Adriano Maranhão: "Continuo a ser a mesma pessoa. Dou o valor à vida que sempre dei"
Habituado a cruzar mares e oceanos de outros continentes, há quatro meses e meio que único mar que Adriano Maranhão vê é o da Nazaré, a terra onde nasceu há 42 anos. Foi no mar do Japão que a covid-19 o apanhou, ainda se sabia tão pouco sobre a doença que era vista, sobretudo, como um mal das ásias - o canalizador do cruzeiro Diamond Princess foi o primeiro português a ser infetado com o novo coronavírus e a notícia caiu-lhe que nem uma bomba a 22 de fevereiro, ainda longe do dia em que a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia, o que só aconteceria a 11 de março.
Nesta segunda-feira, 3 de agosto, passam-se 146 dias desde que voltou a Portugal já com dois testes negativos e depois de ter estado internado nove dias no hospital de Okazaki. Desde então tem-se sentido bem, sem qualquer mazela e sem precisar de ir ao médico, embora no primeiro mês e meio fosse regularmente contactado por mail pelo médico que o tratou no Japão. Não voltou aos cruzeiros, até porque o setor turístico parou com a pandemia, mas voltou à profissão de canalizador, agora a trabalhar por conta própria e a ganhar bastante menos do que no cruzeiro.
Ter ficado conhecido em todo o país por ter sido o primeiro português a contrair covid-19, em nada o mudou. "Continuo a ser a mesma pessoa. Dou o valor à vida que sempre dei. Mas deu para pensar 'andamos aqui durante um tempo e depois vamos embora'. A verdade é que nunca pensei que o vírus pudesse atravessar fronteiras como se de um pesadelo se tratasse e voasse daqui para acolá como um pássaro. Mas temos que lutar, não podemos parar, e dar valor a tudo o que temos, mesmo às pequenas coisas."
Neste espaço de tempo o vírus "voou" tanto que já fez mais de 17 milhões de infetados e cerca de 670 mil mortes em todo o planeta.
A infeção - embora o tenha poupado aos sintomas físicos - apanhou-o num contexto por si só difícil psicologicamente: o navio já estava em quarentena há duas semanas no porto de Yokohama e havia muita gente infetada a bordo, notícias de algumas mortes - ao todo registaram-se cerca de 700 infeções e sete óbitos "Era mesmo ali ao nosso lado, cabines com um metro de distância, com pessoas doentes."
Adriano só fez o teste depois de ser levantada a quarentena (3 a 19 de fevereiro) e dois dias depois, a 22 de março, uma médica e uma enfermeira estavam a bater-lhe à porta com a notícia que não esperava. É uma pessoa positiva, faz questão de salientar, mas mesmo assim saber que estava infetado fez-lhe mossa. "Não tínhamos notícias de que alguém infetado se tinha curado. Sou otimista, mas instalou-se algum medo em mim, embora não me tivesse deitado abaixo de repente. Antes de ligar à minha mulher para lhe contar, estive umas horas a digerir a informação. E, já depois disso, quando desligava o telefone, sentia um grande peso nos ombros, estava ali fechado numa cabine, privado de tudo."
"Cheguei a pensar que desta não me safava, mas poupei muito a minha mulher desses pensamentos", conta.
É esse peso psicológico que transparece nas suas palavras, ainda assim sempre animadas como quando conversámos no dia em que Portugal acordou com a notícia de que um português estava infetado com covid-19 no já famoso Diamond Princess. Também nessa manhã (hora de Lisboa) embora cansado, a sentir algumas dores no corpo, mostrava-se positivo quanto à situação. Tinha quebrado um jejum forçado de 24 horas, em que ninguém lhe levou comida à cabine, para nesse dia comer dois almoços de frango - um trazido pela companhia, outro pelos colegas de trabalho. Mas essa prisão, Adriano não está disposto a reviver tão depressa. Nem quer imaginar que pode voltar aos cruzeiros e o barco ser novamente colocado em quarentena porque os turistas apanham covid-19.
A companhia dona do navio, a Diamond Cruises, até já lhe ligou a saber se está disponível para voltar. Em princípio, os cruzeiros começarão a operar em dezembro, mas Adriano ainda não sabe se regressará nessa altura. Com a mulher, Emanuelle Maranhão, tinha combinado que estaria um ano sem voltar aos navios. Até que a pandemia acalme e na esperança de que entretanto seja descoberta uma vacina.
Adriano Maranhão regressou no dia 10 de março, em vésperas do início do confinamento em Portugal e depois de uma longa e cansativa viagem que o levou do Japão ao Dubai e só depois o trouxe a Lisboa. Com horas e horas de espera em aeroportos e dentro de aviões, mas trazendo no bolso o seu salvo-conduto: o certificado de teste negativo ao novo coronavírus. A mulher moveu mundos e fundos para o retirar do barco para um hospital, envolvendo as autoridades portuguesas ao mais alto nível e também a comunicação social. Ainda no navio, Adriano chegou a receber um telefonema do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. "Uma mensagem de força", recorda.
Não foram momentos fáceis, até porque lhe disseram que teria de ser ele a fazer os contactos para sair do barco. O sinal de internet era fraco e tinha acabado de receber uma notícia daquelas que só achava que acontecia aos outros. Não tinha nem meios, nem disposição psicológica para esses trâmites, não sabia sequer até que ponto a doença o podia debilitar, para não falar de coisas piores.
Em Portugal, a mulher de Adriano, percebeu que não podia ficar de braços cruzados, desdobrou-se em contactos e pressionou para que o caso do marido fosse resolvido. Hoje, Adriano fala com naturalidade desses dias que, sabe, jamais esquecerá. Uma experiência que o destino quis que fosse vivida no Japão, país onde nunca tinha estado, a milhares e milhares de quilómetros da sua Nazaré natal.
A mesma Nazaré que, diz, o apoiou em peso. "Não senti que as pessoas me quisessem evitar. Quando acabou o desconfinamento, houve duas ou três pessoas que me perguntaram se podiam estar descansadas ao pé de mim e eu respondia-lhes "usa a tua máscara que eu uso a minha". Supostamente, não se apanha duas vezes, mas ainda hoje não há essa certeza."
Não o incomoda ter ficado conhecido como sendo o primeiro português com covid-19. "Não temos que ter vergonha, pode acontecer a qualquer um. Antes vivia na minha pacatez, agora há um ou outro curioso, pessoas que se cruzam comigo e perguntam se eu sou o rapaz que esteve no barco no Japão."
Outros não o conhecem, mas não escondem a curiosidade. Como o senhor que em conversa com Adriano lhe disse que gostava de falar com o homem da Nazaré que teve covid-19. "Sou eu", respondeu-lhe, de forma singela. Embora fosse um médico reformado, a conversa com Adriano não versou sobre a doença, quis antes saber como foi no barco, fez-lhe saber que acompanhou a sua situação, que gostou da atuação da mulher de Adriano e da sua luta para trazer o marido para Portugal. "Até quis tirar uma foto comigo. Ficámos amigos."
Com os barcos atracados por causa do covid-19, Adriano Maranhão não ficou parado e decidiu começar a trabalhar por conta própria, a exercer a mesma profissão de canalizador, ele que é filho de um pescador, mas já trabalhou em fábricas e pastelarias. Ganha muito menos, lamenta, mas está com a mulher e as filhas, três meninas de 2, 5 e 9 anos. Antes da pandemia estava três meses no mar e voltava por poucos dias, para regressar novamente a um qualquer destino - e em cinco anos já conheceu tantos! O salário compensava a distância da família.
A rir, diz que o casal já nem estava habituado a estar tanto tempo juntos. "Já nem sabemos lidar um com o outro, não discutimos, isso não, mas já estávamos habituados à ausência. Temos mais tempo, não temos aquela pressa de aproveitar como antes, que era como se fosse o último dia."