Advogado de Neto de Moura na Comissão de Direitos Humanos da Ordem

Conhecido por defender o juiz Neto de Moura e agentes de autoridade acusados de homicídio e agressões, Ricardo Serrano Vieira tem-se notabilizado também por afirmações pouco consentâneas com a defesa dos direitos humanos, objetivo do órgão que agora integra. Bastonário, que o convidou, recusa comentar.
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Em defesa do juiz Neto de Moura, que representa, o advogado Ricardo Serrano Vieira chamou, em novembro de 2017, "lambedoras de cricas" às feministas que criticaram o magistrado. Num texto de 2019 sobre "uso de armas de fogo por forças policiais", este causídico que defendeu o militar da GNR condenado por matar, em 2008, uma criança cigana, e está agora, segundo o próprio, "com a equipa da PSP que matou acidentalmente uma cidadã brasileira na Encarnação" e com o caso dos inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras indiciados pelo homicídio do cidadão ucraniano Ihor Homenyuk no aeroporto de Lisboa, cita o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel: "A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo". Para concluir: "Os suspeitos de crimes violentos sabem que cada vez que um agente de autoridade faz uso da arma arrisca-se, seriamente, a vir a ser condenado disciplinar e criminalmente mesmo que tenha apenas e somente como propósito o cumprimento da Lei."

Apesar destas posições públicas, porém, o também representante legal do subcomissário da PSP Filipe Silva, condenado pela agressão, em 2015, na cidade de Guimarães, a dois adeptos do Benfica, e de outros agentes acusados de abuso de autoridade e de uso desproporcionado da força, foi convidado pelo atual bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, para integrar a respetiva Comissão de Direitos Humano, a qual tomou posse a 16 de março. Para logo a 6 de abril, na primeira deliberação deste órgão, sobre a morte do ucraniano Ihor Homenyuk no aeroporto de Lisboa - exigindo que esta seja "investigada de forma exemplar até às últimas consequências e caso se apure a culpa, ou responsabilidade, de algum agente da autoridade deve ser julgado e punido de acordo com a Lei" - pedir escusa.

"Estava impedido, teve o cuidado de dizer que está ligado ao processo", informa o presidente da comissão, José Trincão Marques. "E não participou nessa reunião." Participou porém naquela em que a comissão deliberou por unanimidade, a 20 de abril, protestar contra a "utilização da expressão "vírus chinês"" num despacho judicial.

Mas o próprio Serrano Vieira, que no seu Facebook tem apostado na teoria de que a pandemia de Covid-19 é um plano da China para dominar o mundo, partilhou a 3 de abril um texto de opinião do semanário Sol que apelida o novo agente infeccioso de "vírus do partido comunista chinês". Nessa partilha, o causídico escrevia (o post, que o DN fotografou e reproduz, deixou de estar disponível depois de o jornal o referir ao bastonário e ao presidente da Comissão): "Não sou xenófobo nem racista. Apenas constato factos. Já sei: são fake news. Pois está claro."

O comunicado da CDHOA não concorda. Considera a expressão "vírus chinês", que já foi usada também por Donald Trump, presidente dos EUA, pelo diário Correio da Manhã e pelo canal CMTV, assim como por André Ventura, deputado do Chega, "depreciativa, potenciando o possível estigma de cidadãos estrangeiros residentes e não residentes em Portugal, em razão da sua raça, etnia ou nacionalidade, violando de forma clara os preceitos constitucionais (...) e desrespeitando ainda a Declaração Universal dos Direitos do Homem." E apela "a todos os cidadãos e em particular os titulares de órgãos de soberania nacionais" para que "se refiram à doença provocada pelo novo coronavírus SARS-COV-2 através do nome atribuído pela OMS, que é a expressão Covid-19."

Permite comentários xenófobos: "filhos da puta dos chinocas", "chinas"

Apelo que Serrano Vieira, apesar de ter formalmente subscrito, não pratica. A 19 de abril, o dia anterior ao da deliberação da comissão sobre o "vírus chinês", publica um post com referência às comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República no qual, ao lado de uma fotografia da ministra da Saúde, Marta Temido, se lê: "Procura-se! Chinês doente para espirrar dentro do parlamento!" (Também este post entretanto deixou de estar acessível para o público no seu mural).

E nos comentários dos seus vários posts sobre a China e o vírus sucedem-se estigmatizações e apodos xenófobos, sem que o dono do mural reaja. "Ganham os filhos da puta dos chinocas", escreve uma "amiga"; um "amigo" diz: "Em suma, comprem aos chinas que fazem bem (ironia). E quando isto passar, voltem às suas lojas também. Os chinas em nada contribuem para as economias nacionais. (...) Por favor, façam a diferença e nada lhes deem". Outro ajunta: "Já não como arroz xao xao [sic]", e outra ainda "O mundo não deve comprar nada à China nem que seja um cêntimo. (...) Bandidos", enquanto a mulher do advogado, Filipa Pissarra, acusa: "A China ganhou a 3a guerra mundial nas barbas do resto do mundo e num abrir e fechar de olhos."

Outro comentador frequente na página do advogado, Nuno Cerejeira, ironiza: "O mundo ainda vai ter de indemnizar a China!!". Cerejeira, que nas fotos públicas no seu Facebook ostenta corpo e rosto cobertos de tatuagens góticas e na testa o escudo dos templários - cuja imagética é utilizada pela extrema-direita -, foi condenado por ter participado no ataque de skinheads/supremacistas brancos que a 10 de junho de 1995 vitimou vários negros no centro de Lisboa, e no decorrer do qual o cidadão português de origem cabo-verdiana Alcindo Monteiro foi assassinado. Foi de novo condenado em 2010, por, mais uma vez integrado no grupo de hammerskins de Mário Machado, ter levado a cabo uma série de sequestros e roubos. É também arguido, em conjunto com outros 19 indivíduos, num processo no qual é suspeito, de acordo com comunicado da Procuradoria Geral da República, de pertencer "aos skinheads neonazis liderados pela Hammerskin Nation, o mais violento e organizado grupo de extrema-direita, formado em Dallas, em 1988 (...)", que pretende "em Portugal expulsar ou impedir a entrada no país de todas as minorias étnicas", "estrutura criminosa que vinha cometendo crimes de ofensa física qualificadas, em alguns casos agravadas e até tentativas de homicídio, crimes motivados pela diferença de raça ou orientação sexual das vítimas".

Bastonário: "Não o convidei pelo que escreve no Facebook."

"Não conheço essas posições - se essas posições existiram, não sei, porque não as conheço." É assim que Luís Menezes Leitão, o bastonário da Ordem dos Advogados, começa por responder quando o DN o tenta questionar sobre os posicionamentos públicos de Ricardo Serrano Vieira acima descritos.

Assumindo ter convidado pessoalmente todos os membros da Comissão de Direitos Humanos da OA, incluindo o causídico em causa, explica que no caso de Serrano Vieira o fez pelo facto de "ser um advogado que tem patrocinado vários clientes", sem detalhar mais motivos.

Alegando não conhecer o episódio das "lambedoras de cricas" (à época amplamente noticiada nos media e admitida pelo autor como sua), frisa que "qualquer excesso que um advogado cometa pode ser matéria de ação disciplinar". Questionado sobre se a frase lhe parece matéria para processo disciplinar, responde: "Teria de ver o enquadramento em que foi feito." Não esclarece que tipo de enquadramento poderia no seu entender justificar a frase.

Já a propósito da contradição entre a deliberação da comissão sobre a utilização do termo "vírus chinês", condenando "a potenciação do possível estigma de cidadãos estrangeiros residentes e não residentes em Portugal, em razão da sua raça, etnia ou nacionalidade", e o que Ricardo Serrano Vieira escreve e deixa escrever no seu Facebook, o bastonário começa por recusar "comentar situações baseadas no Facebook", prosseguindo: "Tenho as maiores dúvidas em valorizar o que aparece no Facebook, não o convidei pelo que escreve no Facebook."Chegando mesmo a dizer "não vejo que problema é que isso tem, não sei se é contradição", para a seguir concluir: "Não vou tomar nenhuma posição sobre o assunto, que estou a ouvir pela primeira vez, irei verificar. Mas a existir é um problema da comissão."

José Trincão Marques, o presidente da comissão, admite: "Se um elemento contraria as posições públicas da Ordem, da Comissão e os direitos humanos, se me aperceber que há situações complicadas de incompatibilidade, terei de falar com ele e com o Conselho Geral. Mas distingo uma posição tomada antes de integrar a comissão de outra tomada depois da tomada de posse."

"Há um excesso e é censurável"

O presidente da Comissão de Direitos Humano da Ordem não tem porém dúvidas de que "se uma pessoa tem um determinado cargo público tem de ter cuidado com o que anda a escrever no Facebook", e assume-se chocado com a reprodução da frase que em 2017 Serrano Vieira dirigiu às feministas: "Não aceito que se ande a insultar pessoas. Posiciono-me do lado dos direitos fundamentais, e desconhecia essas declarações. Efetivamente há um excesso e é censurável."

Também vê como "asneira" a referência ao Covid-19 como "vírus do Partido Comunista Chinês", estranhando: "Até agora, pelo que temos trabalhado, não tenho dado por posições divergentes. Como presidente da Comissão, quando vi essa expressão, "vírus chinês", num despacho, repugnou-me. Se me preocupam os posicionamentos expressos pelo colega? É evidente que não me agrada ver colegas com posições complicadas e que não concordo com esse tipo de posicionamentos. Mas respondo pela história da minha vida e pelas minhas posições, não pelas dos outros. E garanto-lhe que tencionamos defender com todo o nosso empenho quer os direitos humanos consagrados na nossa Constituição quer os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Vou falar sobre isto na próxima reunião."

Igualmente surpreendida ao ser confrontada com as posições de Ricardo Serrano Vieira fica Leonor Valente Monteiro, uma das vogais da comissão. "Desconhecia a situação, vou tê-la em muita consideração. Eu na altura em que foi conhecido o acórdão do juiz Neto de Moura, em 2017, fui para a rua protestar para a frente do Tribunal da Relação, portanto faço parte desse grupo que o colega refere [como "lambedoras de cricas"]. Se calhar ele não sabe que tem uma colega da comissão que faz parte desse grupo, como eu não sabia que tinha sido ele que tinha dito isso."

A advogada não teve até agora muito contacto com Serrano Vieira, que escolheu na comissão o pelouro das prisões. "Temos muitas queixas de reclusos e ele tem feito um bom trabalho nesse pelouro, é dos membros da comissão que mais despacham." Mas vê "um claro conflito entre a posição da comissão sobre a utilização da expressão "vírus chinês" e as posições do colega no Facebook." E manifesta a intenção de "ligar para o presidente da Comissão para perceber se vai fazer alguma coisa sobre isto ou não. Pondero a possibilidade de me pronunciar na própria Comissão sobre este assunto para perceber qual a posição de todos. Isto deve ser falado, e vou promover que seja falado."

"É absolutamente incompatível e desprestigiante para a comissão"

Numa recente conversa gravada em vídeo e partilhada por Ricardo Serrano Vieira no Facebook, a sua mulher, Filipa Pissarra, lamenta o facto de "o público baralhar o advogado com o cliente", dando o exemplo de Neto de Moura: "Custou-me bastante saber que o meu marido era apelidado de machista. (...) A situação do juiz já era injusta, saber que apelidavam o meu marido de ser machista porque era o advogado do juiz... (...) Aqui em casa praticamos a igualdade, não há machismo, feminismo (...)". Mas elogia a capacidade do cônjuge de suportar aquilo que reputa de ataques injustos, atribuindo-lhe a capacidade de "de falar quando deve falar, e de calar quando não deve falar".

Um ex presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem, Eldad Mário Neto, que ocupou o lugar de 2014 a 2016, convidado pela então bastonária Elina Fraga, não podia estar mais em desacordo. E considera que uma frase como a proferida por Serrano Vieira em ataque às mulheres que criticavam o seu cliente Neto de Moura "não rima com direitos humanos, é um absurdo até. Não há contexto nenhum que possa justificar uma posição dessas. Uma pessoa, independentemente de ser essa ou outra qualquer, que está numa comissão de direitos humanos não pode dar esse tipo de opiniões, dizer esse tipo de coisas. É absolutamente incompatível, estranho, lamentável e desprestigiante para a própria comissão, que sempre foi considerada a joia da coroa da Ordem, e teve muita importância na denúncia de inúmeros casos, nacionais e internacionais."

Quando informado de que o atual bastonário mencionou, a propósito da frase, a possibilidade de uma ação disciplinar, Eldad Mário Neto discorda: "Nem me parece uma questão disciplinar, é matéria para retirada de confiança política. Para mim a grande questão são os critérios que presidem à escolha das pessoas que integram a comissão. E o que mais me impressiona é que tendo tomado conhecimento das posições em causa o senhor bastonário não ache que ofendem os critérios que devem presidir à escolha dos membros da comissão. É absolutamente desadequado que integrem as comissões pessoas que têm assumidamente posições contrárias àquilo que penso ser a defesa dos direitos humanos. Mas a responsabilidade política na condução das comissões da Ordem é do bastonário e do presidente do Conselho Geral, que devem escrutinar essas posições e eventualmente se entenderem que fogem dos critérios ser chamados à atenção e eventualmente excluídos. Se eu fosse o presidente da comissão e se me deparasse com uma posição dessas, imediatamente comunicaria ao bastonário e proporia a tomada de uma posição que podia ir da mera advertência à retirada da confiança política."

O DN enviou uma série de perguntas, por escrito, para Ricardo Serrano Vieira. Entre essas perguntas está um pedido de esclarecimento sobre o facto de alguns dos posts referidos pelo DN e mencionados nas entrevistas ao bastonário e ao presidente da Comissão de Direitos Humanos e à vogal Leonor Valente Monteiro, e que até esta quarta-feira estavam disponíveis no Facebook do advogado, terem deixado de ser acessíveis para o público.

O DN questiona igualmente o advogado sobre se considera que as suas posições públicas se coadunam com as da comissão e com a defesa dos direitos humanos, assim como sobre o motivo pelo qual aceitou o convite para integrar a comissão e sobre se se vê como um defensor dos direitos humanos - e porquê.

A todas as perguntas enviadas o causídico respondeu desta forma: "A liberdade de expressão e de informação num Estado de direito que se quer democrático permite que se faça as perguntas às quais respondo que sempre pautei a minha vida pessoal e profissional pelos valores e desígnios da lei, da Constituição e no respeito pelos direitos, liberdades e garantias. O convite, que muito me honrou, endereçado pelo Conselho Geral [da Ordem dos Advogados] e na pessoa do senhor Bastonário Luís Menezes de Leitão representa, acredito, o reconhecimento técnico jurídico ao longo de quase duas décadas do exercício ininterrupto da advocacia e, em especial, do direito penal, razão pela qual espero que o contributo da CDHOA corresponda às expectativas de todos os elementos que a compõem."

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