"Ele entra pela porta da minha casinha e dá-me presentes. Já escrevi a carta. Pedi seis ou sete coisas. Não fico chateada se ele não me der tudo o que pedi porque fico sempre contente que venha à minha casa. Eu abraço-o muito. É o que eu mais gosto, abraçá-lo. O Pai Natal é bom." O relato é de Noa Pradas e ela sabe bem o que diz. Tem 5 anos e um entusiasmo na voz que não deixa dúvidas. Aquele "barrigudo" de "barba branca", como diz, é mesmo o máximo..E a magia que esta menina vive, sente e partilha com o DN contagia também os graúdos que guardam na memória momentos de natais passados. "Todos os anos a minha mãe dizia-nos, a mim e aos meus irmãos: 'Esperem um bocadinho que vou mexer o arroz.' Até que num belo ano combinámos seguir a minha mãe até à cozinha e foi quando descobrimos o que não queríamos descobrir. Era ela quem punha as prendas ao pé da chaminé da cozinha", conta Isabel Branco, de 51 anos..Recorda com um sorriso nostálgico a época em que acreditava no Pai Natal. "Era um tempo de magia. Acreditava que era mesmo ele que descia pela chaminé. Que belos tempos em que a minha inocência me dava esse dom", diz enquanto regressa àquela menina que acabou por se tornar uma educadora de infância..O Pai Natal representa "a hipótese de a humanidade e a condição humana terem ainda bondade e altruísmo".Mas será que se deve estimular a existência do Pai Natal nas crianças? "Sim, sem qualquer dúvida", responde perentório o pediatra Mário Cordeiro. Uma figura que deve permanecer no imaginário dos mais pequenos, até mesmo quando a realidade acaba por dizer o contrário, "passando a ser mítico, no sentido de representar a esperança de que exista ainda em nós - no ser humano - algo de bom, desinteressado, sabedor, frugal, amigo, com sentido de humor, bem-disposto", defende o médico. "No fundo, representa a hipótese de a humanidade e a condição humana terem ainda bondade e altruísmo." Valores que devem ser estimulados e desenvolvidos "durante todo o ano", diz ao DN..A pedopsiquiatra Luísa Branco Vicente prefere colocar a questão de outra forma. "Deve manter-se ou não o mito do Pai Natal?" "Há um autor de que gosto muito, Wilfred Bion, que nos disse que 'os mitos são os sonhos da humanidade' e o Natal integra, sem dúvida, o mito da origem da vida, e esse é intemporal", considera a médica com as especialidades de psiquiatria e pedopsiquiatria, psicanalista e psicodramatista..Estruturante no desenvolvimento da criança.A figura do Pai Natal, "avô rechonchudo, sorridente, com um colo que dá conforto à alma", é, no entender da especialista, "estruturante" no desenvolvimento da criança. "É uma figura acessível neste espaço intermediário entre a fantasia e o pensamento, que numa área entre o prazer e a realidade descobre e concretiza magicamente os nossos desejos, remetendo à fantasia omnipotente e estruturante das primeiras fases do desenvolvimento da criança", concretiza a presidente da Comissão de Ensino e da Comissão de Ética da Sociedade Portuguesa de Psicodrama Psicanalítico de Grupo..Mário Cordeiro não vê nenhuma desvantagem em se acreditar no Pai Natal, a menos que as crianças vejam no homem de fato vermelho e de saco às costas "uma fonte de brinquedos e resposta às exigências". É tudo menos isso..Aliás, partilha da opinião da pedopsiquiatra, ao afirmar que este amigo que nos aparece uma vez por ano "pode ajudar" no desenvolvimento das crianças "a estruturar e a acreditar na bondade e no altruísmo". É igualmente importante, diz o médico, para "entender que a vida não se resume a hedonismo e narcisismo face àquele senhor velhinho, idoso, sabedor, com sentido de humor e que não se queixa de nada (de doenças, de dores), apenas de estar cansado por ter de carregar todos aqueles presentes, mas ele gosta"..A simples troca de presentes "incentiva o dar e receber num imenso leque de nuances afetivas, simulando as permutas interno e externo, o eu e o outro, o eu e o grupo, fortalecendo vínculos, sustentáculos importantes no desenvolvimento harmonioso de qualquer ser humano", salienta a pedopsiquiatra, professora na Faculdade de Medicina de Lisboa..E existe uma idade-limite para se acreditar no Pai Natal? Há quem nunca deixe de acreditar, como o próprio Mário Cordeiro, pai de cinco filhos e avô de cinco, autor de dezenas de livros, como O Grande Livro do Bebé, O Livro da Criança, ou O Grande Livro do Adolescente e Dormir Tranquilo.."Eu ainda acredito e tenho 63 anos", afirma, sem qualquer tipo de pudor ou vergonha. Bem pelo contrário. "Dizer que é uma estupidez acreditar, como alguns pais fazem, é que é, em si mesmo, uma enorme estupidez e uma agressão aos afetos." No seu argumento recorda o que aconteceu quando, num jornal de escola, "uma professora do primeiro ciclo foi dizer que tudo era uma aldrabice". Crianças de 6 e 9 anos eram o público-alvo. A reação não foi a melhor. "Muitas ficaram profundamente irritadas, outras desiludidas, e outras pensaram que a docente era tão parva que nem acreditava no Pai Natal", conta o pediatra..Carta ao Pai Natal não deve ser uma listazinha narcisista de eu "quero".Também não há entraves nem prazos quando o assunto é a carta ao Pai Natal. "Não há limites para o imaginário", afirma Luísa Branco Vicente. É até a criança querer, diz, por sua vez, Mário Cordeiro. Deixa, porém, um alerta sobre a tentação de se deixar levar pelo consumismo, que teima em persistir nesta altura do ano. "Há que ter cuidado para que a carta ao Pai Natal não se transforme numa lista de compras ou, pior, de exigências.".A missiva ao senhor simpático que todos os anos nos "entra em casa", seja pela televisão, pela chaminé ou por um tio que exibe as suas roupas, não tem de ser obrigatoriamente um "eu quero isto, eu quero aquilo". Mário Cordeiro dá uma sugestão do que escrever. "Até pode ser enviar um desenho e, porque não, perguntar: 'O que é que deseja que eu lhe dê no Natal?'".Até porque "o simbolismo é um acertar de agulhas entre a criança e o Pai Natal, mas nunca uma listazinha narcisista de 'quero'"..Fama à boleia da Coca-Cola.A carta, ou melhor, os desejos nela manifestos podem, por exemplo, "permitir aos pais repensar a forma como a criança está a ser capaz de interiorizar determinados valores ou, pelo contrário, a submeter-se", acrescenta a pedopsiquiatra..Uma personagem que marca a época natalícia e que se tornou mundialmente famosa depois de uma conhecida marca de refrigerantes se ter associado a ela, como explica Luísa Branco Vicente. "A imagem do Pai Natal, que, como sabemos, é inspirada numa personagem do panteão católico Santo Nicolas, que ajudava os desprotegidos e da qual nos anos 1930 a Coca-Cola se apropria, tornou-se um ícone de diferentes gerações..Apesar da sua popularidade estar ligada a uma marca, o Pai Natal não deve ser sinónimo de capitalismo. "Naturalmente que o simbolismo não se pode reduzir ao incentivo do consumismo enquanto imagem de marca, mas às características de ser uma figura que estimula o imaginário infantil, um dos mais importantes instrumentos internos no desenvolvimento do sujeito na sua conquista da descoberta do mundo interno e externo", realça a especialista..Como lidar com a frustração das crianças?.O Natal pode ser, no entanto, um momento de frustração para as crianças quando percebem que no saco do Pai Natal não há aquela prenda que tanto ambicionavam. Para a pedopsiquiatra, esta "é uma boa altura para os pais ajudarem a criança a reforçar a sua tolerância à frustração e perceber que os desejos não são sinónimos de realidades"..Não há uma solução ideal para combater esse sentimento. "Cada família encontrará certamente a forma mais adequada de ajudar a criança a lidar com essa frustração. A receita está na resposta afetiva que cada um de nós encontrar naquele momento", explica Luísa Branco Vicente..Também na história que se cria à volta do Pai Natal não há regras ou limites. Afinal, estamos a falar de um universo mágico, que mexe com a imaginação das crianças. "Cada um inventa o que quer. Se ele vive na Finlândia ou na Suécia, se o Rodolfo tem o nariz encarnado por isto ou por aquilo." O que interessa são os valores que se transmitem, reforça o pediatra.."Cada família tem os seus códigos, os seus símbolos, a maneira de comemorar o Natal", explica o pediatra, que destaca o humor, a brincadeira, a magia do faz-de-conta, a alegria, mas sobretudo os afetos neste "jogo do gato e do rato". "Mais uma vez, não há normas, depende do bom senso e dos hábitos de cada família", diz a pedopsiquiatra..Como deve contar-se a verdade?.Os especialistas ouvidos pelo DN não têm dúvida. "Não se deve" dizer às crianças que o Pai Natal não existe, que é tudo uma mentira. "Ainda que existam opiniões de que se deve mostrar à criança a realidade de uma forma objetiva, desmistificando racionalmente as fantasias, penso ser extremamente importante para o desenvolvimento de qualquer ser humano permitir e estimular a capacidade de fantasiar e de sonhar", opina a pedopsiquiatra. Luísa Branco Vicente considera que se deve "permitir à criança o prazer de ir descobrindo a sua própria realidade".."Na minha opinião, não temos de confirmar ou negar, mas sim participar e entrar no lúdico prazeroso do ser criança e poder fantasiar", considera..Certo é que, com o passar do tempo, a ilusão e a magia que giram à volta da figura do Pai Natal começam a desvanecer-se. E os adultos não têm obrigatoriamente de escolher o momento ideal para dizerem que o Pai Natal não existe, defende Mário Cordeiro.."Não se conta propriamente a verdade. Eles vão descobrindo que o tio desapareceu mesmo na altura em que o Pai Natal apareceu, ou que por acaso o Pai Natal tem os sapatos iguais ao primo que, justamente, não estava na sala. É um processo natural, a determinada altura já com alguma desconfiança saudável do tipo: 'Tu estás a gozar comigo', e nós: 'Não, que ideia! Eu era lá capaz'.".Trata-se de um "jogo de símbolos, de espelhos e de magia". "Se isto não é obra do Pai Natal, então o que é?" Deixa a pergunta no ar Mário Cordeiro.