Ano da Ferrovia: Portugal não pode perder o comboio da Europa
Desde que Portugal entrou na União Europeia, encolher foi a palavra de ordem no caminho-de-ferro. Nos últimos 45 anos, fecharam mais de mil quilómetros de linhas ferroviárias, três capitais de distrito ficaram sem acesso ao comboio e o interior ficou mais longe dos carris. Com o país na presidência do conselho da UE, arranca hoje o ano europeu dedicado ao transporte ferroviário. É um comboio que Portugal não pode perder.
"Este pode ser o momento de viragem relativamente a uma aposta que foi muitas vezes enunciada mas não concretizada. Atualmente, não só temos o enquadramento interno como o enquadramento externo", destaca o líder europeu da União Internacional dos Caminhos de Ferro (UIC). Francisco Cardoso dos Reis está há praticamente cinco décadas na ferrovia.
Durante esse período, Cardoso dos Reis assistiu ao plano de modernização ferroviária de 1988, testemunhou os planos operacionais dos transportes no início da década de 2000, acompanhou as orientações estratégicas para a ferrovia nos tempos de José Sócrates e ainda seguiu o plano estratégico dos transportes de Passos Coelho.
"Não houve os resultados que se esperavam", reconhece o dirigente, que liderou a Refer entre 2000 e 2002 e que comandou a CP entre 2006 e 2010. Pela positiva, além do comboio na ponte 25 de Abril, em 1999, o comboio pendular chegou a Braga e Faro, por causa do Euro 2004.
De resto, a ligação entre Lisboa e Porto continua a demorar três horas pela congestionada linha do Norte e o comboio deixou de chegar aos distritos de Bragança, Vila Real e Viseu - e em Portalegre a estação fica a mais de dez quilómetros do concelho.
Desde 1986, fecharam as linhas do Corgo, do Dão, do Sabor e do Tâmega, além dos ramais de Aljustrel, Cáceres, Figueira da Foz, Mora, Moura, Portalegre e Reguengos. No Douro, desde 1988 que não há comboios entre Pocinho e Barca d"Alva, na fronteira com Espanha.
A inversão do ciclo começou muito lentamente, em fevereiro de 2016, com a apresentação do plano Ferrovia 2020, num investimento de 2,1 mil milhões de euros. Com suporte europeu, a rede ferroviária está a tornar-se cada vez mais elétrica, mas não há mexidas nos troços. A única exceção é a construção da linha Évora-Elvas - que colocará Lisboa e Madrid a cinco horas de distância depois de 2023 - e a reabertura da ligação entre Covilhã e Guarda.
2021 é um ano de grande expectativa. Em abril, será apresentado o primeiro plano ferroviário nacional. Será a base para discutir o papel do comboio em Portugal, que deverá chegar a todas as capitais de distrito e garantir a ligação com outros meios de transporte.
A este plano vai somar-se o início da execução do Programa Nacional de Investimentos para 2030 (PNI 2030). Só para a ferrovia, haverá 10,5 mil milhões de euros. "É algo que nunca aconteceu em Portugal", destaca Cardoso dos Reis.
É à Infraestruturas de Portugal (IP) que caberá pôr nos carris, por exemplo, uma nova linha Lisboa-Porto. As duas cidades ficarão a uma hora e 15 minutos de distância a partir de 2030. O comboio de alta velocidade terá paragens em Lisboa-Oriente, Leiria, Coimbra, Aveiro e Porto-Campanhã, destaca o vice-presidente da IP.
Carlos Fernandes nota que este projeto terá duas fases: até 2028, ficará concluído o troço Porto-Soure, permitindo uma viagem de duas horas da Invicta até à capital; o resto ficará concluído até 2030. No Porto deverá nascer uma nova ponte ferroviária: "Dificilmente poderá ser utilizada a ponte de São João devido à sua capacidade. Ficaríamos com um gargalo muito significativo na entrada do Porto", reconhece o gestor.
A nova linha também vai servir o resto do país: por exemplo, Lisboa ficará a 35 minutos de Leiria, menos duas horas e 33 minutos do que atualmente; do Porto à Guarda a redução será de 53 minutos.
A IP quer evitar os problemas do Ferrovia 2020, que já deveria estar concluído mas que ficará pronto com quase três anos de atraso. "O PNI 2030 vai agarrar nos conhecimentos de pessoas já habituadas a fazer projetos ferroviários", garante Carlos Fernandes ao Dinheiro Vivo. O gestor explica que "são necessários, em média, sete anos entre a autorização do governo e a abertura ao serviço de um troço".
Para que as obras fiquem prontas, os projetos têm de começar já a sair da gaveta: o governo aprovou um primeiro pacote, de 12 milhões de euros, em estudos prévios para arranque de obras com a renovação do troço Casa Branca-Beja e a duplicação da ligação Poceirão-Bombel. Está ainda em preparação um segundo pacote, de 26 milhões de euros.
Quando Portugal entrou para a UE, a revolução rodoviária multiplicou a rede de autoestradas de 211 para 3065 quilómetros. Em 2021, o tempo é da revolução ferroviária, "uma nova fase no sistema de transportes", segundo Cardoso dos Reis.
A cimeira da Plataforma Ferroviária Portuguesa, em fevereiro, foi o aperitivo para as iniciativas nacionais no Ano Europeu do Transporte Ferroviário.
Depois do evento de apresentação de hoje, abril será um mês recheado: além da apresentação do plano ferroviário nacional no Parlamento, os comboios elétricos vão poder começar a circular entre Viana do Castelo e Valença - a sinalização eletrónica fica para 2022 - e será reaberto o troço Covilhã-Guarda, na Beira Baixa.
Em junho, começam as ações de promoção do comboio nas escolas. Em setembro, haverá uma cimeira sobre descarbonização, num comboio intercidades entre Lisboa e Porto. Nesse mês, serão emitidos selos alusivos a este ano europeu.
Em outubro, uma exposição vai marcar os 165 anos da primeira viagem de comboio em Portugal.
Ainda sem data está a lotaria nacional dedicada aos comboios.