A autora que mais livros vendeu nesta década treinou muitas das posições sexuais com o marido, pelo menos foi o que E.L. James confessou quando lhe perguntaram como sabia de tantas formas de fazer sexo. E sexo pouco habitual, senão inédito, entre a maioria dos casais: BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo). A questão após a trilogia As Cinquenta Sombras de Grey não era mais quem ficava por baixo ou por cima, mas replicar as verdadeiras manobras sexuais que a autora descrevia a cada intervalo de três páginas, num sem-fim de situações sexuais a que o par Anastasia Steele e Christian Grey se dedicava e deixava os leitores tensos..E.L. James confirmou em entrevista ao DN que essa aprendizagem era feita em casa e que o marido já protestava de tanta experiência em busca de uma nova posição para o casal Grey usar na trilogia, nada que os milhões que a mulher ganhava com os livros não pudessem compensar. Bastava ver o que acontecia nas livrarias, onde as pilhas de Grey iam sendo desbastadas e repostas como muita intensidade todos os dias. Daí que, se a contabilidade oficial dos livros mais vendidos não falha, foi a autora E.L. James quem mais seduziu os leitores de todo o mundo na década que agora está a terminar - 2010 e 2019 - com o seu bestseller sadomasoquista softAs Cinquenta Sombras de Grey ao vender mais de cem milhões de exemplares..Nessa entrevista, E.L. James não evitava tema algum e vendia a sua receita de sucesso como se tivesse escrito um clássico. Ainda falta tempo para se saber se será um relato pleno de erotismo para ficar na história da literatura como o de Sade ou outro dos grandes autores deste género, mas ninguém acredita que essas quase dual mil páginas de ginástica sexual, dominação (in)voluntária e ingenuidade de uma jovem que se inicia na vida sexual, ultrapassem o poder de um orgasmo editorial múltiplo - neste caso três - que apanhou os leitores desta década sequiosos de algum picante que a sida tinha impedido após a revolução sexual que se seguiu após a descoberta da pílula contracetiva..A década de 2010-2019 foi em muito diferente das anteriores. Na de 1960, plena de ideais e de vontade de mudança, era o romance Não Matem a Cotovia, de Harper Lee, a liderar as preferências. Na de 1970, foi a fantasia de J.R.R. Tolkien e o suspense de Stephen King. Na de 1980, a surpresa foi Margaret Atwood e Alice Walker, enquanto na de 1990 a saga Harry Potter despontou e os três primeiros volumes chegaram ao topo das tabelas. Em 2000, J.K. Rowling continuou na frente..No ano em que se deu o lançamento de As Cinquenta Sombras de Grey, foram logo comprados vários milhões de exemplares só nos Estados Unidos, mais de 15 milhões até agora, um número que foi continuando alto nos anos seguintes, pois nunca faltaram mulheres e homens que quisessem seguir as sugestões eróticas de uma paixão fotonovelesca entre Anastasia e Christian Grey. Para aproveitar o balanço, saiu ainda nesse mesmo ano o segundo volume da trilogia - As Cinquenta Sombras Mais Negras - que atingiu até ao momento números superiores a dez milhões, e um ano depois o fecho da saga -As Cinquenta Sombras Livre -, que ultrapassaram os nove milhões de livros vendidos..Mas o número cem milhões não representa em nada o número real de leitores, já que cada exemplar saído das livrarias era lido e comentado por meia dúzia de mulheres. Ou seja, será um dos livros mais lidos de sempre numa única década. Fenómeno a que Portugal não escapou, atingindo vendas superiores a mais de meio milhão de exemplares. Aliás, quando E.L. James esteve em Portugal, a editora Lua de Papel imprimiu mais 120 mil exemplares do primeiro volume da trilogia, 70 mil de AsCinquenta Sombras de Grey Mais Negras e 60 mil de AsCinquenta Sombras de Grey - Livre..Curiosamente, E.L. James lidera nos três primeiros lugares dos bestsellers da década americana, uma temporada em que foram quase sempre autoras a liderar as vendas, com a exceção de John Green e de Stieg Larsson. Os Hunger Games, de Suzanne Collins, empatou nos 8,7 milhões de exemplares com Kathryn Stockett, sendo perseguidas pelos 8,2 milhões de A Rapariga do Comboio, de Paula Hawkins, e os 8,1 milhões de Em Parte Incerta, de Gillian Flynn. Fecha a lista americana a autora de Divergente, Veronica Roth, com 6,6 milhões de exemplares..E.L. James, além de ocupar durante cem semanas o top do The New York Times, viu a sua trilogia tornar-se famosa em todo o mundo. Em Portugal, os três livros ultrapassaram qualquer outro título de sucesso ao nível das vendas. No Reino Unido, conseguiu mais de 27 milhões de leitores, em países como a Alemanha, França, Espanha e Brasil atingiu sempre vendas superiores a um milhão. Tendo em conta que E.L. James foi traduzida em mais de 50 países - Mongólia, Coreia, Sérvia, Tailândia, Lituânia, entre outros -, é só fazer as contas, até chegar aos cem milhões em todo o mundo..Se a reação dos leitores foi unânime na sua vontade de descobrir como fazer sexo menos tradicional, pois é disso que tratam os livros, nem sempre a crítica reagiu bem - muitos críticos preferiram passar ao lado do fenómeno. A principal contestação era o fraco argumento, as situações de sexo tão constantes como repetidas que deixavam exaustos os leitores ou dois protagonistas inverosímeis: uma jovem virgem de classe média que aguardava por um sadomasoquista rico e compreensivo. Numa palavra, as As Cinquenta Sombras de Grey mais não foi do que o abrir de uma porta para desejos e práticas sexuais que a maioria das mulheres não revelavam aos namorados ou maridos..As Cinquenta Sombras de Grey surpreenderam - e venderam mil milhões até agora - porque traziam ao de cima a normalização da BDSM, nem que fosse muito soft, um filão que a literatura, mesmo a erótica mais clássica, nunca expusera de uma forma tão clara e que passava a ser de acesso generalizado. Christian queria e Anastasia deixava. Se Christian, com um passado traumático, ia longe de mais, Anastasia conseguia que ele aliviasse a dor (ou o prazer) e continuava a sessão de sexo. Essa onda de erotismo de submissão gerou até duas situações: uma divisão entre as feministas e um novo filão editorial..Além dos livros, também os filmes seduziram os portugueses, fazendo que a estreia da primeira adaptação em 2014 levasse a um aumento das idas ao cinema e das receitas em cerca de 20%. As Cinquenta Sombras de Grey foram responsáveis por 490 mil espectadores - o cenário do apartamento de Christian continha mais de 30 peças de mobiliário made in Portugal. E para quem não quisesse ver Dakota Johnson e Jamie Dornan nus e em práticas de BDSM, havia o filme em que Christian Grey e Anatasia Steele eram interpretados por bonecos de Lego..A receita de E.L. James foi repetida numa nova trilogia, em que a voz era a de Christian Grey. Apesar de vender mais milhões do que a maioria dos livros, nunca mais superou a concorrência.