Este tema de um divórcio conflituoso é, à partida, poderoso em termos dramáticos, mas também é algo que pode assustar as pessoas para uma ida ao cinema, mesmo quando Kramer vs Kramer ainda está na memória e Marriage Story tenha surgido há pouco... Não sei como as pessoas vão reagir, será que se irão rever? O certo é que se trata de um tema que toca a todos - cada vez há mais divórcios. É uma questão que afeta os casais, os filhos e os pais. A situação do litígio com a guarda dos filhos é extremamente atual e toca muita gente. Em relação aos filmes de que falou, gostei mais do Kramer vs Kramer, apesar de ser sobre uma outra época e ser muito centrado nos direitos da mulher, abordando um certo hábito de os homens não se ocuparem das tarefas domésticas..Fica a ideia de que quis também fazer um filme sobre a atual sociedade portuguesa. Sim. Aquilo que eu vivi, vi na minha família, filhos e netos, bem como amigos, não é reproduzido no filme, mas há divórcios em todas as famílias portuguesas. Dá-se a coincidência extraordinária de os protagonistas, a Ana Lacerda e o José Fidalgo, serem pais divorciados. Mais não digo....Isso terá tocado os atores? Diria antes que ajudou. Porém, não os escolhi a pensar nisso. Nos atores a separação e o divórcio serão eventualmente mais fáceis..Mais fáceis? Enfim, é uma profissão com muito contacto entre os atores e é mais fácil voltarem a apaixonar-se. Aliás, a própria vida de ator é muito complicada. Os atores mudam muito e, por outro lado, há uma tendência para se casarem entre si e torna-se depois muito difícil tomarem conta dos filhos. Mas os casos mais estáveis que conheço são os que se casaram com alguém que não é da área..No filme fiquei com a sensação de que o pai tem um tratamento mais simpático do que aquela mãe muito disciplinadora... Não tomo partido de nenhum! Mas, de facto, o filme está mais com o homem. Ele é mais acompanhado porque é obrigado a adaptar-se a uma nova situação, não é ele quem sai de casa e tem de criar situações para receber os filhos. Trata-se de um homem que se reinventa. É natural que esteja mais com ele..Não tem a ver com o facto de o António-Pedro ser homem? Nada a ver, nos meus filmes as personagens femininas são muito mais interessantes. Atraem-me muito as atrizes, mesmo quando compõem mulheres mais racionais e secas. É como se preservassem uma - não gostaria de dizer, mas... uma fragilidade. Uma mulher tem as emoções mais à flor da pele, é mais fácil uma mulher chorar, enquanto os homens são mais contidos, embora acredite que os homens são mais românticos..Neste filme parece-me que é audaz na opção de estender o tempo dos diálogos. Quase que é radical na abordagem de recusar cortes ou contracampos. É o tempo do cinema contra o tempo da televisão? Ou seja, o tempo mais próximo do tempo da vida real? Claro, mas o cinema é a simulação da vida real. Em Km 224, em algumas cenas, quis dar o tempo sem o encurtar..Citaçãocitacao"Cada um tinha as suas razões no desentendimento, mas reconheço que ele [Paulo Branco]é um personagem. Tem uma carreira, mesmo admitindo que não gosto de todos os filmes - se calhar, nem ele. Depois do Cunha Telles, é o único produtor que houve em Portugal. E aquilo que passámos juntos foi tão forte que agora aconteceu uma reaproximação espontânea.".Recusou o abreviamento. Sim, são cenas em que a duração é importante, sobretudo quando há desabafos e confidências, todas elas à noite. À noite porquê? Porque à noite temos mais tempo e menos barulho. E as confidências muitas vezes são dolorosas, custa mais, acarreta silêncios. Os silêncios têm de ser respeitados. Por exemplo, odeio o Fome, de Steve McQueen, mas há aquela cena da confissão do Fassbender ao padre em plano fixo; dura 15 minutos e é brutal! O importante é as pessoas entrarem nesse jogo e claro que depende sempre, muitas vezes pode ser uma chatice. Tem de ser bem feito e a matéria ser do nosso interesse e agarrar-nos..E sabe que se está a pôr a jeito quando escolhe atores que fazem quase só telenovela como protagonistas, não sabe? Isso é muito injusto. Maioritariamente, a crítica acha que uma mulher bonita e um homem muito bonito não podem ser bons atores. Acham também que a comédia e os comediantes não são um género sério. Creio que isso das novelas é um preconceito ligado a isso, embora eu também ache que a novela é a ficção dos pobres, um recurso da América Latina para fazer ficção na sua própria língua. E cá em Portugal é já uma indústria, tenho muito respeito pelas pessoas que trabalham nas novelas, mesmo considerando que não vejo nem acompanho, a não ser no começo - penso que vi a Vila Faia. No meu caso, agora só passo por lá para ver os atores. Todos os atores em Portugal, com a exceção de um ou dois que se recusam, acabaram por passar por lá. No caso do José Fidalgo, já estive anteriormente para trabalhar com ele, achei sempre que tinha algo que deveria ser aproveitado, tal como a Ana Varela. Mas estou a marimbar-me que pensem que fui buscar os popularuchos..Nos últimos tempos os seus filmes deixaram de ir aos festivais internacionais. Será que o seu cinema ficou apenas mais percetível dentro de uma lógica local? Vamos lá ver: os meus filmes antes iam aos festivais, mas depois comecei a trabalhar com o produtor Tino Navarro, com quem me dei bem durante cinco filmes. Mas a verdade é que em termos de promoção dos filmes ele era completamente incapaz. Era um produtor que não ia aos festivais..Mas os filmes não eram submetidos aos festivais? Eram submetidos, mas de uma maneira fria, tanto quanto sei. O lobby nos festivais não é uma coisa negativa, faz parte..Esta mudança para a produtora de Paulo Branco está a deixar muitos espantados. As pessoas tinham a ideia da vossa inimizade e agora estão de novo juntos. Eu e o Paulo fomos muito, muito amigos. Tenho mais 10 anos que ele e fui eu quem o trouxe para o cinema. O Paulo procurou-me depois de ser um brilhante aluno do Técnico. Não queria seguir o curso, queria fazer cinema, e tornou-se meu assistente em Perdido por Cem. Por sugestão do Cunha Telles, atraí-o para a produção depois de ter ido para Paris, onde era exibidor e distribuidor. A história era muito interessante, porque eu precisava de um produtor para acabar o Oxalá. As coisas correram tão bem que criámos uma produtora e produzimos outros filmes. Quando chegou O Lugar do Morto desentendemo-nos e estivemos de costas voltadas muitos anos..Como aconteceu essa reaproximação? Cada um tinha as suas razões no desentendimento, mas reconheço que ele é um personagem. Tem uma carreira, mesmo admitindo que não gosto de todos os filmes - se calhar, nem ele. Depois do Cunha Telles, é o único produtor que houve em Portugal. E aquilo que passámos juntos foi tão forte que agora aconteceu uma reaproximação espontânea. A partir do momento em que entrei em rutura com a MGN do Tino, ele fez-me uma proposta e eu não gosto de ter rancores. Com Km 224 tudo correu muitíssimo bem, tanto assim que já temos um outro filme preparado, mesmo dependendo dos critérios dos júris do ICA, aberração que há em Portugal..Se receber uma proposta para fazer um filme para a Netflix e que não estreie em sala, aceita? Não, não me interessa. O que julgo saber fazer é filmes para as salas e é nas salas que temos a reação do público. Vamos ver é se agora as pessoas voltam às salas. As pessoas e não os "espetadores"..Patrícia Vasconcelos fez o casting de Km 224 e descobriu duas crianças carismáticas que são a alma do filme. A diretora de casting e filha de António-Pedro Vasconcelos conta o processo. Há muitos méritos em Km 224, do facto de ter uma qualidade afetiva tocante e um respeito pungente pelas contradições das personagens à forma como valentemente finta a possível tendência a se confundir com um telefilme, mas a maior surpresa é a forma como António-Pedro Vasconcelos filma um mundo infantil das duas crianças que são vítimas de uma separação em guerra dos seus pais..Foi Patrícia Vasconcelos quem descobriu os meninos-prodígio do filme, Gonçalo "Guga" Menino (sete anos) e Sebastião Matias (oito anos), a prova de que não é apenas em Hollywood que se encontram interpretações infantis credíveis.. "Todo este processo foi por etapas. A primeira delas foi fazer uma seleção de 300 crianças, que depois se passam a provas com diálogo. Primeiro texto simples e sucessivamente "complicando" um pouco. É desse modo que consigo ver como se aguentam, sobretudo porque as crianças, depois nas filmagens, têm de ter uma grande endurance. Tal como foi o menino de Jaime, é necessário perceber que as crianças tenham vontade de jogar e prazer. Isso e compreender que têm de repetir as cenas muitas vezes. Nessa fase é ainda importante eu estar atenta se eles têm ou não capacidade de improviso. Mais tarde, começo a introduzir os atores com quem contracenam..Nestas etapas todas é importante também perceber se a criança não começa a ficar cansada, e é também aí que vemos a disponibilidade dos pais. Depois, com os meninos escolhidos, segue a fase da sua preparação, e aqui tínhamos o caso do Guga, que ainda não sabia ler. Nesses casos preocupo-me sempre em arranjar um coach, um preparador. Enfim, estamos a falar de um processo que começou em outubro de 2020 e com uma rodagem a iniciar-se no verão seguinte ", conta Patrícia, que não esquece o mérito do pai: "Ele deu-se muito bem com os meninos. O António-Pedro Vasconcelos tem uma virtude com as crianças: disponibilidade e uma paciência enorme.".dnot@dn.pt