Quando os investigadores da Operação Furacão irromperam pelos escritórios em Lisboa e Porto do grupo PIC/Premier encontraram documentação que revelou um gigantesco esquema de faturação fraudulenta com extensão a lugares como o Reino Unido, as Bahamas ou o estado do Nevada, nos EUA, através do recurso a empresas-veículo para colocar dinheiro em offshores, de que beneficiaram dezenas de empresas e gestores portugueses. Seis empresas do grupo Visabeira, a Soares da Costa, a Colunex ou as conservas Ramirez fizeram parte do grupo de sociedades que aderiram a este circuito de faturas falsas, um dos vários detetados com a Operação Furacão. Foram 49 as sociedades envolvidas neste inquérito, com um total de 36,5 milhões de euros a serem regularizados através da suspensão provisória de processo proposta pelo Ministério Público, em que as empresas e os gestores pagaram o prejuízo devido ao Estado e livram-se de responsabilidades criminais. Mas os responsáveis não escapam a passar como testemunhas pelo julgamento que devia começar terça-feira, dia 12, em Lisboa, mas como ainda decorre o prazo para contestação pelas defesas o tribunal agendou o arranque para o dia 1 de abril, com sessões de manhã e de tarde..No centro do esquema estão os irmãos Queiroz e Castro e o universo de empresas de consultadoria PIC/Premier. Mário é definido pelos procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) como o mentor de todo o processo, enquanto a irmã Isabel é apontada como quem coordenava os escritórios de Lisboa e Porto. A mais nova, Ana Cristina, estava em Londres, a base da Premier para criar empresas-veículo de forma a fabricar faturação. Estão acusados de 143 crimes de fraude fiscal qualificada (Mário e Ana Cristina de 49, Isabel 45) e vão começar a ser julgados mais de dez anos após o início da investigação. Além dos três promotores, há mais 21 arguidos entre empresas e gestores, todos acusados de um crime de fraude fiscal qualificada. Este é um dos principais inquéritos da Operação Furacão. O despacho de pronúncia tem mais de 1200 páginas e resulta de um processo com 37 volumes e mais de 15 mil páginas. A maioria dos factos ocorreu entre 2001 e 2005, com arguidos a defenderem que os crimes já prescreveram..São apenas 24 os arguidos em tribunal - eram 44 quando foi deduzida a acusação em 2016 - depois de o Ministério Público ter aceitado, tal como o juiz de instrução Carlos Alexandre, a suspensão provisória do processo em relação a dezenas de sociedades e seus sócios, e aos colaboradores próximos de Mário Queiroz e Castro. Houve vários que conseguiram a suspensão provisória do processo já durante o período de instrução. Entre os que vão ser julgados há ainda uma verba de 5,3 milhões de euros de impostos em causa. Só uma das empresas que é arguida, a Procalçado, foi responsável por uma fuga ao fisco de 2,1 milhões de euros, diz o MP. Outro arguido é Artur Curado, um gestor de Aveiro que terá lesado o Estado em mais de 90 mil euros e é também um dos principais arguidos do processo Cidade do Cinema em Portimão, cujo julgamento está a decorrer e envolve crimes de burla qualificada e branqueamento de capitais. Luís Marreiros é também um arguido comum a estes dois processos. Vão a julgamento por não aceitarem os valores propostos pelo MP para liquidação dos impostos. Há casos de sociedades, no universo geral das 49 empresas envolvidas, que entretanto declararam insolvência..No total, a fraude orquestrada pelos Queiroz e Castro gerou uma fuga ao fisco na ordem dos 42 milhões de euros, sem incluir juros, tendo funcionado entre 2001 e 2010, conforme se lê no despacho de pronúncia assinado pelo juiz Carlos Alexandre. No documento é dito pelo MP que, mesmo depois das buscas, a atividade prosseguiu. Mário Queiroz e Castro, de 56 anos, natural de Lisboa, criou um verdadeiro império de empresas de consultadoria e gestão de património, em vários países, mas com o Reino Unido a ser a base principal. As irmãs Isabel, 52 anos, e Ana Cristina, 49 anos, eram o seu braço direito e peças essenciais no funcionamento das múltiplas empresas criadas após a fundação, em 1989, do Premier Group of Companies. Se Mário era quem concebia e adaptava os clientes aos esquemas, as irmãs executavam. As duas pediram a suspensão provisória do processo, o que foi negado por Carlos Alexandre. Alegavam que apenas cumpriam ordens do irmão - e afastaram-se das empresas após as buscas - mas o MP diz que tinham uma atividade decisiva nas fraudes..Das faturas falsas às contas offshore.À margem dos processos judiciais, Mário Queiroz e Castro prossegue com a sua atividade de direção de empresas de consultadoria e até esteve ligado à propriedade de passes de jogadores de futebol como é o caso de Walter que passou pelo FC Porto. Segundo a Bloomberg, era uma empresa dirigida pelo português - a Pearl Design Limited , entretanto extinta - que possuía 25% do passe do avançado brasileiro. Numa busca em apontadores de registos comerciais britânicos, verifica-se que nos últimos 15 anos foi diretor de mais de 60 empresas registadas no Reino Unido. Algumas de curta duração e sempre na área da consultadoria financeira ou gestão de património imobiliário. Atualmente aparece como gestor da European Assets e da Museum & Expos International, ambas criadas em 2010. Mas a sua atividade estende-se por Espanha, África do Sul e Estados Unidos..No caso que vai a julgamento, a acusação do DCIAP, liderada pelo procurador Rosário Teixeira, diz que a pretexto da prestação da pretensa consultadoria fiscal, os esquemas dos Queiroz e Castro "incluíam montagem de estruturas societárias domiciliadas em países estrangeiros, destinadas a ser usadas por clientes residentes em Portugal, de forma a gerar vantagens fiscais para os mesmos". A PIC/Premier utilizava as sociedades criadas fora do país, no Reino Unido, sobretudo, com vista a serem meras emissoras de faturas para empresas nacionais. Esta faturação falsa era referente a serviços não prestados, ou a compras reais mas com valores empolados. Assim aumentavam de forma ilegal os custos das empresas nacionais, com a consequente diminuição dos proveitos a incluir no IRC. Depois, os fundos eram canalizados para entidades com sede em territórios offshores, dos quais eram beneficiários os sócios das empresas. E aqui ficava por declarar IRS..Foram criadas dezenas de sociedades pelo universo PIC/Premier e abertas centenas de contas bancárias em offshores, como Gibraltar, Bahamas, ilhas Turcas e Caicos, entre outros destinos, para onde seguia o dinheiro. Alguns dos circuitos eram partilhados por vários dos clientes..As empresas e os milhões em impostos.Há nomes muito conhecidos do universo empresarial português envolvidos nesta fraude. A maioria aderiu à suspensão provisória do processo com o MP a indicar o valor que deviam pagar ao Estado para evitar a ida como arguidos a julgamento. Há prazos em que vigora a suspensão (dois anos no máximo), com o faseamento dos pagamentos a ficar definido. A maioria aceitou regularizar. Contudo, não se livram de ter de ir perante o coletivo de juízes explicar como aderiram e como funcionava o circuito, já que foram indicados como prova testemunhal..A maioria dos casos de faturas falsas decorreram no período entre 2001 e 2005. Só o Grupo Visabeira tinha seis empresas envolvidas. Benetrónica, Ciclorama, Cerutil, Edivisa, Viatel e Artifel beneficiaram de vários circuitos de faturação criados pela PIC/Premier, com o dinheiro a ir parar a contas offshores. Os administradores Luís Almeida Ferreira e Pedro Reis serão testemunhas no julgamento mas não beneficiaram com a adesão a este esquema. No total, e de IRC das empresas, a Visabeira pagou 2,4 milhões de euros..A Comunicasom, de Manolo Bello, foi outra das aderentes ao circuito e pagou, em 2007, mais de 900 mil euros para regularizar a sua situação e escapar ao crime de fraude fiscal. Também a empresa de conservas Ramirez teve de liquidar quase 500 mil euros em IRC e os dois administradores, Manuel Guerreiro Ramirez e o filho, Manuel Teixeira Ramirez, serão chamados a tribunal para contar o que sabem. Entre as empresas envolvidas neste circuito constam ainda a Colunex, que pagou 330 mil euros, sendo o seu CEO, Eugénio Santos, testemunha, a TCL - Terminal de Contentores de Leixões pagou a totalidade do prejuízo causado ao Estado, no valor de 1,6 milhões de euros. A Cires, presidida por Ricardo Bayão Horta, professor catedrático que foi ministro da Indústria, pelo CDS, nos governos provisórios do final da década de 1970, pagou 81 mil euros. Também a Loja do Gato Preto foi apanhada. À Suíça foram parar mais de nove milhões de euros, transferidos para Portugal em 2007 para contas da empresa, com o casal de sócios a pagar 2,4 milhões de euros em impostos devidos a este ganho..Mário Queiroz e Castro realizava muitos seminários em hotéis para promover os seus produtos. Foi num desses encontros, no Meridien, que Rui e Paulo Rodrigues, das empresas Filtrarte e Filterqueen, conheceram os serviços da PIC e utilizaram. Aceitaram depois pagar ao Estado 1,6 milhões para regularizar a situação em IRC e IRS. Outra aderente foi a Soares da Costa que entre 2001 e 2005 gerou um prejuízo ao Estado de 8 milhões de euros, em IRC e em despesas confidenciais (mais de 4,6 milhões) cujo destino se desconhecia. A empresa e o gestor Abílio Leite aderiram também à suspensão provisória do processo..O intermediário da Deloitte.Queiroz e Castro fazia promoção dos seus serviços e tinha ainda intermediários que recrutavam clientes. Na decisão instrutória, verifica-se que quase todos os angariadores que eram arguidos beneficiaram da suspensão provisória do processo. Um deles é Paulo Cardoso, que era consultor com estatuto de sócio na Deloitte. Em 2000 aceitou, segundo o MP, apresentar os serviços da PIC/Premier aos seus clientes. Era através da Deloitte que recebia dos clientes e pagava depois à PIC. Quando os clientes pediam faturas, Cardoso reencaminhava o pedido à PIC..Diz o DCIAP que foi Paulo Cardoso quem conseguiu clientes como Soares da Costa, Filomena e Ferreira Lda, Zagope Construções e FOT Têxteis. Curiosamente são dos principais utilizadores das faturas falsas, a nível de montantes envolvidos. Será chamado como testemunha no julgamento..Furacão: mais de 180 milhões recuperados.Este inquérito é um dos vários que resultaram de certidões do inquérito inicial de 2004. Houve outros envolvendo empresas de consultadoria com semelhanças nos procedimentos e igualmente com clientes conhecidos. No último balanço da Operação Furacão, há sete meses, o DCIAP informou que, desde 2004, foram instaurados 164 inquéritos, em que mais 150 foram encerrados pela via da suspensão provisória do processo. A suspensão foi aplicada, mediante o pagamento pelos arguidos das quantias devidas, tendo o DCIAP contabilizado cerca de 180 milhões de euros recuperados. Este montante não inclui as quantias pagas diretamente pelos arguidos na Autoridade Tributária. No total foram registados 792 arguidos: 489 pessoas singulares e 303 coletivas. Houve acusação do MP em oito processos, com 160 arguidos (116 pessoas singulares e 44 coletivas)..(Notícia atualizada às 16.20 de dia 12/03/2019 com a data de novas sessões do julgamento)