Caem aparelhos de ar condicionado dos prédios de Luanda. Não é a nova Luanda, é a Luanda de sempre. Ruas da artéria Mutamba onde se caminha ao som de Aline Frazão e em que se sente uma dolência que é própria de uma urbanidade muito própria. Ar Condicionado é um filme de ambientes e de sonhos - não é por acaso que temos uma empregada doméstica e um guarda de um prédio envolvidos numa peripécia que mete uma máquina de recuperar memórias. O fantástico passa por esta visão, uma visão ao sabor do irreal, do onírico. Entra-se no filme como uma viagem pelas memórias vivas de uma cidade e sai-se despertado por uma utopia que impele à reflexão sobre a luta das classes sociais..YouTubeyoutubeEKftYjHFuHk.No Porto/Post/Doc está programado ao lado de filmes que podem e estão dentro da tal vigência do novo real, mas essa é a provocação de um festival que arrisca. Ar Condicionado, antes da sua estreia em Portugal, teve antestreia neste ano no prestigiado Festival de Roterdão, acabando com estampa de autêntico campeão de simpatia. A partir daí, viajou, mesmo em ano de pandemia, para um sem-número de outros festivais. Uma primeira obra de um jovem de Luanda chamado Fradique e feito em espírito coletivo pelo bando cinematográfico Geração 80, uma produtora que parece apostada em fazer arte cinematográfica da boa num país sem tradição dela..Angola desperta então para um cinema de arte e de pensamento poético. Fradique, a partir da sua Luanda, explica o seu estado de alma: "Ver o Ar Condicionado e os seus personagens viajar pelo mundo fora neste ano distópico de 2020 é realmente uma alegria e um privilégio muito grande. É emocionante ler como as pessoas no Brasil empatizam com o Matacedo e a Zezinha ou que na China a baixa da cidade de Luanda é comparada com Sham Shui Po em Hong Kong. Incrível mesmo foi o Kota Mino ser visto como uma espécie de feiticeiro na China e ao mesmo tempo recebermos um prémio no Imagine Science Film Festival, em Nova Iorque.".Se este filme é uma espécie de game changer do cinema angolano, é também um sopro de esperança para o que aí vem através da Geração 80. Haverá sempre um antes e um depois de Ar Condicionado, mesmo com o Instituto do Cinema praticamente extinto: "Foi por causa do cinema que começámos a Geração 80. Foi o mesmo cinema que nos deu a conhecer todos os cantos do país e nos possibilitou registar os testemunhos e as memórias de centenas de pessoas, o que depois resultou no documentário Independência. Foi o cinema que nos ensinou e continua a ensinar que trabalhar em coletivo importa, trabalhar nos filmes uns dos outros é uma maneira de estar no cinema que nos é muito gratificante." E agora a Geração 80 não para. Estão na luta e a produzir outra longa, a estreia de Ery Claver, o diretor de fotografia deste filme. Mas o mais importante é perceber que a linguagem de Ar Condicionado não se estaciona à frente de referências. Nada disso, tem uma luz própria, um imaginário que é novíssimo e tão angolano.."É um imaginário que não foge à realidade de Luanda e do nosso país, onde o cliché de "o dia-a-dia supera a ficção" foi inventado. Os personagens, as localizações e o quotidiano deste filme são tão reais quanto o ar que respiramos", salienta o realizador. Claro que, como produtora independente, a Geração 80 faz publicidade e serviços corporate, mas a sua missão é o cinema, conforme Fradique sugere: "Procuro filmes sem medo de fazer as perguntas importantes. Vivemos num país de desigualdades sociais enormes, onde infelizmente existe uma grande ausência e uma desresponsabilização do Estado em todas as áreas. Vejo a cultura e o cinema não só como uma forma de percebermos melhor o outro mas também como uma memória mecânica, construída para que não esqueçamos o passado, mas também para decifrar o presente em que vivemos.".Esse gesto era bom ser partilhado em Portugal após o Porto/Post/Doc através de uma distribuição comercial. É certo que, com uma boa campanha e um lançamento digno, Ar Condicionado poderia fazer uma carreira mais do que razoável..Ar Condicionado, dia 26, sessão às 16.00 no Cinema Passos Manuel