Maria João Martins é médica e faz também trabalho de detetive, em terra e no ar. A responsável pela equipa de sanidade internacional do Aeroporto Humberto Delgado, de Lisboa, passa os seus dias a seguir o rasto das pessoas que viajaram junto de infetados com o novo coronavírus. Quando as autoridades de saúde locais lhe transmitem que há um caso de covid-19 entre alguém que voou nos dias anteriores, a especialista e a sua equipa traçam o risco de infeção de quem seguia no mesmo avião e tornam possível a vigilância ativa destas pessoas. Desde que a pandemia começou, em março, e até esta quinta-feira já foram detetados 97 casos positivos à doença, sendo que um deles se tornou suspeito a bordo de um avião..Foi a própria tripulação que reparou numa mulher com sintomas coincidentes com os de covid-19, entraram de imediato em contacto com Maria João Martins e ainda o avião não tinha aterrado em solo luso já a equipa se preparava para dar início ao processo de rastreio dos contactos próximos. Enquanto isso, um enfermeiro e um socorrista do aeroporto, vestidos com os equipamentos de proteção individual, tomaram conta da mulher sintomática, tratada como suspeita e encaminhada pelo INEM para o hospital de referência do aeroporto, o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde lhe foi feito o teste de rastreio que deu positivo..Caso confirmado - seja por suspeita a bordo, seja descoberto dias depois noutra circunstância -, os "detetives da saúde pública" do aeroporto entram em campo. O primeiro passo é identificar o lugar onde o passageiro seguia, quem era a tripulação e os viajantes à volta, o que, dependendo da localização do doente no avião e da quantidade total de passageiros (uma vez que as companhias áreas não são abrangidas por uma redução da lotação), pode obrigar a seguir o rasto a três, quatro pessoas ou a mais de 15. "Na pior das hipóteses podemos ter 15 a 17 contactos relacionados com um doente dentro de um avião", diz Maria João Martins. "Se a pessoa vier num lugar da fila da frente e encostada à janela tem muito menos probabilidade de ter contactos do que uma pessoa, num voo longo, num dos lugares do meio da cabina. Aí tem pessoas a 360 graus.".Dependendo do voo podem também ter um infetado ou "cinco ou seis a bordo". Desde que as fronteiras com a União Europeia, o espaço Schengen, o Reino Unido, o Canadá, a Argélia, a Coreia do Sul, Marrocos, a Tunísia e a China reabriram no primeiro dia de julho, a médica de saúde pública viu o trabalho crescer ainda mais. 40% do total de passageiros infetados que voaram para Lisboa foram confirmados nas últimas duas semanas. O que significa 39 doentes, quando nos quatro meses anteriores tinham sido detetados 58 casos em voos excecionais, que nunca deixaram de ser feitos.."Nós não conseguimos impedir a importação de casos. Só se parássemos os voos, mas depois também não importávamos comida ou turistas. A única coisa que podemos fazer é garantir que o nosso sistema de vigilância consegue gerir estes casos por forma a minimizar o risco de cada um deles criar uma cadeia de transmissão", diz a médica considerada a maior especialista em sanidade internacional do país..Maria João Martins trabalha atualmente na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, mas desde 1991 que integra equipas das autoridades de saúde nacionais e internacionais. Representou a Direção-Geral da Saúde em diversas iniciativas relacionadas com a sanidade internacional e tornou-se representante das Autoridades de Saúde Portuárias e Aeroportuárias portuguesas na Organização Mundial da Saúde (OMS). É especialista em saúde pública e tem um curso avançado em Medicina de Aeronáutica.."Vamos controlar o controlável".Maria João Martins acredita que o país está a "a adaptar as suas medidas muito bem à situação", durante a pandemia, não se referindo apenas aos casos nos aeroportos. Tem pouco tempo para tudo o que não seja vigiar as infeções importadas, mas quando fala com os colegas estrangeiros, estes também lhe transmitem uma mensagem muito positiva do país. "Ainda no outro dia me telefonaram da OMS e me disseram: não há dúvida de que Portugal está a conseguir adaptar as medidas à situação. Vamos conseguir controlar o que é controlável. Milagres, ainda estamos a ensaiar. Falhas há em todo o lado, só não há no que está morto. A vida não é isenta de riscos", diz, pronta para os reduzir..O sucesso está em detetar precocemente os casos de covid-19, impedindo assim a criação de novas cadeias de transmissão. O que pode garantir é que as autoridades estão a fazer um "enorme esforço, principalmente na Área Metropolitana de Lisboa, para impedir os casos importados de estabelecerem cadeias de transmissão sistematicamente". Está convencida de que é isso que continuará a ser feito, mesmo quando o número de passageiros aumentar durante o verão. "Não há outra hipótese", sublinha..As autoridades estarão atentas, mas sendo uma questão de saúde pública, os cidadãos têm muito peso na equação. Podem contribuir para estancar a propagação do vírus ou acelerá-la, se não tiverem em conta as medidas de distanciamento social e de etiqueta respiratória. E em caso de suspeita de infeção a escolha deve ser sempre não viajar, o que nem todas as pessoas têm cumprido, suspeita a especialista. "Infelizmente, há muita gente a viajar com sintomas e a saber que está positiva", afirma..São encontrados posteriormente, porque fazem o teste de rastreio ou porque o seu estado de saúde se agrava e são hospitalizados. O centro de saúde ou o hospital entra, depois, em contacto com o departamento de sanidade internacional do aeroporto para que este identifique quem esteve em redor. "Todos os hospitais de Lisboa e vale do Tejo entram logo em contacto comigo. Se for um hospital do norte e se tratar de um colega que não tem o meu contacto direto, basta que coloque a informação no sistema da autoridade de saúde que ela chega cá", explica..Os "detetives" em campo.Quando um passageiro entra num avião é-lhe entregue, pela tripulação, um cartão de localização de passageiro (CPL, na maioria das vezes referido na sua designação em inglês: passenger location card). O cidadão deve preenchê-lo e entregá-lo à saída do voo, ficando este a cargo da companhia aérea. Este cartão - autorizado pela Comissão de Proteção de Dados - regista apenas uma forma de contacto com o passageiro e o local do avião que lhe foi atribuído. Em caso de necessidade, "quando há um caso suspeito a bordo, a sanidade internacional trata de ir buscar estes cartões", explica Maria João Martins..Esta informação é comparada com os esquemas dos aviões e transmitida novamente às autoridades de saúde locais que fazem a vigilância dos casos suspeitos e ativos. A partir daí o procedimento é idêntico ao de um caso que não tenha relação com um voo: isolar, vigiar e tratar. Mesmo que se trate de um estrangeiro, há sempre uma morada associada, nem que seja a de um hotel, e o seu país de origem será informado, pela equipa do aeroporto..À espera da modernização do sistema.Até agora, o CPL é preenchido em papel, mas está previsto que se torne eletrónico "brevemente", como informou a ministra da Saúde, Marta Temido, em conferência de imprensa. Os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde já receberam a indicação e Maria João Martins confirma que têm existido reuniões nesse sentido; falta agora a infraestrutura informática. Esta é uma das grandes melhorias necessárias, apontadas pela especialista, tendo em conta que atualmente aceder a este cartão envolve que a equipa de saúde se desloque ao sítio estipulado pela companhia aérea dentro do perímetro do aeroporto. "Dependendo da transportadora, há um sítio para ir buscar os CPL. Lá vai a minha equipa com um motorista pela área do aeroporto para ir buscar os envelopes com a identificação do voo que têm os cartões todos fechados, porque só podem ser abertos por nós."."Quando eu tiver acesso a um sistema que tem os CPL eletrónicos associados ao voo, poderei ir lá pesquisar, por exemplo, os passageiros à volta do lugar 3C e aparece logo tudo. Em vez de levar um dia a fazer o rastreio de contactos de um avião, levo uma hora", antevê. Para além de minimizar a probabilidade de os cartões desaparecerem, como aconteceu em alguns casos. "Na mesma companhia aérea, a tripulação distribui os CPL e recolhem-nos em alguns voos e noutros não. Isso ainda está a falhar um bocadinho", admite Maria João Martins. Por isso, tornar o sistema eletrónico será fundamental, sob pena, "com o aumento do número de voos, de deixarmos de conseguir responder atempadamente à identificação de todos os passageiros"..Outra dificuldade apontada pela especialista é a chegada de alguns viajantes ainda sem o teste de rastreio à covid-19 realizado nas 72 horas anteriores ao embarque, o que também pode dar origem a outros contágios, no caso dos infetados, durante "o dia em que a pessoa não está obrigada ao confinamento, porque ainda não recebeu a confirmação". Se nos Açores e na Madeira este exame pode ser feito nos aeroportos, no continente tem obrigatoriamente de ser realizado antes, estando esta regra sujeita a exceções para portugueses, residentes, diplomatas ou tripulantes. Exceção que tem sido usada como regra, segundo a médica.."Algumas transportadoras estão a tomar o ser português, por exemplo, como uma exceção. Mas não é. Uma exceção é dentro dos portugueses haver alguém que tenha vindo do Brasil, porque lhe morreu um familiar e não teve tempo de fazer o teste antes de apanhar o avião. Isso é uma exceção", refere Maria João Martins, acrescentando que, no entanto, não vai existir uma lista de exceções sob pena de impedir alguém com um motivo válido não elencado de viajar. Um novo diploma, aprovado em Conselho de Ministro, nesta semana, já prevê coimas para as companhias aéreas que permitam aos passageiros viajar sem um teste negativo.."Um teste negativo pode não querer dizer nada, mas um positivo quer dizer de certeza. E esse já não embarca", diz Maria João Martins, que acredita que é possível continuar a viajar com segurança. O risco existe, não o nega, mas cabe-nos a todos minimizá-lo.