Decidiu, com a mulher, sair do Brasil e vir para Portugal no dia em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil, a 28 de outubro de 2018. Chegou no dia 5 de dezembro. Diz-se exilado político. Anderson França, Dinho para muitos, é escritor, autor de Rio em Shamas, finalista do prémio literário Jabuti em 2017, e ativista..Cresceu na periferia e nas favelas do Rio de Janeiro, que conhece bem. Diz que desde 2012 recebe ameaças de morte por ter defendido indivíduos em situações de fragilidade, fosse por serem pobres ou negros. Vem de uma família de evangélicos, e diz que foi a Igreja Evangélica a eleger Bolsonaro. Por outro lado, diz-se filho do país de Lula da Silva. É nesse país que afirma acreditar..Em entrevista ao DN, Anderson França, de 44 anos, faz uma radiografia ao atual momento político e social no Brasil e conta a sua história até este momento da sua vida em Lisboa, para onde, através do Impact Hub Lisbon, onde nos encontramos, trouxe a sua Universidade da Correria, que criou na favela da Maré. É uma universidade que, conta, já ajudou cinco mil pessoas da periferia a montar pequenos negócios e a inserir, por exemplo, mulheres negras no mercado de trabalho. Tem dado palestras em universidades como Oxford ou a de Colónia..Em que contexto se deu a sua saída do Brasil para Portugal, que diz tratar-se de um exílio?.Desde 2012 que eu recebo ameaças, muitas vindas de policiais e milicianos. Alguns deles promovem ameaças porque eu denunciei major Edson, um dos responsáveis pela execução de um pedreiro chamado Amarildo [da favela Rocinha, Rio de Janeiro]. Então os policiais começaram a ameaçar-me. Em 2015 invadiram a minha casa. Eu morava na zona norte [do Rio de Janeiro], que em Lisboa é como se estivéssemos falando da Cova da Moura ou da Margem Sul. É uma região muito afetada pela violência letal, pela presença do tráfico e pela intervenção criminosa da polícia. Por causa das ameaças, que foram crescendo, eu fiz um registo policial, porque invadiram a minha casa. Eram policiais, já estavam avisando no Facebook que fariam isso. O registo não deu em nada..Estavam à procura de alguma coisa?.Levaram o meu computador, a minha memória, e outros equipamentos que eu usava de fotografia. Em 2017 fizeram uma ameaça, já um outro grupo, uma militância digital ligada à extrema-direita brasileira liderada por Marcelo Mello. É um grupo de homens brancos, radicais, que trazem para o Brasil pensamento xenófobo, racista, machista, e que resolve com a violência. Esse grupo já ameaçava Lola Aronovich, feminista. Um dia praticaram um crime de racismo com uma menina negra numa universidade brasileira e eu defendi-a, expus o nome da pessoa. Isso foi o suficiente para que esse grupo me ameaçasse também..Foi nessa altura que as ameaças o dissuadiram de ir à Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) e a participar apenas por videoconferência?.Resultou em Paraty. Esse grupo descobriu os meus dados, a minha casa, fizeram uma foto da minha mãe, disseram que iam esquartejar a minha mãe, e a mim, ofereceram dinheiro para me matarem em Paraty. Isso resultou em danos psicológicos, tive muito medo, não conseguia mais andar pelos lugares. Nesse período chega o convite de Marina Silva para trabalhar com ela, já em 2018. Trabalhando com a Marina descobri que havia uma possibilidade de construção de um país que fosse democrático. Isso não aconteceu. No final do processo, eu perguntei a Marina o que seria interessante fazer. Ela entendeu que o momento político era grave, até por causa da morte de Marielle, que foi na zona norte. Então pensámos que sair de lá fosse um caminho. Só que nunca fizemos um plano para sair do Brasil, porque eu sou brasileiro, do governo popular de Lula. Acredito naquele país. Não acredito nesse país. Eu era vendedor ambulante, era porteiro, era morador de favela e o Lula me ajudou a ser uma pessoa digna. Quando eu chego ao final do meu projeto de vida, acontece isso. Tive de ouvir muitas pessoas para me convencerem a sair de lá. Porque eu não queria sair. Aí a Marina conseguiu uma reunião com o embaixador de Portugal, no consulado de São Paulo. Uma das possibilidades era vir para Portugal para abrir uma empresa e ter o visto de empreendedor, que é uma coisa que eu já faço, sou professor..O que é a Universidade da Correria, que fundou? Quando nasceu?.Em 2013, na Maré [favela do Rio de Janeiro]. Já demos aula para quase cinco mil alunos da periferia, montando pequenos negócios, resolvendo problemas de desemprego, inserindo mulheres negras no mercado de trabalho. Não tínhamos nenhum patrocínio. Eu vendi camisetas na rua para conseguir o primeiro dinheiro. Temos uma turma acontecendo aqui na [Impact] Hub, que reúne-se aos sábados ali na salinha. Ainda são poucos..Como é que a decisão de deixar o Brasil foi tomada?.Quando a gente entendeu que era por uma questão de segurança, no dia em que Bolsonaro é eleito. No dia 28 de outubro, eu e a minha esposa tomámos a decisão. Trocámos de celulares, desconectámos, fomos para São Paulo, vendemos o que tínhamos e o que não vendemos demos para os alunos. Com o dinheiro que conseguimos juntar comprámos as passagens e viemos. Quando chegámos, uma família portuguesa muito participativa na política recebeu-nos. Conseguimos tirar NIF, alugar uma casa, abrir conta, abrir a empresa. A única coisa que hoje demora muito é a saída do número de Segurança Social, para pedir a minha residência. Foi assim que a gente veio: com a roupa do corpo, que deu em cinco malas. Quando saímos de lá, a 5 de dezembro, muita gente nos apoiou e muitas diziam que a gente estava louco..Tinha noção da dimensão do país de Bolsonaro ou foi preciso chegar às eleições?.Não, eu sempre tive. Tenho coisas escritas sobre isso desde 2014. Eu falo: Igreja Evangélica, pessoas brancas, vão eleger Bolsonaro..Porque é que, a seu ver, tudo apontava para ele?.Porque ele estava articulado com lideranças evangélicas neopentecostais e, falando do meu lugar como evangélico, não neopentecostal mas conhecendo esse universo, eu vi que todos os movimentos evangélicos das periferias estavam organizando-se para apoiar alguém e esse alguém não seria Haddad, Lula, Marina, nem o Temer. Seria alguém novo, Bolsonaro. Ele foi fortalecendo cada vez mais as suas alianças com pastores como Malafaia, Marco Feliciano, e até pastores ligados à [Igreja] Universal do Reino de Deus. Então a gente começou a perceber que a Igreja Evangélica ia direcionar os votos para Bolsonaro. E quando ela direciona votos já foi provado que dificilmente não consegue eleger alguém. O [hoje prefeito Marcelo] Crivella no Rio foi um grande exemplo. O Lula visitava igrejas também. O próprio PT sabia do poder da Igreja Evangélica..Então foi um processo lento?.Foi. A raiz nasce na década de 90 com Malafaia e o bispo Macedo. Eles trabalham toda a década de 90 servindo ao poder. Quando o governo entra em colapso eles decidem manifestar-se e com isso vão levando milhões de votos com eles. O interesse da religião é muito da prevaricação. Hoje o que está acontecendo no Brasil é o que já aconteceu na Europa na Idade Média: o interesse da igreja no poder politico. Agora é a vez dos pastores e dos militares..Quando aconteceu o impeachment percebeu que uma porta importante se tinha aberto?.Sim, o dia mais grave dos últimos anos foi a votação do impeachment de Dilma, quando nós pudemos ver quem era aquele Congresso. E vimos que diziam: "Pela família, por Deus, pela pátria.".Como é que vê a identificação do povo brasileiro com esta Igreja Evangélica e com estes políticos? Seguem-nos livremente..Nós estamos sem um programa contínuo de educação há alguns anos. Esse programa não é integralmente aplicado na base, educação fundamental, onde está a possibilidade de alfabetizar pessoas, e naquele ensino mediano, onde há capacidade de inserir educação crítica, isso aí está abandonado. Então, Bolsonaro foi eleito por um grupo de brasileiros que não sabe discernir politicamente, criticamente, nem ler corretamente. É aqui que entra a Igreja. Eu posso falar isso, porque sou um educador da favela, e quando vejo pessoas assim eu não recrimino, tento trazer para o lugar da educação. Bolsonaro vale-se de um momento em que as igrejas entraram como as educadoras. Foram as igrejas evangélicas. Como é que uma mulher, um gay, uma pessoa negra votou em Bolsonaro? Mesmo Bolsonaro sendo nitidamente contra eles? Essa pessoa tem uma debilidade na sua educação critica..O Anderson diz que é filho do Brasil de Lula, e por outro lado cresceu numa família evangélica. Como se articula um com o outro?.A minha família toda, mesmo eu saindo de lá pelos motivos por que saí, acredita no Bolsonaro. Eu aprendi a pensar criticamente porque dentro da escola de ensino médio onde eu estudava, com 16 anos, tive aula de Sociologia e li Leonardo Boff [teólogo e um dos maiores nomes da Teologia da Libertação]. Não entendi o que estava escrito, o que era Marx, e os meus professores de Sociologia e de Filosofia sentaram-se comigo e explicaram: "Olha, esse cara fala que a sociedade não pode ter rico e pobre, e isso é muito melhor, não vai ter mais ninguém a morar em favela." Isso parecia-se muito com o que eu lia na Bíblia. Então comecei a achar que Jesus tinha muito mais que ver com Marx do que com Trump, com o capitalismo. Aí entra a teologia da libertação e isso dentro de casa foi um problema, porque o pensamento principal dentro do evangelicalismo é o capitalismo..Conseguiu um equilíbrio entre as relações familiares e o seu pensamento?.No meu último encontro com a minha família, que chamei toda para almoçar, eles não entenderam que eu ia sair porque ia ser perseguido pelo Bolsonaro. A minha família achou que eu tinha feito algo errado, porque defendo gay, favelado. Eu fui ativista a vida toda. Venho de uma família de negros, nordestinos e favelados, então essa luta toda está dentro do meu corpo, na minha família. Eu decidi assumir essa luta pelo meu povo, que eu representava, e, no entanto, dentro da minha própria família as pessoas não entendem que isso é a luta libertadora..Tem esperança?.Não. Nem no Brasil nem na América Latina. Eu só acredito que uma imposição da força estabelecerá de novo o poder da América Latina. Tornei-me essa pessoa. Não consigo mais acreditar no diálogo com essas forças..Algo muito grave tem de acontecer?.Sim, alguma convulsão social gravíssima ou uma revolução civil. Eu não acredito que a democracia, no ponto a que chegou, vá ser retomada por flores ou poesia. Não acredito mais nisso. Tornei-me essa pessoa amarga e eu não queria ser essa pessoa amarga, porque vivi num país onde a gente tinha utopia..A resistência teria de ser muito diferente daquilo que foi, por exemplo, a resistência à ditadura militar?.A Dilma, inclusive, fez parte da luta armada. Mas houve um grande movimento de intelectuais e artistas que tentavam promover pelo diálogo uma retomada do poder. Hoje não acredito nisso. Vou-te falar porquê. Há dois casos muito importantes no Brasil que aconteceram numa semana [em fevereiro]. Dois homens negros foram estrangulados por seguranças, um no supermercado, o outro no banco. Os dois eram inocentes. Um foi estrangulado [até à morte] pelo segurança, era doente mental. O outro estava tentando descobrir qual era o problema na conta bancária, porque o banco tinha desviado dinheiro dele. Na hora em que vai tomar satisfações no banco um segurança estrangula ele. Há seis meses uma advogada negra foi algemada dentro de um tribunal. Há um ano, Marielle foi morta..O que é que lhe parece faltar às pessoas hoje no Brasil? Consciência de si? Estou a pensar no que disse a propósito da sua família..A periferia inteira votou no Bolsonaro. Há centenas de ativistas mulheres negras, gays negros, que estão completamente isolados porque as suas famílias não os entendem, não são entendidos nas favelas. São pessoas que defenderam a favela a vida toda e agora a favela chama eles de vagabundos. Conheço muita gente que está a defender há muitos anos os direitos humanos e hoje a favela abandonou eles. O novo exílio brasileiro não é do branco intelectual, porque com esse não vai acontecer nada, ele vai para a rua, vai fazer protesto, vai para a universidade, tirar uma foto, dizer que é frente democrática. Se é preto, se é favelado, a pessoa morre na favela. Não tem nem passaporte nem dinheiro para tirar o passaporte..A componente do medo tem nesta equação um peso grande? Nas favelas do Rio, que conhece bem, vive-se um ambiente de guerra permanente..Sim. Apesar de tecnicamente não poder ser chamado de guerra, um morador abre a janela e vê um tanque de guerra. Eu vi muitos no Alemão e na Maré. No dia em que eles [militares] chegaram no Alemão, em 2010, eu estava lá dentro, era mediador de conflito..Vê alguma coisa do Brasil de Bolsonaro aqui em Portugal?.Eles fazem muitas manifestações nas redes sociais. É a grande plataforma deles aqui. Aqui eles vivem uma grande contradição, porque esse partido, o PNR, vale-se de alguma manifestação grande para se infiltrar e tentar alguma relevância. É desse campo patético da política que os brasileiros de Bolsonaro se encontram com a extrema-direita aqui. Ontem, por exemplo, lá no evento do Jean [Wyllys, ex-deputado, exilado, que deu uma conferência em Lisboa, a 29 de fevereiro] teve um grupo do PNR e um grupo de apoiantes de Bolsonaro. Aqui parecem estar tomando cada vez mais coragem..Jean Wyllys foi atacado com ovos em Coimbra. O Anderson já recebeu ameaças aqui?.Na internet já. Todos os grupos de brasileiros em Lisboa são controlados essencialmente por apoiantes de Bolsonaro. Há brasileiros que já me tiraram do grupo, porque sabem quem eu sou. Depois de ter posto a foto com o Jean já me chamaram de bandido, disseram que eu estava associado à ameaça de morte de Bolsonaro, houve um rapaz que mora em Lisboa e pratica lutas marciais que disse que se me encontrar na rua vai-me pegar. Hoje a gente tem procurado apoio de polícia, de pessoas da inteligência, para que se posicionem. Espero que as autoridades portuguesas venham a posicionar-se..Sente-se integrado numa comunidade aqui em Lisboa ou ainda bastante sozinho?.Muito sozinho. Quem faz hoje companhia para mim são os leitores da página do Facebook. Aqui ainda estou descobrindo amigos. Depois de ter construído uma vida no Brasil, vim para cá com a minha esposa. É um momento de muita solidão que a gente passa, de dificuldade para entrar na lógica de trabalho portuguesa, na lógica de relacionamento, mas pelo menos estamos vivos.