As memórias violentas que inspiram romances

Um Nobel desconhecido dos leitores portugueses e dois autores nacionais com novos romances, Isabel Rio Novo e Manuel Jorge Marmelo, são algumas das novidades literárias deste início de fevereiro. Um trio em que a memória sustenta a narrativa.
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Contrariamente aos géneros literários que têm estado na moda, o das distopias por exemplo, surgem nas livrarias três romances que voltam ao passado e preocupam-se com a situação humana real e não a futurista. A pobreza e a ausência de esperança, dominam em muito a memória que atravessa estes livros. É o caso de Vidas Seguintes de Abdulrazak Gurnah; Madalena de Isabel Rio Novo, e A Última Curva do Caminho de Manuel Jorge Marmelo.

O mais recente dos romances de Abdulrazak Gurnah (1948), o Prémio Nobel da Literatura de 2021, a ser publicado em Portugal (além do único editado há duas décadas, Junto ao Mar) é o primeiro dos que vai permitir aos leitores conhecer a sua obra. Até ao fim do ano serão lançados mais dois títulos além deste Vidas Seguintes (2020), mas o que está neste livro desperta a vontade de se descobrir uma narrativa que por várias razões está próxima de nós, pois trata da colonização da África Oriental Alemã e de como esta se intrometeu há pouco mais de um século entre os habitantes e etnias da atual Tanzânia.

Para um país que continua a lidar muito mal com o seu passado colonial, esta leitura pode ser uma porta aberta para entender o efeito na África Portuguesa durante a sua colonização, pelo menos na parte mais recente, a partir de meio do século XX. Essa referência à presença portuguesa surge mais do que uma vez nas páginas, referida com uma distância que não inquietará ninguém. No entanto, bastará observar o terramoto social que a colonização alemã provocou naquelas populações para se perceber o que a portuguesa poderá ter causado. Uma temática que muito pouco tem interessado aos autores nacionais, que ainda têm dificuldade em dar os primeiros passos na interpretação além das questões nacionalistas.

O romance de Abdulrazak Gurnah tem outro objetivo também, o de mostrar a colonização alemã, um lado que pouco tem sido referenciado na literatura ao contrário de outras presenças europeias e que o escritor aborda sem enviesar a sua interpretação. Quanto mais não seja, porque vai o romance em algumas dezenas de folhas e faz um dos seus personagens ingressar no exército alemão e defender essa colonização. Antes desse virar de página, enquadra o leitor no que é (sobre)viver naquela parte do mundo.

Essa descrição vai acontecendo com o jovem Khalifa que encontra junto do comerciante Biashara a possibilidade de ter um emprego. Vai recordando as atrocidades coloniais, como o esmagamento da Revolta de Abushiri, introduzindo as tropas mercenárias africanas que preenchem as fileiras alemãs da Schutztruppe, bem como a complexidade das relações sociais e de um casamento "forçado" a que é obrigado contrair. Só que quando se pensa que o caminho da narrativa está encontrado, surgem duas histórias que colocam o leitor perante uma bifurcação. Um primeiro, o relato da pobreza vivido por uma meia-irmã; um segundo, o do jovem Ilyas que se alista no exército alemão. Este será o percurso inicial do romance, aquele que se torna num retrato impressionante daquilo a que os deserdados de um meio de vida são confrontados.

Vidas Seguintes é um romance convencional, onde se conta uma história e existe alguma dilaceração por parte de quem o lê. No entanto, destaca-se dos reality shows literários que vão surgindo em torrentes imparáveis no mercado editorial. Daí que, inesperadamente, uma voz do continente africano tenha sido galardoada com o Nobel - como referia a justificação da Academia Sueca. Um mundo que está distante das literaturas tão famosas deste novo século, escritas por descendentes das imigrações africanas ou asiáticas, que a crítica transforma em ícones ao primeiro livro publicado. Não, Gurnah está enterrado até ao pescoço nessa terrível existência africana, da qual se libertou parcialmente aos 18 anos através de um exílio nos anos 1960, tornando-se um refugiado em Inglaterra sem ignorar o que deixara para trás. O drama do refugiado está em muito presente na sua obra, tema que se torna mais compreensível neste tempo em que milhares de cidadãos fogem das atrocidades políticas verificadas nesse continente, e que em Vidas Seguintes se entende perfeitamente a génese dessa partida. A ler logo que possível.

Vidas Seguintes

Abdulrazak Gurnah

Editora Cavalo de Ferro

302 páginas

Distante da temática de Vidas Seguintes, o novo romance de Isabel Rio Novo não deixa de ter alguma ligação ao de Abdulrazak Gurnah. Diferente no registo, no assunto e na construção, é, no entanto, também um romance de consequências. Principalmente, uma boa parte do romance faz o leitor regressar a um passado em que a pobreza modela as pessoas e no qual uma outra espécie de "colonialismo" reina no Portugal do passado.

Em Madalena, vencedor da edição 2016 do Prémio Literário João Gaspar Simões, a voz da autora tem um duplo sentir: o de um toque parcial de autobiografia - suspeita-se - e o do destino da mulher. A narrativa assenta na descoberta pela protagonista de uns maços de correspondência antiga de um familiar e na doença que afeta um período da sua vida. É, portanto, o relato de uma dupla dor, uma mais passageira e outra mais definitiva. Com a reprodução das cartas que o futuro marido escreve à bisavó da protagonista, a Madalena do título, vai-se acompanhando o desenrolar de um romance que avança e recua conforme o tempo vai passando. Resistente ao princípio, Madalena acaba por ceder à vontade do pretendente, e não é fácil antever o que se vai passar na vida de ambos de imediato. Esses avanços e recuos numa futura relação destrutiva são desenvolvidos a par da evolução e tratamento da doença da narradora, com a intenção de criar um paralelismo.

Há uma frase (p.53) que resume em muito este romance: "Pensavam na morte como numa dívida constante; contavam pagá-la o mais tarde possível!" É uma chave de leitura para os rituais que as duas personagens principais interpretam de modo a evitar o que as aguarda: a uma, a crise provocada por uma doença; a outra, uma crise conjugal impossível de controlar. Se a primeira temática é mais conhecida hoje, já a segunda não tem estado muito presente na literatura nacional mais recente, daí que gere interesse num desfecho - que é construído sem pressa - inesperado.

Para quem conhece a obra de Isabel Rio Novo, há em Madalena pistas para livros publicados entretanto, como o assunto da doença em A Febre das Almas Sensíveis ou a arte em Rua de Paris em Dia de Chuva. Nada que incomode, pois nada é mais importante para os leitores fiéis do que sentirem um fio condutor permanente.

Madalena

Isabel Rio Novo

Editora D.Quixote

199 páginas

Nas livrarias dia 16

Também o novo romance de Manuel Jorge Marmelo, A Última Curva do Caminho, não deixa de ter ligações ao livro de Abdulrazak Gurnah, mesmo que também em tudo diferente no que respeita à intenção temática e ao modo de a revelar. Edificado num cenário de recordações, explica-se como foi escrito a caminho do fim (p.229): "A memória é um filme caprichoso." É a história de Nicolau Coelho, um catedrático que abandona a capital e vai viver para a "vila", com a intenção de regressar às origens e aproveitar os últimos anos de vida noutra ambiência.

É assaltado pelas recordações de um percurso, desde o tempo de criança vivido em África - onde "fui feliz na fazenda onde o meu pai era capataz" - até outras décadas da sua vida. Não se sente a mais na "vila", mas está certo de que a sua presença será considerada extravagante. Também deixa de ter pressa e habitua-se aos ritmos do interior em abandono, onde várias personagens da região voltam a recompor-se na sua mente com este regresso. Há ainda uma mulher que o deixou por desinteresse na sua pessoa, há um mergulho nas redes sociais e nas notícias online para compensar o afastamento da cidade e das suas relações de uma vida. Existe também o retrato constante em fundo de como aquela sociedade para onde voltou era pobre, sem esperança e com pessoas excluídas.

Nem tudo são lembranças, pois muito do livro aborda a questão da inteligência artificial naquilo que interessa ao protagonista: uma máquina que escreva livros. Romances em que não se vingue da tal mulher que o abandonou, ele que mais não era do que "um catedrático de Estética quase quarenta anos mais velho do que ela", que se inspira nas suas piores facetas para compor novas personagens até ela não mais o poder ver. Não acontece por acaso essa situação, bem como várias outras ao longo do livro, pois, refere Nicolau, o "único compromisso de um escritor é com a literatura".

Frequentemente, pondera como seria uma máquina que escrevesse por ele romances, que tivesse na sua inteligência artificial um catálogo de milhares de livros para se guiar e lhe fosse possível redigir uma obra. Enquanto se questiona sobre o futuro de uma escrita cibernética, que não lamente o tempo perdido a compor livros que ninguém lê, reflete sobre as condições para o escritor-humano: o que ama, mente e morre muitas vezes. Enquanto luta com essas questões tecnológico/literárias contemporâneas, as memórias vão-se espalhando: o triciclo amarelo em África, o regedor que ameaçou de vingança um amante, os existencialistas da faculdade, tudo isto com descrições de lugares que hoje já não se recordam como eram e refazem um imaginário com pouco mais de meio século. Para o leitor fica uma sentença do protagonista: "Agora já não tenho necessidade de me justificar."

A Última Curva do Caminho

Manuel Jorge Marmelo

Porto Editora

262 páginas

Nas livrarias dia 10

Revisitar a História com imagens do tempo em que tudo aconteceu

Um livro em que as ilustrações rivalizam com a dimensão do texto é o grande desejo de muitos leitores preguiçosos, mas no caso do Atlas do Antigo Egipto essa dualidade é uma bênção, pois revisitar uma das sociedades mais antigas da humanidade é muito mais interessante desta forma. Aliás, este volume faz parte de uma coleção que a editora Guerra & Paz tem vindo a publicar, que já mostrou a importância deste formato nos títulos dedicados à História de África, do Império Romano, do Médio Oriente, dos EUA e do Holocausto.

Tudo começa com o rio Nilo, como não podia deixar de ser, e as infografias e as ilustrações explicam como as suas margens se tornam num santuário próprio para o florescimento de uma civilização. Fazer a gestão daquela água, organizar a distribuição da população, rever o fulgor do Alto e do Baixo Egito, que se pode rever nos papiros e inscrições espalhadas pelas paredes das construções, algumas nunca repetidas como as das pirâmides, permitem um bom relance aos milhares de anos que tornaram este espaço geográfico uma miragem até hoje.

A divisão em períodos de governação que vai desde a época de Nagada até ao Período Tardio, passando pelos impérios dos Ramséssidas, da capital cerimonial do rei Akhenaton, ou de Tebas enquanto capital de culto, até se chegar à conquista de Alexandre, são bem reconhecíveis nas imagens que se vão sucedendo e que ilustram esta história que até hoje continua a fascinar o mundo.

Claire Somaglino

Editora Guerra & Paz

176 páginas

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