetência para as novas tecnologias". "A maior dificuldade é quando as comunidades são mais envelhecidas ou não têm acesso aos meios tecnológicos. Mas aí os padres têm encontrado outras soluções para manter o contacto, seja por telefone ou com encontros que cumpram as medidas de segurança. Houve até um prior que, durante a Páscoa, enviou os textos das eucaristias aos seus paroquianos para que, à hora da missa, eles pudessem acompanhá-lo, embora estivessem distantes."

"A Igreja não abandona os seus fiéis", diz o padre Nuno. "Não só continuamos juntos nos momentos de oração como procuramos manter o contacto e foi pedido que algumas igrejas se mantivessem abertas, para que as pessoas possam ir lá se sentirem essa necessidade." Uma das igrejas que se mantém aberta é, precisamente, a de Nossa Senhora do Amparo, em Benfica, a paróquia de padre Nuno. "Isto só é possível porque a Junta de Freguesia se ofereceu para, todos os dias, vir fazer uma limpeza e desinfeção do espaço, permitindo assim que as nossas portas se mantenham abertas."

"A minha experiência como prior nestes tempos tem sido muito positiva. Além das missas, transmitimos o terço diário e a reação das pessoas tem sido extraordinária." Além disso, as novas tecnologias permitem que uma paróquia de Lisboa, de repente, se transforme numa "paróquia global", diz. "Recebemos mensagens de todo o país e até do estrangeiro, de Paris, da Alemanha, da Califórnia", revela o padre Nuno Rosário Fernandes. "Não há dúvida de que a vivência espiritual é muito importante, e nestes momentos difíceis ainda mais."

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