As escolhas da Europa
O ainda incalculável preço físico, moral e económico da crise global causada pela expansão da pandemia de covid-19 terá sido em vão se aceitarmos as duas teses que muitos governos começam a enunciar na sua gestão da resposta: 1) esta crise é externa, como se fosse uma calamidade natural sem relação com a ação humana; 2) a vitória sobre esta crise será conseguida quando retomarmos a "normalidade", fazendo o mesmo que antes e da mesma maneira. Se nos deixarmos embarcar nesta visão cega e febril perderemos o potencial de conhecimento e de regeneração que uma crise enfrentada com os olhos abertos sempre permite.
Como talvez não suspeitássemos sermos coletivamente capazes, esta pandemia está a suscitar, na Europa e em muitos outros lugares do mundo, um sentido intransigente de proteção intergeracional e de comunidade que nos levou a que, mesmo antes da declaração do estado de emergência em muitos países, voluntariamente nos enclausurássemos em casa. Sobretudo pelos nossos pais e pelos nossos avós. Essa proteção dos mais velhos e daqueles que nos vão suceder, esse verdadeiro contrato de gerações, tem de ser suportada em escolhas acerca do futuro da Europa, que são também escolhas sobre o lugar da Europa no futuro da humanidade.
Importa ter plena consciência de que as opções no combate ao covid-19 são também opções sobre o futuro dos nossos modos de vida em conjunto. É uma ilusão supor que os problemas da emergência e os problemas do pós-emergência são dissociáveis. Os estados de exceção decretados poderão ser levantados, mas alguns subsistirão enquanto não houver vacina, e mesmo depois, daqui a não menos de um ano, ficará implícito, como horizonte de escolha adquirido. Até porque as escolhas fazem-se já e avaliam-se desde já.
E são dois os principais níveis de escolha diante de nós. O primeiro prende-se com o combate imediato à pandemia. O segundo refere-se ao que importa fazer no debate sobre modelo de reconstrução que se imporá após esta longa emergência.
A União Europeia começou mal. Ignorou os sinais de alerta da expansão do vírus na China. Perdeu tempo precioso. Descurou a preparação. Recusou a necessária coordenação para minimizar danos, e quando o vírus penetrou no coração da Europa, reinou o princípio do salve-se quem puder. A Itália, o país primeiramente atingido, foi deixada à sua sorte. Estados membros reergueram, sem aviso prévio, as suas fronteiras (tal não foi, felizmente, o caso de Portugal e de Espanha).
A Europa arrisca naufragar se não souber evitar escolhas soberanistas. Sejam aquelas irracionalmente anacrónicas, nacionalistas, populistas e arrogantes. Sejam as outras, que a partir das chancelarias insistem em recusar a emissão de dívida europeia comum para fazer face aos gigantescos custos de proteger a população tanto contra a doença como contra a privação material decorrente dos meses de interrupção da atividade económica que se perspetiva. A solidariedade europeia não é uma opção, mas sim uma necessidade se a União Europeia não quiser transformar-se numa das principais vítimas do covid-19.
Por outro lado, e diante do aparente êxito de escolhas securitárias noutros lugares, a Europa arrisca também naufragar se não souber perseverar nos valores que gosta de reivindicar como seu património histórico, ainda que amiúde os maltrate. Os valores da democracia, da liberalidade e da solidariedade parecem uma resposta fraca, que não está à altura da ameaça, e não faltam notícias das virtudes preventivas da biopolítica digital que se instalou na China. Mas é o contrário: o exercício de uma autoridade cuja legitimidade reside no assentimento dos cidadãos é a resposta corajosa, abrangente, que não desliga os meios do combate à pandemia dos meios da própria subsistência futura como uma comunidade livre e solidária, ainda que seja uma resposta mais lenta e trabalhosa.
Mais do que nunca, a democracia tem de prevalecer sobre outras formas de poder político. Devemos temer o estado policial, de cibervigilância, de big data governamentalizados, e reforçar a aposta num contrato social, de todos e para todos, de proteção e solidariedade, sentido de comunidade e primado do interesse comum, mas sem antagonismo com o respeito pelas liberdades e garantias individuais fundamentais.
O Estado social que é chamado, e bem, para nos salvar em momentos de crise não pode a seguir ser novamente delapidado e sujeito a novas pressões sobre os diversos serviços públicos. Pelo contrário, estes deverão ser reforçados tanto em recursos materiais e humanos como na amplitude da cobertura e na eficácia de atuação. Nessa linha, não podemos silenciar a necessidade de dar um apoio humanitário adequado a todos aqueles refugiados que se encontram, nestes dias, numa desamparada agonia na margem de várias fronteiras europeias.
Vivemos um momento histórico, e se a ameaça do covid-19 convoca a história da Europa, tem de ser para que rejeitemos hoje escolhas anacrónicas demasiado presentes e perseveremos em escolhas passadas demasiado esquecidas.
Mas rejeitar e perseverar não basta. É preciso ainda entrar no futuro e na sua novidade com os pés bem firmes no chão. Primeiro dentro do barco comum que é a União Europeia, para a aprofundar. Não podemos continuar a aceitar a ideia de que as políticas sociais devem ficar circunscritas apenas à esfera dos Estados nacionais, como se uma união monetária pudesse sobreviver sem a existência de um orçamento comum em que parte dessas despesas sejam partilhadas.
Entrar no futuro, numa Europa com futuro, com algo a dar ao futuro, significa escolher políticas integradas, nacionais e europeias, de proteção do trabalho com direitos, de proteção do rendimento, de redução das desigualdades entre cidadãos e entre países. Em suma, uma governação social, com uma provisão orçamental adequada, capaz de complementar os orçamentos nacionais.
E tem de significar uma governação económica que encontre um compromisso firme não só na necessária mutualização da dívida, mas também numa decidida superação da ameaça à confiança no projeto europeu representada pela permanência e proteção de paraísos fiscais, que enfraquecem os orçamentos nacionais, e de uma competição fiscal entre Estados, que ajuda a perpetuar esses mecanismos de fuga aos impostos por parte dos mais ricos, aprofundando ainda mais a desigualdades sociais e económicas.
E, finalmente, as escolhas verdadeiramente difíceis, aquelas que implicam que o regresso à normalidade não se confunda com a tendência para regressar ao mesmo estado de coisas que nos conduziram até aqui. Escolhas a fazer não enquanto europeus, mas na condição de tripulantes, com todos os outros povos e seres humanos, do barco verdadeiramente único e ameaçado de naufrágio que é o planeta.
Importa não esquecer que a pandemia tem como principal origem, à semelhança do que já ocorrera em 2003, 2009 e 2012, em vírus zoonóticos, transmitidos de animais para os humanos. Tal não ocorreria sem a intrusão humana vertiginosa e descontrolada sobre os habitats naturais, incluindo os de espécies selvagens em vias de extinção.
É necessária uma viragem, mais do que económica, também existencial. As alterações climáticas são a face mais visível da crise global do ambiente. O mesmo é dizer, da degradação e da entropia dos ecossistemas e dos bens comuns do sistema Terra, que são a condição de possibilidade da sobrevivência da vida humana em condições de dignidade.
Esse inédito desafio, que dá o "fim da história", como horizonte catastrófico, é fruto da mesma intolerância à perturbação que caracteriza o modelo económico neoliberal global em que vivemos, que se transformou na mais poderosa e radical expressão prática do niilismo. Se algo ameaça abalá-lo, logo este sistema promete ameaças tão ou mais violentas do que as da pandemia, mal esta esteja contida. É preciso perceber e denunciar que só é assim porque este é um modelo assente numa conceção distópica de crescimento exponencial, em guerra aberta com as leis da natureza e os limites físicos da Terra. Um crescimento que sacrifica no altar do capital, transformado num deus cego e maligno, a diversidade da vida, os equilíbrios ambientais, condenando o futuro da humanidade.
A crise pandémica do covid-19 abre-nos a janela de tarefas tão urgentes como titânicas. Durante décadas tolerámos que o sonambulismo se substituísse à exigência de escutarmos os sinais de perigo e as ameaças que a euforia da dominação colocou entre nós e o futuro. A margem de erro é agora nula. A escolha é entre as dores de um novo parto da civilização ou a imperdoável aceitação do suicídio da própria humanidade. A Europa tem de comparecer, unida e solidária, perante esta convocatória irrecusável e inadiável.