Os atores são os mesmos, mas a retórica tem vindo a intensificar-se nas últimas semanas. E Sirte, terra natal do ex-ditador Muammar Kadhafi cuja queda há nove anos desencadeou a guerra civil, promete ser o próximo campo de batalha. O Egito ameaça enviar tropas para o terreno caso as forças líbias apoiadas pela Turquia cruzem esta "linha vermelha", numa jogada que também está a fazer soar os alarmes em França e a deixar os dois aliados da NATO ainda mais de costas voltadas..Sirte, na costa do Mediterrâneo a meio caminho entre Tripoli e Benghazi (a segunda maior cidade da Líbia), é um ponto-chave no chamado crescente petrolífero - a Líbia tem as maiores reservas de ouro negro do continente africano..Depois de ter caído nas mãos do Estado Islâmico em 2015, foram precisos seis meses de combates para, em dezembro de 2016, as forças do Governo de Acordo Nacional (GNA, na sigla em inglês), com o apoio da aviação norte-americana, recuperarem o controlo de Sirte..O GNA é reconhecido pelas Nações Unidas e controla Trípoli, mas estava debaixo de fogo do Exército Nacional Líbio, do marechal Khalifa Haftar, que controla o leste da Líbia e tem o apoio do Parlamento que se instalou em Tobruk..Em janeiro, Haftar assumiu o controlo de Sirte quando o GNA estava concentrado em não perder o controlo da capital líbia, debaixo do seu ataque desde abril de 2019..Mas a intervenção da Turquia veio virar o jogo a favor do GNA, que avança agora face ao recuo de Haftar. A guerra é na Líbia, mas há diferentes atores no terreno, sendo ambos os lados "alimentados" por mercenários vindos da Síria. Se com o GNA estão a Turquia e as Nações Unidas, incluindo os EUA e a maioria dos países europeus, do lado de Haftar estão os Emirados Árabes Unidos, a Rússia, o Egito, a Arábia Saudita e até, de forma mais discreta e por causa de interesses económicos, a França (os franceses insistem que têm uma posição de neutralidade)..Nas últimas semanas, Egito e França têm tomado posições de força contra a Turquia, fazendo escalar ainda mais o conflito na Líbia..Qual é o interesse do Egito?.O presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi assumiu o poder depois de um golpe militar em 2013, que derrubou o primeiro líder democraticamente eleito do país, Mohamed Morsi, membro da Irmandade Muçulmana que tinha o apoio da Turquia. Este grupo foi entretanto considerado como uma organização terrorista..Mas, na vizinha Líbia, o grupo é parte do GNA reconhecido pelas Nações Unidas, algo que o Egito não aceita, com o Cairo a apoiar Haftar (que fez parte do seu treino militar com os egípcios) nesta guerra..No dia 20 de junho, e perante a pressão cada vez maior das forças leais ao GNA, Sisi avisou que ataques a Sirte ou à base aérea de Al-Jufra serão vistos como um cruzar de uma linha vermelha, com o Egito a ameaçar colocar diretamente militares no terreno para apoiar Haftar e travar a ofensiva das forças apoiadas pela Turquia. Em causa está também, alega Sisi, a defesa das fronteiras do Egito -- onde não querem ver os turcos.."Qualquer intervenção direta do Egito é legítima do ponto de vista internacional, quer ao abrigo da carta das Nações Unidas em relação ao direito à autodefesa ou baseado na legitimidade da única autoridade eleita pelo povo da Líbia: o parlamento líbio", disse Sisi. Aguila Saleh - que lidera o parlamento baseado em Tobruk que apoia Haftar - disse entretanto que se Sirte estiver em risco de cair, pedirá a intervenção dos egípcios..O presidente egípcio pediu ao exército - um dos maiores do Médio Oriente com quase 460 mil membros ativos, segundo a CIA - para estar preparado para intervir a qualquer momento, dentro ou fora das fronteiras..A decisão surgiu dias depois de os egípcios terem proposto um novo plano para a paz na Líbia, que recebeu a luz verde de Haftar (a perder terreno no palco de guerra), mas não do GNA que continuou a avançar para Sirte. Para o governo reconhecido pela ONU e para a Turquia, o plano que inclui um cessar-fogo, a desmobilização das milícias e a retirada dos mercenários era apenas uma tentativa de ganhar tempo para permitir a recuperação de Haftar no terreno..A ameaça de intervir diretamente poderá não passar disso mesmo, de uma ameaça, na tentativa de travar qualquer novo avanço do GNA e obrigar a um novo esforço diplomático para alcançar a paz..Qual é o plano da Turquia?.Como muitos outros envolvidos na Líbia, a Turquia tem interesses económicos no país -- que esteve durante três séculos sob o domínio do império otomano. Em novembro, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, assinou um acordo de redefinição das fronteiras marítimas entre os dois países, dando a Ancara o controlo sobre importantes jazidas de gás natural descobertas no Mediterrâneo. Em troca, prometeu apoiar militarmente o GNA e o primeiro-ministro Fayez al-Sarraj..A Turquia não gostou de ter sido deixada de fora do acordo para a exploração dos recursos naturais do Mediterrâneo em redor do Chipre (uma ilha dividida, com Ancara a assumir como sua a parte norte), que foi assinado com a Grécia, o Egito e Israel. A comunidade internacional, não reconhece o acordo que Erdogan assinou com Sarraj..Em janeiro deste ano, o Parlamento turco apoiou o envio de tropas para a Líbia, que na prática se traduziu na presença no país de conselheiros para treinar as forças do GNA e no apoio com drones. Além disso, os turcos estarão a transferir mercenários do Exército Nacional Sírio (que apoiam no combate contra o presidente Bachar al-Assad) para a Líbia, ajudando a reforçar o continente das forças leais os governo de Trípoli..Com este apoio, o GNA conseguiu afastar Haftar da capital, começando um contra-ataque que está agora às portas de Sirte. Para Ancara, a derrota do governo de Trípoli seria um revés, já que este é o único que lhe pode garantir o cumprimento do acordo no Mediterrâneo..Mas para conquistar Sirte e ir mais além, é preciso um poder militar que a Turquia -- que também está envolvida no conflito na Síria - não dispõe, nomeadamente a nível aéreo e tendo em conta que do outro lado está a Rússia e os Emirados Árabes Unidos, duas potências nesta área..E onde é que entra a França?.A intervenção turca na Líbia tem dividido a NATO, com a França a ser uma das vozes mais críticas. Apesar dos apelos ao respeito pelo embargo de armas, há contudo aliados que consideram que Ancara poderá ajudar a impedir a Rússia de estabelecer bases militares permanentes na Líbia - o que Washington considera uma ameaça aos membros da NATO - não se mostrando tão abertamente contra as ações turcas..Para o presidente francês, Emmanuel Macron, a falta de uma resposta da NATO em relação à intervenção da Líbia na Síria é uma prova de que esta organização está "em morte cerebral"..Nos últimos dias, a retórica francesa subiu de tom, com Macron a acusar Ancara de "responsabilidade criminal". Uma reação que surgiu depois de um incidente que Paris considerou "extremamente agressivo" no Mediterrâneo, que está a ser investigada pela NATO..O incidente ocorreu a 10 de junho, quando a França acusou um navio turco de ter colocado por três vezes a fragata francesa Corbet na sua mira, quando esta se preparava para o controlar ao abrigo de uma missão da Aliança Atlântica. Os turcos negaram a acusação..Ancara também não deixou sem resposta Macron, lembrando que está na Líbia a pedido do governo oficial e acusando-o de "falta de memória" (os franceses, junto com os britânicos, estiveram na vanguarda da intervenção na Líbia em 2011 para derrubar Kadhafi).."A França, que Macron governa ou melhor que não consegue governar neste momento, tem estado na Líbia só pelos seus próprios interesses e ambições com uma abordagem destrutiva, tal como levou a África para a instabilidade no passado com uma abordagem colonialista, e como bombardeou e deixou a Líbia em 2011", disse o chefe da diplomacia turca, Mevlut Cavusoglu. E acusou Paris de agir contra os interesses da NATO e a favor da Rússia: "Por um lado, a NATO vê a Rússia como uma ameaça mas no outro lado, a França está a trabalhar para aumentar a presença russa lá.".No final da semana passada, após um telefonema com o presidente russo, Vladimir Putin, Macron disse estar "confiante de que é possível o progresso com os russos em vários temas", incluindo "um interesse comum na estabilização da Líbia e na reunificação das suas instituições"..Esta terça-feira, a França anunciou a suspensão da participação nas operações da NATO no Mediterrâneo. "Não nos parece saudável manter os nossos meios numa operação que alegadamente, entre outras coisas, deve controlar um embargo ao lado de aliados que não o respeitam", disse um responsável francês à AFP, sob anonimato. Paris acusa Ancara de violar o embargo de armas à Líbia..E os EUA e a Rússia?.Os EUA têm repetido que se opõem à escalada da presença militar estrangeira na Líbia, seja de que lado for, mas têm evitado uma posição de força, deixando o espaço aberto aos outros atores. Na prática, preocupado com a reeleição e a enfrentar outros problemas como a pandemia ou os protestos raciais após a morte do afro-americano George Floyd às mãos de um polícia branco, Donald Trump não está interessado no que se passa na Líbia..Logo em 2017, após ser eleito, disse que não via um "papel" para os EUA na Líbia, alegando que o país já desempenhava demasiados "papéis" no mundo. Mas depois da ofensiva de Haftar em Trípoli, num telefonema no ano passado com o marechal (que também tem nacionalidade norte-americana), Trump reconheceu o "papel" que este estava a ter no combate ao terrorismo no país e no controlo dos recursos petrolíferos líbios..A única preocupação norte-americana parece ser com a presença de mercenários russos. Os russos já estão a sair em defesa de Haftar, com os norte-americanos a dizer que já se encontram na base aérea de Al-Jufra pelo menos 14 caças russos, além de um sistema de defesa aéreo e de mercenários do Grupo Wagner -- um relatório da ONU calculava, em maio, que entre 800 e mil destes mercenários podem estar atualmente na Líbia..A Rússia não reconhece oficialmente ligação ao Grupo Wagner, que já atuou também na Ucrânia ou na Síria, havendo indicação que são os mercenários e não os pilotos russos que estão aos comandos dos aviões russos. O presidente russo, Vladimir Putin, já indicou em várias ocasiões que o governo de Moscovo não interfere na Líbia, reiterando que se há russos no terreno estes não o representam.