Calças. Calções. Gravatas. Smokings. Coletes. Fatos. Não há peça de roupa que tradicionalmente esteja associada ao género masculino e que hoje não se possa também encontrar no guarda-roupa de uma mulher. Chapéus e bonés. Macacões e blusões. Até boxers existem para mulheres. Nos últimos dois séculos, ao mesmo tempo que reivindicavam direitos iguais e se apropriavam de todas as profissões masculinas, as mulheres começaram a usar também a sua roupa. Ao início com alguma polémica. Mas, aos poucos, com cada vez maior naturalidade. E liberdade. Uma mulher pode usar o que quiser e pode, num dia, sair de casa com um vestido, salto agulha e batom vermelho nos lábios e, no dia seguinte usar fato completo com calças vincadas, camisa, gravata e mocassins. Mas para os homens essa transição é mais complicada. Ainda hoje, um homem de saias causa um sururu - pode ser aceite em certos meios mais artísticos ou vanguardistas mas é alvo de críticas em meios mais formais. Quem diz saia ou vestido diz sapatos de salto alto, maquilhagem pronunciada, determinados acessórios. Já vai havendo maior abertura, há cada vez mais exceções, mas, de forma geral, o guarda-roupa do homem permaneceu praticamente intacto e muito "masculino". Porquê? "O mundo é dominado por homens", começa por afirmar, sem qualquer dúvida Paulo Morais, historiador e investigador da moda. "A única exceção é a Creta Minoica [civilização na Grécia Antiga], que é um matriarcado. De resto, ao longo da história, nas várias sociedades, o homem tem sido dominante." Portanto, tudo o homem usa primeiro. "Até os adornos e os acessórios foram, em primeiro lugar, usados pelo homem. Estavam originalmente associados ao poder militar e, ainda hoje, os militares são dos poucos homens que usam, formalmente, adornos - condecorações e galões." Na Mesopotâmia e no Antigo Egito, as roupas eram praticamente iguais para homens e mulheres. "Na Grécia e em Roma, os chamados povos civilizados usavam o quíton, a túnica ou a toga, roupa enrolada à volta do corpo, ou seja, saias", explica Paulo Morais. "Os bárbaros - que eram nómadas e andavam a cavalo - usavam calças. Os romanos chegaram a emitir leis a proibir a utilização dos calções, que até dariam imenso jeito aos legionários e não os podiam usar porque era uma peça de roupa associada ao inimigo." Mas os bárbaros acabaram por dominar a Europa e as calças para os homens generalizaram-se. As mulheres não adotaram as calças porque não precisavam. As saias masculinas permaneceram só em alguns contextos - como os kilts na Escócia ou as saias tradicionais dos pauliteiros de Miranda. E na Igreja Católica, onde os padres continuaram a usar batinas. Fora da Europa, os homens continuaram a usar túnicas nas comunidades muçulmana e budista, por exemplo..A moda é uma questão de classe.Mesmo na Europa, até à Idade Média, as calças estavam longe de ser uma peça de roupa generalizada entre os homens que não fossem camponeses ou não pertencessem ao Exército. O mais comum era que homens e mulheres das classes mais elevadas usassem uma opalanda, uma túnica comprida, folgada e aberta à frente, ampla, um pouco mais curta para os homens..Só a partir dos séculos XIII e XIV, escreve Cristina L. Duarte na sua obra Moda e Feminismos em Portugal: O Género como Espartilho (ed. Temas e Debates), "apareceu um tipo de roupa totalmente novo que distingue claramente o sexo de quem o veste". A grande novidade, explica a investigadora, é que a nova indumentária masculina põe em evidência as pernas modeladas pelas meias-calças sob calções curtos, enquanto a feminina coloca em evidência o colo, a cintura e a curvatura das ancas, estreitando o tronco em corpetes e alongando-o com caudas..Nesta altura, a indústria do luxo, associado às classes altas, não para de desenvolver-se. Exemplo máximo disso é, claro, a opulência na corte de Luís XIV. As cabeleiras enormes, a maquilhagem exuberante, as vestes pesadas, os folhos, os cetins, as fitas, as cores - tudo era exagero. Para homens e mulheres. "Quase todos os trajes masculinos usados entre os séculos XIV e XVIII, se saíssem à rua hoje vestidos por um homem, fariam, no mínimo, rodar muitas cabeças, isto para pôr a coisa de um modo simpático", comenta o estilista José António Tenente..O homem quer-se discreto.O século XVIII marca o início daquilo a que o psicanalista inglês John Flugel chama "a grande renúncia masculina". "É uma altura em que o poder muda de mãos, a riqueza já não está na aristocracia mas nos grandes empreendedores e homens de negócios. O homem burguês está preocupado com a fábrica e com o trabalho e deixa de usar roupas mais elaboradas e adornos", explica Paulo Morais..A partir daí, diz o filósofo francês Gilles Lipovetsky, a moda vai sendo associada ao feminino sob o signo da sedução, da leveza, da graça e da fluidez. Do frívolo. Ao mesmo tempo, tais signos vão sendo gradualmente banidos do universo masculino. Os homens abandonaram as perucas e a maquilhagem, deixaram de usar cores brilhantes e tecidos vistosos, passando a usar castanho, preto e cinzento, em texturas mais discretas. O vestuário do homem torna-se mais uniforme para permitir-lhe mover-se entre os meios mais formais e de negócios. Depois de se normalizar o uso do fato, não houve muito mais grandes mudanças - e as que houve foram sobretudo para o simplificar..A mulher corta o cabelo e usa calças.Não durou muito o primado da mulher coquete. Em meados do século XIX, também o papel da mulher começa a mudar e aparecem os primeiros movimentos feministas. A mudança que começa a acontecer no vestuário da mulher nesta altura tem tanto de afirmação política e de reivindicação de um novo papel na sociedade quanto de necessidade de, para isso, usar roupa mais leve e prática. As primeiras feministas exigem o fim do espartilho e das saias volumosas e querem roupa que permita a liberdade de movimentos. Em 1851, Amelia Bloomer cria umas calças curtas e em balão, ideais para andar de bicicleta, que ficariam conhecidas como bloomers. Mas o uso generalizado das calças à homem só acontece um pouco mais tarde. "A mulher vai buscar algum do poder do homem ao vestir-se como ele", explica Paulo Morais. "Isso é muito visível não na primeira emancipação da mulher - as sufragistas ainda se vestem à mulher -, mas numa fase de real emancipação, após a Primeira Guerra Mundial, quando as mulheres começam a trabalhar e a ganhar dinheiro." Tornam-se independentes. Cortam o cabelo. "Vestir-se como homem é sinal de emancipação.".O melhor exemplo dessa emancipação é Coco Chanel, que introduziu as calças nas suas coleções para mulheres. A moda modernista faz desaparecer as formas femininas, antes tão vincadas, e bane a maioria dos ornamentos. O uso de calças, porém, não foi uma renúncia da feminilidade da mulher. Antes o acrescentar de uma nova possibilidade - que responde a questões práticas e à vontade de ter uma identidade própria: usam porque podem e porque gostam. Uma mulher pode usar calças, ou smoking como Marlene Dietrich, e continuar a ser sexy..Os homens ainda não são livres?.Num mundo dominado por homens, foram as mulheres que primeiro se libertaram das convenções relativas ao vestuário. E, desbravado esse caminho, era impossível voltar atrás. Mas isto foi algo que o homem nunca fez. Porquê? Antes de mais porque usar saias ou saltos altos ou adornos não é mais prático, logo, não é necessário..A partir dos anos 60, observa Lipovetsky, "assiste-se ao início de um processo de integração parcial dos símbolos da leveza na aparência masculina". A liberdade individual, que os hippies defendem, passa também por aí: os homens usam colares, pulseiras, brincos, cabelos compridos, cores vivas. A partir dos anos 70, os estilistas começam a propor roupas mais fluidas para o homem, que, progressivamente, reconquista o direito a preocupar-se com o seu look.Nos últimos anos, são cada vez mais os estilistas que propõem peças de roupa que não estão marcadas pelo género. "Parece-me que cada vez mais veremos essas fronteiras a serem esbatidas, pelo menos do ponto de vista criativo", diz José António Tenente. Não só as saias masculinas se tornaram comuns nas passerelles como vários homens têm desafiado as convenções e aparecido na rua usando saias. Por exemplo, os estilistas Jean-Paul Gaultier e Marc Jacobs, o futebolista David Beckham, os atores Vin Diesel e Billy Porter ou o músico Harry Styles. Ou o assessor da deputada Joacine Katar-Moreira, Rafael Esteves Martins..Mas "o fim da renúncia ainda não aconteceu", alerta Paulo Morais. "Eu sou obrigado a vestir-me formalmente." Existem, obviamente, grupos onde as regras são mais fluidas ou inexistentes: "No mundo da moda e entre os artistas, por exemplo. E os metrossexuais também são contra a renúncia. Mas é subsidiário, não é ainda muito visível", conclui. Só quando o diretor do banco deixar de usar fato e gravata é que poderemos falar de um movimento social de rejeição da roupa formal do homem, considera este especialista. As regras do vestuário são neste momento mais rígidas para eles do que para elas. "Eu acho que a dificuldade é a entrada da era do sentir: o [homem] poder ser visto como tendo sentimento, ou ser visto como selvagem, ou imaturo, ou inocente, abre demasiados campos na estrutura de produção que convém invisibilizar", comenta o ator André Teodósio. Ele, que usa saias e todos os adereços que lhe apetece, sem constrangimentos, sabe que nem toda a gente se sente assim tão livre. "É uma questão complexa. Usar saia já existe" mas só em determinados meios ou profissões. De uma maneira geral, é considerado uma extravagância. "Os estilistas propõem uma série de alterações na estética mas quase nenhum depois oferece mesmo nas lojas, na secção dita masculina, nem a própria disponibilização desses produtos nem um safe space (nem que seja pelo staff estar a usar) para te sentires à vontade, relegando assim a utilização de saias e etc. para o catwalk (a espetacularidade da diferença enquanto show)". O próximo passo na moda é, portanto, que a fluidez de género deixe de ser apenas uma tendência e se torne comum nas ruas. Esse momento parece estar cada vez mais próximo.