Ana Daniela Soares: "Chimpanzé vestia roupa de criança e no quarto tinha TV com comando"

A curiosidade jornalística levou Ana Daniela Soares a querer saber mais sobre a paixão de muitos portugueses por animais exóticos, dos escorpiões às cobras, e o resultado é um livro fascinante. Há casos de ilegalidade e de opções de risco, mas também quem saiba o que está a fazer e dentro da lei. <em>Entrevista publicada originariamente a 21 de fevereiro de 2020., republicada numa série de 'best of' entrevistas de verão que o DN está a republicar.</em>
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Para quem a associa a jornalista de cultura, com programa sobre livros na RTP 3 e na Antena 1, de repente vê-a assinar Cobras, Lagartos e Baratas e pensa o que se terá passado na sua vida para escrever este livro. É um desafio da Fundação Francisco Manuel dos Santos, mas tem que ver com alguma experiência jornalística que teve, certo?
Sempre tive animais, mas daqueles fofinhos, digamos cães e gatos. Entretanto, há uns anos, vi umas notícias de cobras que tinham sido encontradas em caixas, uma em Alcabideche, outra num contentor do lixo em Albufeira. E pensei: o que é que se está aqui a passar? Estes animais foram nitidamente abandonados, pertenceriam a alguém. Comecei a pensar e também fiquei receosa porque podemos, nestas circunstâncias, estar a fazer aquilo que já aconteceu nos Everglades na Florida - neste momento têm um problema ecológico profundíssimo com uma espécie que se chama pitão-da-birmânia, que foi uma cobra importada para os EUA como animal de estimação. Algumas conseguiram fugir ou foram abandonadas, instalaram-se em meio selvagem e hoje comem tudo: as aves e os jacarés. Quando vi estas notícias pensei: alguém tem animais destes como animais de companhia, largou-os ao deus-dará... e se estas cobras conseguissem instalar-se nas nossas paisagens, o que poderia acontecer?

Essa curiosidade resultou em reportagem?
Exatamente. Então resolvi explorar isto um bocadinho mais e tentar perceber o que se andava a passar. Falei com alguns amigos biólogos, entretanto conheci o biólogo do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas [ICNF] João Loureiro, que é o responsável em Portugal da apreensão de animais ilegais, e fiquei ainda mais preocupada. Há muita gente que tem cobras em casa, que tem baratas em casa, e não são aquelas que todos queremos eliminar, são baratas com 10 cm de comprimento, aranhas, lagartas, insetos provenientes da selva Amazónica ou da selva da Costa Rica.

Esses animais chegam cá por tráfico ilegal?
Depende. Os animais que são comercializados nas nossas lojas ou por criador com licença do ICNF são criados em cativeiro e legalmente. Depois há a vertente do tráfico ilegal de espécies. Um animal pode ser ilegal por dois motivos: por razões de saúde pública ou porque os tutores não têm a documentação.

Há criadores de cobras em Portugal e isso é um negócio completamente legal e quem as comprar tem de legalizar também a posse?
Exatamente. Em muitas espécies até é obrigatório o chip. Há muitas espécies que são legais em Portugal. É um assunto que causa alguma controvérsia porque no nosso país podemos ter um suricata e este vive em grupo, precisa de espaço, escava túneis, muito poucas pessoas particulares terão condições para ter estes animais. Depois há a vertente do bem-estar animal e que foi uma das minhas preocupações. Será que nós, indivíduos, conseguimos proporcionar condições de bem-estar a estes animais quando decidimos adotá-los como animais de companhia? Esta é uma questão polémica. Aliás, já houve alguns avanços legislativos e há animais que serão proibidos de ter em casa a partir de 2020, como os ouriços.

Essa nova legislação preocupa-se sobretudo com o bem-estar do animal?
E também com questões de conservação. Neste momento temos um problema com as tartarugas semiaquáticas que se oferecem às crianças. Já agora fica aqui o alerta: faz parte da flora bacteriana destes animais a salmonela. É perigoso manipular com as mãos (os miúdos manipulam com as mãos, metem na boca, ficam com gastroenterite e diarreia). Neste momento há um problema com essas tartarugas porque são animais que podem viver muitos anos e muitas vezes tornam-se um bocadinho inconvenientes. Crescem muito e têm habitualmente um cheiro um bocadinho fétido, é preciso mudar a água muitas vezes, dão trabalho, e portanto as pessoas julgam muitas vezes que estes animais estão melhor num lago ou perto de um rio. Estas espécies que não são nossas vão concorrer com as nossas espécies de cágados no alimento (são mais vorazes), pelos lugares de exposição ao sol e, portanto, corremos o risco de ter uma invasão de tartarugas semiaquáticas nos nossos cursos de água, em detrimento dos nossos cágados, espécie autóctone. E os parques zoológicos estão com dificuldade em receber estes animais. O Jardim Zoológico de Lisboa e o Zoo Marine já têm instalações próprias para estas tartarugas, mas neste momento ambas as instituições estão sem espaço para elas.

Falou de cobras, insetos, mas no seu livro há casos curiosos, como a senhora que tinha um elefante no Algarve e outros que têm leões em casa. Eram pessoas que tinham tido uma experiência de vida em África e quiseram replicá-la na Europa?
A senhora do elefante, não. Ela tinha vindo de um país nórdico onde, na altura, era legal ter um elefante como animal de estimação. Ela veio viver para o Algarve e trouxe o seu animal de companhia, com o qual andava a passear na rua. Houve uma denúncia, o ICNF abordou-a e o animal foi apreendido.

E os leões?
Não sei se tiveram essas experiência de África. Seriam pessoas ligadas ao circo? Não. eram pessoas particulares que tinham um casal de leões que eram tratados como gatos.

Dois leões em casa, domesticados. Mas nunca estão totalmente domesticados, pois não?
O único animal domesticável é o cão. O gato já se considera um animal próximo de nós, mas todos os outros não. O que se percebe ao longo da leitura desta reportagem é que estes criadores de animais exóticos o que estimulam as pessoas a fazer é manusear o animal para ele não entrar em stress e ficar agressivo. Obviamente que num casal de leões pode haver um acidente. É proibido ter em casa. O ICNF não tem instalações próprias para colocar os animais apreendidos. Socorre-se das parcerias com parques zoológicos para os levar para lá. Mas os leões são impossíveis de ter num parque em Portugal porque os que existem já têm o seu grupo, não é possível introduzir animais externos. Portanto, o Estado português tem de tratar da viagem destes animais para um santuário em África. O ICNF tem de se certificar de que este lugar para onde vai enviar os animais é mesmo um santuário e não um safari de caça disfarçado. Infelizmente a caça aos troféus tem aumentado e há muitos santuários em África que disfarçadamente leiloam os animais para que os possam ir matar. Esta questão dos animais exóticos deve-nos preocupar em dois aspetos: ambiental, quando o animal foge ou é libertado pelo tutor - em Portugal os animais dão-se todos muito bem porque temos um clima ótimo, ainda hoje vi um bando de papagaios à porta da RTP e, na verdade, a maior população de papagaios na Europa está no Reino Unido, há, aliás, papagaios a nidificar na Polónia - e de saúde pública. Por exemplo, em Portugal é proibido ter primatas como animais de estimação e os últimos chimpanzés que o ICNF apreendeu estavam contaminados com o vírus do ébola e o vírus da sida. Por acaso eram vírus inaparentes.

Está a falar de primatas domésticos?
Sim, que vivem com pessoas. Há pessoas que têm primatas em casa e que os tratam como crianças. Num dos casos que o ICNF teve de resolver recentemente, quando entraram naquela casa, perceberam que o chimpanzé vestia roupa de criança, tinha o seu próprio quarto, comia à mesa com as pessoas, tinha uma televisão com comando.

Até que idade simula uma criança?
Até aos 15. O problema é que a partir daí passam por aquilo que se chama a maturidade sexual e tornam-se mais agressivos. E é aí que se transformam num problema e as pessoas não sabem o que fazer. Leonor Galhardo, uma das biólogas especialistas em bem-estar e que entrevistei para o livro, num dos últimos casos a que teve de dar ajuda, o chimpanzé já vivia na garagem com uma trela ao lado do cão. No caso destes animais com vírus, por alguma razão o vírus deixa de estar latente e passa a estar ativo, portanto basta o animal espirrar para podermos ter um surto de ébola em Portugal. Como aconteceu há uns anos nos EUA, com um grupo de primatas de laboratório contaminados, e houve ali um surto, mas conseguiram conter.

Quando estamos a falar de baratas gigantes e de outro tipo de insetos, consegue perceber, sem fazer juízos de valor, o que leva as pessoas a preferir este tipo de animais em vez de cães ou gatos?
Há várias razões. Algumas é para ser diferente, engraçado. Noutros casos pode ser o sentimento de domínio, de posse, de domesticação daquele animal selvagem. Em grande parte dos casos, o que reparei é que às vezes a escolha deste tipo de animais prende-se com o nosso estilo de vida. Vivemos cada vez mais em apartamento. Não podemos ter um cão ou um gato porque temos a vida muito preenchida. Quando falamos de cobras, lagartos e baratas, são animais que não exigem muita manutenção. Basta uma vez por semana dar água e substrato e eles ficam bem. No caso dos lagartos e das cobras também há outro aspeto apelativo, que é o terrário. No fundo acabamos por ter um bocadinho da natureza dentro de casa.

É caro ter esses animais?
É. Há animais a valer milhares de euros. Os insetos serão mais baratos, mas uma cobra de 1,5 metros pode chegar aos 400.

De despesa?
Não, só de comprar o animal. O investimento inicial é elevado. No caso da cobra é preciso comprar o terrário, as luzes para manter o animal em boas condições, há toda uma parafernália necessária logo no início. Mas depois não, e muitos deles até se dedicam a criar o próprio alimento - os ratos. Num simples ouriço-pigmeu-africano o investimento inicial ronda os 250.

Apesar de todas as instalações, há fugas?
Sim.

A cobra foge, o que é que acontece a seguir?
É fácil: normalmente, se está muito calor, o tutor vai procurar num sítio mais fresco; se está frio, vai procurar num sítio mais quente. A cobra não tem capacidade para regular a sua temperatura corporal e só consegue fazê-lo no meio ambiente. Depois há uma técnica que aprendi com uma das criadoras: na divisão onde se pensa que o animal está, espalha-se farinha no chão para depois seguir o rasto. Pelo que percebi das conversas, os animais não fogem para muito longe, mas, por exemplo, o retrato começa com uma chamada de uma senhora em pânico para o ICNF a dizer que tem uma cobra em cima da cama. O próprio biólogo que pensava que ia encontrar uma cobra-rateira das nossas, quando chegou deparou-se com uma pitão de sete metros que pertencia ao vizinho. Fugiu do terrário e escondeu-se na cama da vizinha. Poderia ter sido uma situação complicada porque um animal desta dimensão já tem capacidade para atacar uma criança, um animal de estimação e até a senhora, se estiver com fome.

Nota da parte dos partidos preocupação em ter medidas restritivas desta moda?
O que me parece é que os partidos políticos não ouvem quem está no terreno. Não ouvem os biólogos do ICNF quando fazem a legislação. Aconteceu agora com os cães e os gatos e a eutanásia destes animais nos canis. Não são ouvidos sobre a legislação de detenção de animais de circo e isso cria um problema. Até podemos ter uma ótima legislação, mas pô-la em prática é muito mais difícil, porque falta equipamento, faltam pessoas. Há partidos que por moda se preocupam... às vezes erradamente. No ano passado, no Pet Festival houve queixas do PAN sobre a forma como os animais estavam acondicionados na exposição. Ora, os animais estavam acondicionados como a lei prevê. Do ponto de vista legal, estava tudo correto. Às vezes há falhas de comunicação entre os partidos e quem está no terreno e tem de lidar com estas questões.

Também já escolheu este tipo de animais?
Tenho dois que se pode considerar exóticos. Tenho um hamster-anão-russo e tenho uma colónia de formigas. Atenção que é uma espécie de formiga nossa, da Península Ibérica - é possível comprar na internet rainhas de formigas-cortadeiras-de-folhas e formigas-bala, e no caso das cortadoras de folha, imaginem o que é se esta rainha conseguir fugir e instalar-se nas nossas já debilitadas florestas. É uma formiga das selvas, amazónica e da Costa Rica.

Tem milhares de formigas?
Não, porque o formigueiro é pequenino e as formigas têm uma organização muito especial, tomam as decisões em grupo. Elas é que determinam quantos indivíduos necessitam e quem faz o quê.

Depois destes contactos todos para a reportagem e para o livro, vai ficar por aí?
Vou, vou.

Não está a pensar numa cobra?
Não estou a pensar nisso, mas quem tem um animal deste género não se fica só por um.

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