"A volatilidade interna é péssima para o poder externo dos Estados Unidos"

A cientista política luso-americana Daniela Melo explica que a capacidade de execução da agenda externa de Joe Biden será influenciada pelo rescaldo da tentativa de insurreição do campo de Donald Trump.
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No dia em que uma multidão de apoiantes de Donald Trump invadiu o Capitólio, num ataque doméstico sem precedentes à casa da democracia americana, os meios de comunicação chineses exultaram com as imagens transmitidas a partir de Washington, D.C. O jornal estatal Global Times publicou fotos do Capitólio lado a lado com imagens dos protestos em Hong Kong em 2019, equiparando-os numa mensagem clara: a democracia é problemática e a censura é necessária.

Do outro lado do mundo, na Rússia, as reações ao ataque foram caracterizadas como "hipocrisia" e o sistema eleitoral americano adjetivado de "arcaico." É um estado de coisas que seria impensável até há alguns anos.

"O que esta semana quer dizer para a política externa de Biden é um desastre", disse ao DN a cientista política e professora da Universidade de Boston Daniela Melo.

"Uma das áreas que Biden tem salientado é o retorno à promoção da democracia na ordem global. Se Trump sai impune dos eventos desta semana, a perda de fé em termos de Estado de direito e valores democráticos é enorme."

Joe Biden, que será empossado presidente a 20 de janeiro, partirá de uma situação caótica qualquer que seja o desfecho deste episódio.

"A volatilidade interna é péssima para o poder externo dos Estados Unidos. Para conseguirem ter uma política externa coerente e um posicionamento forte com os aliados, têm de pôr a política interna em ordem", indicou Melo.

A análise da cientista política é que há pouco espaço de manobra. "Não há escolha. Donald Trump tem de ser responsabilizado, porque caso contrário põe-se em causa o Estado de direito em si e as instituições democráticas", analisa. "Passamos a ser não uma democracia avançada mas uma democracia em retrocesso, a andar para trás."

Com vários cenários em cima da mesa, incluindo um processo de destituição que pode ser concluído após dia 20 - já com a nova maioria democrata no Senado -, Biden terá em mãos um tumulto interno com enormes consequências globais. Há, inclusive, receios quanto aos últimos dias de Trump na Casa Branca.

"Agora, já toda a gente acredita que possa acontecer tudo", referiu Melo. "São tudo conjeturas, mas claramente uma das prioridades para o congresso neste momento é contenção."

De acordo com a especialista, o intuito da política externa da administração Biden está refletido na equipa que o próximo presidente escolheu. "Ele não promete uma política externa transformadora, mas um restaurar da legitimidade, da liderança e da influência dos EUA no sistema internacional."

A escolha de Anthony Blinken para Secretário de Estado e Linda Thomas-Greenfield para embaixadora nas Nações Unidas representa um regresso ao passado, à era Obama, num momento em que a experiência é crucial mas o mundo também está diferente.

"Sob a liderança de Anthony Blinken, vamos ver um retorno a uma política externa guiada e praticada por especialistas", disse Daniela Melo. "Vamos ver nomeações muito fortes para as embaixadas mais importantes, como Bruxelas, Berlim, Paris, Moscovo, Pequim, e isso vai ser muito importante no reinício das relações diplomáticas."

As prioridades da equipa deverão ser a reparação das relações internacionais, em especial da Aliança Transatlântica, contenção da Rússia e da China e recuperação de um acordo que limite as capacidades nucleares do Irão.

"Biden está muito bem posicionado para isso porque já tem muitos anos de experiência em política externa", disse Melo. "É talvez dos presidentes mais bem preparados para este trabalho."

Correspondente em Los Angeles

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