Associação Sindical de Juízes diz que workshop de maquilhagem não é só para mulheres

Associação sindical dos juízes nega que a iniciativa, noticiada pelo DN, se destine a comemorar o Dia da Mulher, apesar de esse propósito estar referido no email enviado aos sócios. Garante que o <em>workshop</em> não se destina só a mulheres e que tem outras iniciativas preparadas para o dia que celebra a luta feminista, sem referir quais. E não considera que "predominem estereótipos de género no sistema judicial".
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"Comemorando-se o Dia Internacional da Mulher, a Direção Regional Sul - Associação Sindical dos Juízes Portugueses realizará no próximo dia 8 de março um workshop de maquilhagem. O evento decorrerá na sede da ASJP, pelas 15.00. (...) Poderá ser utilizado material de maquilhagem próprio ou fornecido durante a formação. O número de inscrições é limitado."

É este o texto do email enviado pela Direção Regional Sul da Associação Sindical de Juízes às sócias e sócios, e que o DN transcreve numa notícia, publicada esta quinta-feira. Da leitura, parecem não restar dúvidas de que a iniciativa se destina a comemorar o Dia Internacional da Mulher. Mas, de acordo com a ASJP, em respostas enviadas ao jornal na manhã de quinta-feira, trata-se de um erro de interpretação: "Esta atividade vai ter lugar no dia internacional da mulher mas não se destina a comemorar essa data. A ASJP tem previstas outras iniciativas, essas sim, evocativas do dia internacional da mulher." Que iniciativas serão essas, a associação não esclarece.

A ASJP também nega que, apesar de no cartaz que criou para a iniciativa figurarem apenas rostos femininos, esta se destine apenas a mulheres. "O "cartaz" da iniciativa tem três fotografias de mulheres. É suposto que só mulheres participem?", perguntou o DN; a associação sindical responde: "O cartaz da iniciativa foi fornecido pela instituição que vai colaborar com a ASJP. Não pedimos que tivesse mulheres ou homens. A sua pergunta encerra um estereótipo de género. Um workshop de maquilhagem não tem de se destinar exclusivamente a mulheres. Da mesma maneira, por exemplo, um outro de defesa pessoal com armas de fogo não se destina só a homens. Todas as nossas iniciativas se destinam indistintamente a juízes e juízas e suas famílias. Nesta, como em todas as outras, as inscrições estão esgotadas e vão participar mulheres e homens."

O DN, na notícia publicada sobre a iniciativa, referiu a informação prestada pelo assessor de imprensa da ASJP, de que entre os inscritos estão nove juízas e três juízes; sendo que, como a ASJP indica que a iniciativa se destina também às famílias dos juízes, não é possível saber se alguns dos inscritos não serão representados pelos seus familiares e, por exemplo, não haverá mais homens a participar -- eventualmente maridos, companheiros ou filhos de juízas ou juízes..

Por outro lado, se a ASJP não explica por que haveria alguém de achar que um workshop de defesa pessoal com armas de fogo se destinaria exclusivamente a homens, faz questão de certificar estar empenhada em desconstruir estereótipos de género - pelo menos nas respostas dadas ao jornal.

Não há estereótipos de género mas pode haver discriminação - de género

À pergunta sobre se, sendo estes estereótipos alvo de insistente combate das Nações Unidas -- que criaram o dia Internacional da Mulher em 1975 para homenagear a luta pela igualdade e o combate feminista --, a DRS da ASJP não teme que a sua iniciativa possa ser lida como um reiterar dos mesmos, a associação volta a devolver a bola, imputando ao jornal a leitura estereotipada: "Pelos vistos sim. Há ainda muito a fazer para desfazer esses equívocos. No seu caso, por exemplo, ao considerar implicitamente que o tema da iniciativa interessa apenas às mulheres, por se tratar de maquilhagem, está a reproduzir um estereótipo de género com o qual não concordamos." E sublinha-o de novo na resposta a outra pergunta: "Ao respondermos às questões que está a colocar, todas elas reveladoras de um estereótipo de género que não partilhamos - maquilhagem é para mulheres - pensamos que já estamos a contribuir para o seu esclarecimento e para desfazer um conjunto de mitos datados no tempo do passado."

Mas, apesar de reconhecer "haver muito a fazer para desfazer esses equívocos (...) e mitos datados no tempo do passado", a ASJP considera que no sistema judicial esse trabalho já estará feito.

Questionada pelo DN sobre se num momento em que há um debate aceso na sociedade portuguesa sobre a predominância desses mesmos estereótipos no sistema judicial e em particular nas decisões judiciais, não põe a DRS da ASJP a hipótese de esta iniciativa surgir como desenquadrada das preocupações da sociedade, responde: "Não consideramos que predominem estereótipos de género no sistema judicial nem organizamos iniciativas sob esse "pano de fundo".

E prossegue: "As iniciativas desta natureza que desenvolvemos nas direções regionais têm finalidades recreativas, culturais, desportivas, sociais e de solidariedade. Destinam-se apenas aos juízes e juízas e suas famílias e estão direcionadas para as atividades que são sugeridas pelos associados ou revestem interesse. Iniciativas com outros objetivos, que se destinam a ir ao encontro das preocupações da sociedade, são organizadas num plano diferente, viradas para o exterior."

Naturalmente, considerando não predominarem estereótipos de género nas decisões judiciais, a ASJP, solicitada a elencar iniciativas que tenha tomado para responder à preocupação da sociedade portuguesa com o veicular de estereótipos de género nas decisões judiciais, não responde: "As iniciativas organizadas pela ASJP viradas para a sociedade, sobre o tema que refere ou outros, são todas públicas e conhecidas."

Por coincidência, na noite desta quarta-feira, o presidente da ASJP, Manuel Soares, com quem o DN tentou desde terça-feira, sem sucesso, esclarecer o intuito e enquadramento da iniciativa escolhida pela Direção Regional Sul da ASJP, era citado numa notícia do Público, com o título "Justas ou injustas? Discriminatórias ou não? Juízes querem olhar para sentenças sobre violência doméstica".

Em causa, explica a notícia, está a criação dois grupo de trabalho: um interno, para "fazer o levantamento das decisões judiciais publicadas em Portugal sobre casos de violência doméstica e enquadrá-las, numa perspetiva europeia", e outro que integrará elementos também da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género e de uma universidade (não identificada) para analisar, "durante um ano, as decisões dos tribunais em casos de violência doméstica e crimes sexuais contra adultos, para perceber se há discriminação de género nos tribunais portugueses."

Preconceitos ridículos

O desembargador, co-autor do acórdão de 2018 que ficou conhecido como "da sedução mútua" (no qual, a propósito da violação de uma jovem, enquanto inconsciente, numa casa de banho de uma discoteca, por dois dos seus funcionários, se considera que existiu "mediana ilicitude" e "um clima de sedução mútua"), explicou, em artigo de opinião publicado no mesmo jornal e no mesmo dia, o intuito dessas iniciativas. "Vamos testar estas interrogações: há discriminação de género nas decisões dos tribunais portugueses? A resposta judicial varia em função do género do/a julgador/a? As sentenças nos casos de violência doméstica são demasiado lenientes? Veremos o que nos vão dizer as respostas. Se há e onde estão os aspetos a melhorar: nas práticas, na lei, na formação. Veremos. O que tiver se ser corrigido, corrige-se."

No texto de opinião, intitulado Dos dois lados do espelho, o juiz assume que existe na sociedade uma preocupação com a discriminação de género nas decisões judiciais: "Existe um desfasamento entre aquilo que os tribunais fazem quando tratam da violência doméstica, e aquilo que a sociedade pensa que fazem ou deviam fazer." E prossegue: "É também verdade que algumas decisões judiciais suscitaram perplexidades e foram objeto de críticas violentas. Nem sempre foram justas e informadas, mas adiante porque o que delas releva é que, no palco da justiça mediático-dramática, o guião está escrito: os tribunais protegem os homens agressores, com sentenças brandas, e discriminam as vítimas mulheres, com linguagem inapropriada e desrespeitadora dos valores constitucionais."

Considerando que essa é "uma imagem distorcida da realidade, que não corresponde, nem de perto nem de longe, à verdadeira face dos juízes", assume que se trata de "uma imagem que preocupa e deve levar a agir, porque a confiança social é um valor precário. Por isso, os juízes querem agora descobrir o que mostra o lado de cá do espelho. Se há algum problema do seu lado. E vão fazê-lo de forma decidida, séria e responsável, sem receios nem complexos."

De que maneira esta "forma decidida, séria e responsável, sem receios nem complexos" que o presidente da ASJP proclama ser a da associação se compagina com a certificação, na resposta que esta deu ao DN, de não considerar que predominem estereótipos de género no sistema judicial não é fácil perceber. A não ser que para a ASJP estereótipos de género e discriminação de género sejam assuntos separados.

Como, aparentemente, e pelo menos para o seu presidente, o machismo e a misoginia e a discriminação que deles resulta serão exclusivos dos homens e de pessoas "não instruídas": "Não me peçam para aceitar que os juízes são uns mentecaptos, insensatos, misóginos e machistas. Se considerarmos o retrato-robot de quem entra na carreira judicial - mulher, 30 anos, solteira - e as 65% de juízas mulheres (Quem são os futuros magistrados, CEJ, 2018 e PORDATA, dados de 2017); se considerarmos que os juízes são pessoas instruídas, razoáveis, educadas num quadro de valores ajustado aos nossos tempos e formadas numa escola que ensina cultura, respeito e tolerância, vemos logo que esse preconceito é ridículo."

NOTA: Em reação pública à notícia do DN, a ASJP publicou, no seu Facebook, um post no qual se lê "Todas as iniciativas organizadas pela ASJP têm como destinatários as juízas e os juízes, indistintamente. O artigo do Diário de Notícias, ao considerar implicitamente que o tema interessa apenas às juízas mulheres, por se tratar de maquilhagem, está a reproduzir um estereótipo de género antiquado e desfasado dos valores actuais, que a ASJP não partilha."

Não se percebe como a ASJP conclui que o DN considera tal coisa implicitamente, uma vez que em nenhum local do artigo tal está dito ou sequer insinuado e nele se reproduz a informação, prestada pelo assessor da ASJP, de que em 12 pessoas inscritas no workshop havia nove juízas e três juízes.

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