"Ao contrário do que se possa pensar, quem escreveu a carta está centrado no bem-estar do bebé"

Se estiver bem de saúde, em poucos dias a criança abandonada à porta da Igreja Evangélica do Cacém deverá estar na casa de uma família de acolhimento.
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Quem o abandonou procurou a proximidade de um lugar de culto. Talvez porque tenha achado que estaria protegido pela ação divina, talvez porque ali mesmo quis pedir perdão a Deus por deixar uma criança com menos de 1 mês entregue à sua sorte, talvez porque tenha associado a caridade à igreja e pensado que alguém iria tratar bem do menino, com amor, mas sobretudo com todas as condições que não tem. Talvez.

Certo é que abandonar uma criança, ainda para mais com menos de 1 mês, na calada da noite, é expô-la ao risco, ao perigo. E pode configurar crime. Mas não será também um grito de ajuda? "Este comportamento configura maltrato emocional e abandono, podendo estar associado a um pedido de ajuda. No entanto, é importante salientar que o bebé foi deixado num local onde poderia ser acolhido e protegido, e não num local onde seria mais provável morrer, o que sugere motivações diferentes por parte de quem abandona", diz a psicóloga Rute Agulhas.

Eram 22.30 de terça-feira quando o alerta foi dado para os bombeiros de Agualva-Cacém, no concelho de Sintra. Dentro de uma alcofa, bem aconchegado, à porta da fundação da Igreja Evangélica Baptista do Cacém estava um bebé, um menino. Com ele tinha um bilhete escrito à mão, em letras maiúsculas, na qual se explicava a razão do abandono.

O discurso é na primeira pessoa, como se tivesse sido a própria criança a escrevê-lo. "A minha mãe me ama muito, a ponto de me entregar para outra família com melhores condições me adotarem. Por favor, não julguem a minha mãe que ela só está a evitar que sofra junto com ela, estamos a passar muitas dificuldades", lê-se na carta divulgada em vídeo pelo Correio da Manhã e onde se fica também a saber que a criança tem 21 dias.

Em que condições psicológicas estará uma mãe que decide abandonar o filho desta maneira? Rute Agulhas diz que, tendo o bebé 21 dias de vida, pode-se estar perante uma situação de depressão pós-parto, suscetível de ocorrer ainda durante a gravidez ou nas semanas ou nos meses após o parto. "Este tipo de depressão pode associar-se a sintomas psicóticos como delírios e alucinações (por exemplo, vozes de comando que dão instruções sobre o que a mulher deve fazer e que podem levar a um comportamento deste género)."

"A mãe sente uma tristeza constante, medo de ficar sozinha, incapacidade para cuidar de si própria e do bebé, sentimentos de culpa, desânimo e cansaço extremo, sobretudo porque são acompanhados de insónias, falta de apetite e pouco ou nenhum interesse pelo filho, o que pode pôr em causa o processo de vinculação. Para além desta hipótese, pode-se suscitar outras, ainda que em abstrato. Pode ser uma mulher com outro tipo de doença mental ou mesmo uma doença física terminal. Muito provavelmente, sente-se sozinha e sem apoio social, sendo certo que a inexistência de uma rede de apoio consistente pode ser um importante fator de risco", acrescenta.

Citaçãocitacao"Ao escrever na pessoa do bebé, está de alguma forma a distanciar-se, e isso pode ser facilitador do ponto de vista emocional."

Quem deixou o bebé - e tudo leva a crer que tenha sido a mãe, embora só o desenrolar das investigações o possa confirmar - "é alguém que, contrariamente ao que se possa pensar, está centrado no bem-estar do bebé, entendendo este gesto como altruísta, na medida em que permitirá ao seu filho ser mais cuidado, protegido e amado", refere ainda a psicóloga. Rute Agulhas entende o facto de a carta estar escrita em nome do menino como uma dificuldade da mãe em falar na primeira pessoa, "eu, mãe". "Ao escrever na pessoa do bebé, está de alguma forma a distanciar-se, e isso pode ser facilitador do ponto de vista emocional. Pode também ser uma forma de, mais facilmente, chegar ao outro, ativando comportamentos de ajuda."

O facto de o bebé ter sido abandonado à porta de uma igreja não deixa de remeter para tempos antigos ou até mesmo para a roda dos enjeitados - os pais e mães deixavam os filhos em frente aos templos, ou na roda, de forma anónima, para que fossem cuidados. "É provável que a escolha do local se relacione com o facto de este ser associado à caridade e ao assistencialismo, ou seja, a um conjunto de pessoas que irão, seguramente, cuidar, proteger e amar", considera Rute Agulhas.

Alguns países europeus, como a Itália, a Alemanha e a Polónia - mas também o Japão -, reativaram o conceito da roda, uma prática da Idade de Média que tem sido rejeitada no nosso país. O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), Edmundo Martinho, é uma das vozes que se opõem. "Portugal tem respostas adequadas. A lei permite que a mãe não sofra qualquer consequência por querer entregar a criança. Recuperar a 'roda dos expostos' seria legitimar o abandono", disse quando a Itália recuperou a prática.

O Comité dos Direitos da Crianças das Nações Unidas também rejeitou e mostrou preocupação com o ressurgimento deste conceito na Europa.

E uma das soluções para quem não quer ficar com os seus filhos é dizer logo na maternidade que pretende dar a criança para adoção. "Não há lugar ao abandono quando se manifesta consentimento para adoção", explica Isabel Pastor. A diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Familiar da SCML recusa falar em concreto do bebé encontrado numa alcofa frente à Igreja Evangélica do Cacém, mas explica os procedimentos que se seguem quando é abandonada uma criança. E mesmo falando em abstrato, é possível vislumbrar o futuro próximo desta criança.

Em primeiro lugar, é preciso assegurar de imediato a proteção de alguém que está em risco, indefesa e não tem autonomia para as necessidades mais básicas. É necessário garantir o seu estado de saúde - no caso concreto deste bebé, os bombeiros de Agualva-Cacém afirmaram que estava bem tratado, aconchegado e com boa temperatura corporal, mas foi reencaminhado para o hospital Amadora-Sintra.

Pela lei, explica Isabel Pastor, as crianças até aos 6 anos devem ser preferencialmente encaminhadas para famílias de acolhimento. A solução de acolhimento é decretada pelo tribunal ou pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco. E o processo é bastante rápido, pode demorar dias, menos de uma semana até.

A celeridade explica-se pelo facto de a SCML já dispor de uma rede de mais de 20 famílias de acolhimento voluntárias. "São famílias selecionadas e preparadas para acolher as crianças a qualquer dia e a qualquer hora. Se tudo correr bem, até ao final do ano poderemos ter cerca de 40 famílias", diz Isabel Pastor, sublinhando um critério muito importante: o facto de estas famílias não poderem ser candidatas à adoção.

O sistema de promoção e proteção desenhará um projeto de futuro para estas crianças, que poderão vir a ser adotadas ou, em alguns casos, se houver condições e garantias, regressar à família biológica. Mas o que importa sempre é garantir os seus direitos e que possam crescer "num ambiente harmonioso, afetivo e isento de perigos".

Paralelamente, no caso de uma criança abandonada, decorrerá uma investigação judicial. Desconhecem-se os contornos do caso do bebé do Cacém, mas o Ministério Público já abriu um inquérito. Quem o abandonou incorre no crime de exposição ou abandono (artigo 138.º do Código Penal), que prevê penas de prisão até cinco anos para quem puser em perigo a vida de outra pessoa, sujeitando-a a uma situação em que não possa defender-se ou abandonando-a sem defesa quando lhe cabia o dever de guardar, vigiar ou assistir: "Se o facto for praticado por ascendente ou descendente, adotante ou adotado da vítima, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos."

E é aqui que este caso poderá ser distinto do do recém-nascido abandonado num ecoponto pela mãe, uma jovem sem-abrigo, no final do ano passado. Sara, de 22 anos, foi acusada de homicídio qualificado na forma tentada pelo Ministério Público. Na semana passada negou em tribunal que quisesse matar o bebé e disse que o deixou no ecoponto para que fosse encontrado.

Também a psicóloga Rute Agulhas considera que, apesar de poderem existir algumas questões em comum, são casos muito diferentes, com motivações diferentes. "Não apenas pelo momento em que este comportamento ocorreu (imediatamente após o parto no caso anterior e 21 dias depois, no caso atual), mas também o local onde o bebé foi deixado. Enquanto no caso de Salvador o comportamento materno sugeria um desejo imediato de eliminar aquele bebé, nesta situação as motivações parecem ser outras - garantir a sua proteção e bem-estar, ainda que por terceiros."

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