Aumento de casos no norte. "Não estamos a conseguir rastrear todos os contactos"
Gustavo Tato Borges atende o telefone entre chamadas. Acabou um inquérito epidemiológico e está a pouco tempo de começar outro. A carga de trabalho não mexe com a sua boa disposição, no entanto, não se diz muito bem. Fica indeciso na resposta à primeira pergunta: "Como está?"
"Achava que estava mal, mas já percebi que há quem esteja pior. Portanto, não sei se estou bem ou mal. Neste momento, temos quase 50 pessoas por contactar que de facto estão positivas [para a covid], mas um colega de outra unidade telefonou-me há pouco e disse: 50? Eu tenho 350."
A conversa segue direita ao assunto. Gustavo Tato Borges é especialista em saúde pública, trabalha no Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) do Grande Porto Santo Tirso/Trofa e é o vice-presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública. Desde que a pandemia do novo coronavírus começou que o seu trabalho é rastrear contactos, ou seja, identificar quem esteve perto dos casos positivos para covid e isolá-los para quebrar cadeias de transmissão. Trabalho este que se tornou ainda mais exigente nas últimas semanas.
A região norte voltou a ser a que regista o maior número de infeções diárias. Na semana anterior, foram confirmados mais 4065 casos de covid-19 no norte e 3046 em Lisboa e vale do Tejo. E desde segunda-feira a situação não se alterou. Nas últimas 24 horas, a região acrescentou mais 1001 das 2072 infeções notificadas pela Direção-Geral da Saúde, ou seja, 48,3% do total.
Gustavo Tato Borges é perentório a afirmar: "Nós estamos a assistir, neste momento, a um aumento de casos que é muito superior à capacidade que temos de resposta para os conter", assumindo, em entrevista ao DN, que existe transmissão comunitária ativa por controlar na região.
"Não estamos a consegui rastrear todos os contactos. Aliás, não acredito que haja nenhuma unidade de saúde pública no norte que não tenha casos em atraso e todos os dias nos caem novos casos. É uma utopia pensar que vamos conseguir controlar isto", diz. "Em março e abril tivemos transmissão comunitária ativa, no verão tivemos uma situação bastante controlada e agora claramente temos transmissão comunitária: não é possível olhar para os nossos casos e encontrar para todos um link epidemiológico."
Citaçãocitacao"É uma utopia pensar que vamos conseguir controlar isto."
"Ainda hoje estive a falar com uma senhora, que estava positiva, e perguntei-lhe se ela nos últimos 14 dias tinha tido conhecimento de alguém positivo. Ela disse que não tinha. A senhora trabalha sozinha e os contactos familiares foram poucos e as pessoas com quem esteve só apresentaram sintomas depois dela. Portanto, onde é que esta senhora foi infetada? Não sei, é muito difícil de encontrar esse link", admite, preocupado.
A experiência no terreno diz ao vice-presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública que faltam meios "técnicos e humanos" para identificar a "quantidade insana de novos casos". Segundo Gustavo Tato Borges, não existem médicos, enfermeiros, técnicos, em número suficiente para este trabalho fruto de uma carência anterior à pandemia e à ausência de reforço em quantidade suficiente nos últimos tempos. "Algumas unidades nem sequer um administrativo têm", denuncia.
Depois, há ainda a questão dos meios técnicos. "O meu centro de saúde tem cinco linhas telefónicas para o exterior, que são utilizadas por duas unidades de saúde familiar, uma unidade de aaúde pública, um centro de diagnóstico pneumológico e a direção do centro de saúde. Isto quando as linhas estão sempre sobrecarregadas." Estando alguns especialistas a utilizar o seu próprio telemóvel para fazer as chamadas de rastreio.
As queixas chegam à própria aplicação Tracecovid, a plataforma utilizada para colocar as informações sobre o rastreio de contactos. "Se há muita gente a mexer fica lenta e há computadores antigos que não têm capacidade para processar o trabalho na plataforma", continua o médico.
Sobre a forma como as pessoas se estão a infetar, Gustavo Tato Borges diz que "no norte temos encontrado muitos casos fruto de eventos festivos, quer com familiares quer com amigos. As pessoas concentram-se à volta de uma mesa sem grandes medidas de proteção", explica, em linha com as declarações recentes da diretora-geral da Saúde, Graça Freitas.
Para especificar, fala em vários casos detetados em casamentos, batizados, no local de trabalho, nas escolas e alguns em lares, principalmente, nas zonas de Bragança e Vila Real.
"Isto já vem a acontecer desde o verão. Felizmente, tivemos uns junho, julho e agosto muito tranquilos e de repente, devagarinho, começámos a aumentar em número de casos, porque de facto as pessoas baixaram a guarda e começaram a ter muitos contactos de risco. Depois, também há aquelas pessoas que tinham sintomas há mais de uma semana e acharam sempre que era uma gripe e portanto potenciam os seus contactos ao longo de uma semana inteira. Quando vamos procurar, já temos dois ou três com sintomas e esses já originaram, por sua vez, mais dois ou três casos também e isso faz-nos alargar cada vez mais a cadeia e ter um trabalho maior", conta.
DestaquedestaqueNorte tem 136 surtos ativos.
No norte, há agora 136 surtos ativos, de acordo com informações dadas pela ministra da Saúde, Marta Temido, em conferência de imprensa, nesta quarta-feira, depois de referir que em Portugal existem 396 cadeias de transmissão ativas. Só em Lisboa e vale do Tejo estão ativos mais surtos do que no norte: 178.
As duas regiões (norte e Lisboa e vale do Tejo) têm concentrado sempre, desde o início da pandemia, a maior fatia dos casos diagnosticados no país. Se em março e abril o norte era o centro das atenções por causa dos casos diários, nos meses que se seguiram estas viraram-se para a Grande Lisboa.
Isto é facilmente explicado pela densidade populacional das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, aponta, ao DN, Teresa Leão, investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, que está a acompanhar e a estudar a evolução epidemiológica do país desde o início da pandemia. "O risco de incidência é maior e, por isso, são sempre as zonas mais afetadas, ao contrário, por exemplo, do Alentejo,"
A análise do Instituto revelou ainda que haveria uma ligação com o facto de haver "muitos trabalhadores aqui na área da restauração, do comércio, ou seja, de pessoas que estão em maior risco de contrair e passar o vírus por estarem com outras pessoas". Foi feita também uma relação com os níveis "de trânsito. Por exemplo, na Área Metropolitana do Porto há uma grande deslocação de pessoas de um lado para outro. A doença não fica só numa única freguesia, desloca-se", refere a especialista.
Teresa Leão acrescenta ainda que, na origem dos novos casos "poderá estar um efeito psicológico e de relacionamento social a influenciar as curvas [epidemiológicas]". Ou seja, "as pessoas estão cansadas de estar confinadas e poderão ter facilitado em relação a uma série de comportamentos que sabiam que eram de risco", admite a investigadora.
Por isso, Teresa Leão e Gustavo Tato Borges apelam à responsabilidade de cada um, que como a primeira diz é quase como "um ato de ternura para com os outros".
"Estamos a trabalhar o máximo possível, a fazer imensas horas extraordinárias, ao fim de semana e feriados. Os médicos não gozam folgas há meses, porque estão todos agarrados ao telefone a identificar casos, a determinar o risco e as medidas necessárias de isolamento. Mas nós precisamos cada vez mais que a população entre neste barco", pede Gustavo Tato Borges.
"Se não reduzirmos os nossos contactos sociais, o Serviço Nacional de Saúde vai colapsar, porque a nível hospitalar ainda há respostas, mas a nível dos cuidados de saúde primários não há capacidade de resposta", continua o médico de saúde pública.
A ministra da Saúde voltou a referir, nesta quarta-feira, que os hospitais continuam a conseguir responder aos internamentos. No caso da região norte, Marta Temido, informou que, das 5489 camas disponíveis em enfermaria, há 294 ocupadas com doentes com covid. Nos cuidados intensivos, das 357 camas, apenas 56 tinham infetados com o novo coronavírus.
Ao DN, o maior centro hospitalar da região, o São João, disse que tinha, nesta quarta-feira, 53 pessoas internadas com covid em enfermarias e 15 no serviço de cuidados intensivos.
O primeiro-ministro anunciou, após uma reunião do Conselho de Ministros, nesta quarta-feira, um endurecimento das regras em Portugal: o país todo passa de situação de contingência para situação de calamidade e o executivo vai apresentar no parlamento uma proposta que torne obrigatório o uso de máscara nas ruas. Em caso de desobediência, o governo sugere mesmo uma multa de até dez mil euros.
Há também novas restrições no que diz respeito a ajuntamentos: os eventos de natureza familiar, como casamentos ou batizados, terão uma lotação máxima de 50 participantes, estão proibidos festejos académicos (por exemplo, praxes de receção aos novos estudantes universitários) e na rua não poderão estar juntas mais de cinco pessoas.
Gustavo Tato Borges diz que estas "medidas são boas e interessantes", "mas insuficientes, porque a maior parte dos casos acontecem em ambientes familiares. O governo ou a polícia vão entrar em casa das pessoas para ver se está tudo a respeitar? Claro que não. O cidadão é que tem de tomar essa consciência".
Teresa Leão acrescenta: "Nós temos dois cenários em cima da mesa: as pessoas podem parar, pensar e ajustar os seus comportamentos em relação ao risco que existe na nossa sociedade e isso envolve pensar duas vezes antes de fazer um jantar com a família ou com amigos, ou então, se isso não acontecer, o número de casos continuará a aumentar bastante".